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Reportagem 101

Gol contra no combate ao racismo

Episódios de discriminação mancham também o futebol sul-matogrossense

Texto: Alexandra Cavalcanti | João Pedro Flores
Edição: Mariana Pesquero | Murilo Medeiros | Pietra Dorneles


Destaque dentro e fora dos campos, o atacante brasileiro do Real Madrid, Vinicius Junior, tem sofrido repetidos ataques racistas em partidas de futebol na Europa. Desde sua atuação no Flamengo, em 2017, já recebia diversos insultos e agressões, chegando a ser atingido por bananas atiradas por torcedores. Em um único jogo contra o Atlético de Madrid, em setembro de 2022, a La Liga, campeonato espanhol de futebol, registrou 24 ocorrências. “Caso isolado número 19”, disse o craque após sofrer outro ataque racista em outubro de 2023. Foram necessárias dez denúncias contra o jogador para que, finalmente, um clube fosse punido.

Do outro lado do globo, o cenário é semelhante. Em fevereiro de 2023, em Costa Rica, cidade interiorana de Mato Grosso do Sul, um caso parecido ocorreu no jogo entre o Coxim e o Costa Rica Esporte Clube (CREC), pela 5a rodada do Campeonato Estadual. Após um gol do time da casa nos acréscimos, a equipe de Coxim se irritou e a confusão teve início. A Polícia Militar invadiu o campo para controlar o tumulto e um dos policiais apontou uma arma para o lateral Richard Bala, do Coxim. “Polícia apontando arma para jogador? A gente não é bandido não. Só porque eu sou da cor, me chamou de ‘seu preto do caralho’”, disse o jogador. O jogo foi encerrado ali.

Em 2021 foram registrados 158 casos de preconceito contra esportistas brasileiros em partidas oficiais. Dessas, 142 dizem respeito ao futebol, de acordo como Relatório da Discriminação Racial – Foto: Eliel Dias

Os casos de racismo em campo não são novidade em Mato Grosso do Sul. Uma noite de futebol em Corumbá em 2015 é pouco lembrada pelos lances dentro de campo, mas muito marcada por um ato criminoso de um torcedor do time da casa. O Corumbaense recebeu o Naviraiense, pela quinta rodada do Campeonato Estadual de Mato Grosso do Sul. No final do jogo, enquanto o time visitante descia as escadas rumo ao vestiário, torcedores locais começaram a xingar os jogadores adversários. Um desses insultos foi para o lateral direito do Naviraiense, Ederson Baptista de Souza, o Robinho. “Eu desci para o vestiário e voltei para tomar água, quando um rapaz falou ‘vai seu macaco’. Eu fiquei doido, fiquei indignado e triste. Não tenho nem palavras, é um negócio que não quero que ninguém passe. Foi complicado de verdade”, lamenta Robinho.

O jogador não relatou os insultos racistas ao árbitro da partida, mas denunciou aos policiais. “Na hora eles ficaram meio sem entender o que estava acontecendo. Tentaram ir atrás dele, mas ele correu no meio da multidão e ficou difícil de encontrar”. Robinho fez um boletim de ocorrência e lembra que a federação não fez nada em relação ao caso. Apesar do infeliz episódio, um ano depois, em 2016, o jogador se transferiu para o próprio Corumbaense. “Eu nem pensei nesse caso na hora de negociar com o clube, só queria ir lá e mostrar meu futebol, mostrar que podia fazer um belo campeonato. Foi só esse cidadão que fez isso, mas a torcida é sensacional, me tratou como um filho, um irmão, conheci grandes pessoas por lá”.

O vice-presidente da Federação de Futebol de Mato Grosso do Sul, Marco Antônio Tavares, afirma que o estado registra poucos casos de racismo. Ele, que está desde 1999 na entidade, lembra apenas do caso de Robinho e de um jogador do Coxim no início de 2023. “Nós encaminhamos esses episódios para o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD), mas não teve como apurar. Normalmente, quando o jogo é filmado, tem como resgatar a imagem e provar, mas em nenhum desses casos houve transmissão”, justifica.

De acordo com o dirigente, todas as denúncias que chegam à Federação, por mais vagas que sejam, são encaminhadas ao TJD-MS, que inicia uma investigação ou abre um processo e convoca as partes para produzir provas. O vice-presidente justifica os poucos relatos de racismo em Mato Grosso do Sul pelo fato de as partidas não terem tanto público nos estádios. “O investimento no futebol daqui é pequeno, quando a gente leva três mil torcedores é diferente de levar 30 ou 40 mil. Nosso maior público foi de cinco mil torcedores, e até por isso nós não temos uma ação preventiva”. 

Em campo ou em quadra, mais um caso de racismo

Em 2019, em Chapadão do Sul, durante as semifinais do Campeonato Estadual de Futebol de Salão, o jogador da equipe Vó Maria, Pedro Cabral, acusou dois indivíduos, um deles funcionário do time adversário, a  Sociedade Esportiva e Recreativa Chapadão (Serc), de chamá-lo de macaco. “Estávamos ganhando o jogo e saiu uma falta. Levantei e ouvi os caras falando para me sentar. Foi quando eu virei e um deles falou ‘senta aí, seu macaco, seu neguinho’. Várias pessoas também escutaram. Eu não relatei para o árbitro, mas o mesário na época disse que tinha escutado também”, relata.

A Fifa reformulou seu Código Disciplinar em 2019, aumentando as punições em caso de preconceito. Após as mudanças, os clubes podem ser punidos com perda de pontos, partidas sem torcida, eliminação de competições e multas de mais de R$100 mil – Foto: Eliel Dias

Pedro diz que a Federação de Futsal de Mato Grosso do Sul não o apoiou. Pelo contrário, disse que o atleta estava inventando a história. “A Federação se juntou com a Serc e disse que eu não tinha provas, que não foi falado. Provas eu tenho, mas como não fui respaldado pela Federação, não levei adiante o caso, muito porque o mesário não quis se indispor. Ele escutou, estava a menos de um metro de distância de mim”, detalha.

O jogador faz um apelo para que a estrutura dos campeonatos no estado sejam revistas. “O jogo não tinha polícia, não tinha segurança, eram apenas os times numa quadra de futsal. Se tivesse polícia, eu poderia correr até eles e seriam tomadas as medidas cabíveis. Hoje, nosso futsal está abandonado neste sentido. Essas coisas poderiam ser revistas”.

Da punição à resistência

Em 2019, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) remodelou seu Código Disciplinar, incluindo novas medidas para casos de racismo. A punição para pessoas (jogadores ou não) acusadas de preconceito é a suspensão por dez jogos. Aos clubes, as medidas incluem jogar uma partida com número reduzido de torcedores e multa de cerca de R$ 110 mil. Se o clube for reincidente, as punições podem levar à perda de pontos, partidas com portões fechados e até exclusão da competição em que o caso ocorreu.

Além disso, o atual regulamento deu mais poder aos árbitros, que podem interromper as partidas em casos de racismo, seguindo um protocolo de três etapas: solicitar um anúncio público para exigir o fim do comportamento, suspender ou encerrar a partida e declarar derrota de 3 a 0 ao time com torcedores racistas, além de ser aplicada multa de cerca de R$ 56 mil caso o jogo seja paralisado.

Na Europa, a União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) segue a mesma linha da FIFA. O Código Disciplinar da entidade europeia prevê a suspensão de pelo menos dez partidas ou um período específico para pessoas envolvidas em atos de racismo. Já os clubes podem ser punidos com, no mínimo, fechamento parcial do estádio e multa. Em caso de reincidência, o jogo seguinte será realizado a portas fechadas e o clube será multado em 50 mil euros, valor equivalente a R$ 264 mil. Caso haja qualquer infração subsequente, o clube pode ser punido com mais de uma partida a portas fechadas, fechamento do estádio, perda do jogo, redução de pontos ou desclassificação na competição.

Na América do Sul, não é incomum jogadores brasileiros sofrerem racismo quando há uma partida internacional, seja pelas competições da Libertadores da América ou pela Sul-Americana. De janeiro a maio de 2022, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) registrou nove casos de racismo, sendo seis pela Libertadores e três na Sul-Americana. Todos tinham atletas brasileiros como vítimas.

A frequência desse crime em tais competições tem sido recorrente e as críticas à Conmebol fizeram com que a entidade endurecesse as penas. A multa passou de trinta mil dólares para cem mil dólares, cerca de R$ 500 mil, podendo chegar aos quatrocentos mil dólares, ou R$ 2 milhões, se o clube for reincidente. As equipes também podem ser penalizadas com jogos com portões parcialmente ou totalmente fechados.

Em fevereiro de 2023, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) instituiu punições em todos os campeonatos nacionais, que incluem multa de até R$ 500 mil, perda de mando de campo ou jogo com portões fechados e perda de pontos.

O Regulamento Geral de Competições (RGC) da CBF diz que “considera-se de extrema gravidade a infração de cunho discriminatório praticada por dirigentes, representantes e profissionais dos clubes, atletas, técnicos, membros de Comissão Técnica, torcedores e equipes de arbitragem em competições coordenadas pela CBF”.

A Confederação também pode encaminhar o caso ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) para julgar e, se for o caso, aplicar a perda de pontos ao clube infrator. Além de penas administrativas, o caso pode ser encaminhado às autoridades competentes, para apurar e responsabilizar os infratores na justiça comum.

Somadas às punições de entidades oficiais, jogadores e clubes também têm realizado manifestações pelo combate ao racismo. São atos como colocar frases de enfrentamento ao racismo nas camisas dos times europeus, entrar em campo com faixas pedindo o fim da discriminação, usar uniformes especiais no dia da Consciência Negra ou fazer gestos antes da bola rolar, como se ajoelhar e levantar a mão fechada, em referência à manifestação antirracista histórica dos atletas norte-americanos em homenagem ao movimento dos Panteras Negras nas Olimpíadas de 1968.

Racismo em foco

O Observatório da Discriminação Racial no Futebol é um projeto independente idealizado com o objetivo de monitorar e noticiar os casos de racismo no futebol brasileiro. Além disso, também divulga e desenvolve ações para acabar com o preconceito. Desde 2014, lança anualmente em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) o Relatório da Discriminação Racial, que não fala apenas de casos no futebol, mas também relata episódios em outros esportes que envolvam atletas brasileiros, assim como outras formas de preconceito e discriminação, como machismo, lgbtfobia e xenofobia.

Marcelo Carvalho, diretor do Observatório, percebeu as mudanças no futebol em relação ao racismo nos últimos anos. Em sua perspectiva, os esforços para combater o racismo dentro do futebol têm aumentado, assim como a conscientização sobre a questão racial e a importância de uma postura antirracista. “A luta contra o racismo tem recebido mais atenção, resultando em ações mais abrangentes para enfrentar o problema”, afirma.
Segundo o Relatório de 2021 (ano da última pesquisa), foram registrados 158 casos de preconceito no futebol e outros esportes, dos quais 137 (87%) aconteceram no Brasil e 21 (13%) com atletas brasileiros no exterior. Destes, 124 (78%) dizem respeito ao futebol e 34 (22%) a outros esportes.

De 2016 a 2019, os números dos casos de discriminação no esporte brasileiro aumentaram ano após ano. Em 2020, os casos tiveram uma queda de 50,65%, porém, foi um ano atípico, pois não havia torcedores nos estádios. Em 2021, a volta do público aos estádios após a pandemia ocorreu em outubro, mas bastaram três meses para igualar o número recorde de casos de racismo.

União esportiva

Episódios de racismo nas quadras e campos, assim como em qualquer outro esporte, são profundamente perturbadores e mostram que há um longo caminho a percorrer na luta contra o racismo. O lugar que deveria ser um ambiente de competição saudável e de inclusão, muitas vezes se torna palco para manifestações de ódio.

Esses incidentes remetem à urgência de promover a educação e a conscientização sobre a diversidade, além de implementar medidas rigorosas contra a discriminação nos esportes, seja ela de raça. gênero, orientação sexual, etc. É fundamental que atletas, treinadores, dirigentes e fãs se unam para rejeitar qualquer forma de discriminação, defendendo valores de respeito, igualdade e justiça.

O esporte tem o poder de unir pessoas de diferentes origens, culturas e etnias. Portanto, é essencial criar um ambiente onde todos se sintam valorizados e respeitados, independentemente de sua cor de pele. Somente através da educação, empatia e ação coletiva é possível combater o racismo e suas consequências no esporte e na sociedade como um todo.