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Opinião 98

História de pescador

Vitória Martins


Nasci e cresci em Corumbá, meu lugar de morada é à beira do Rio Paraguai. Sou pescador porque meu pai foi pescador e antes dele, o pai dele também era. Não sei se sempre quis isso, mas é o que gosto de fazer. Talvez não queira isso para meus filhos. Hoje o mundo está mudado e se eles quiserem, podem estudar e até ir para faculdade. Não tenho tanto estudo, mas sei que isso é importante hoje em dia.

Vivo em uma casinha bem simples com minha mulher e meus guris. Não tenho luxo, nem nada, mas a vista do quintal de casa é sem igual. Gente com dinheiro tem piscina do lado de fora da casa, eu tenho o rio Paraguai. Quando o sol começa a baixar ele faz a água de espelho, é a coisa mais linda que vi. Não que eu já tenha visto como é em outras cidades…Vez ou outra aparece um jacarezinho ou sucuri, mas é só não mexer com eles. Afinal, a casa é deles, o intruso sou eu.

Levanto da cama bem cedo, antes mesmo do sol raiar. Arrumo minhas tralhas de pesca, pego meu remo, o barco e subo o rio para pescar. Faço isso quase todo dia, só aos domingos que não. Nesse dia, costumo ir à missa. Sou católico desde que me entendo por gente. São Pedro é o nosso padroeiro, ele é um santo que também foi pescador. Dia 29 de junho é o dia dele, tem procissão pelo porto geral e de barco nas águas do rio.

Uns dizem por aí que esse rio é uma tal de planície alagada. Bom, se é verdade, eu não sei. Para mim sempre foi tudo rio. Só sei que tem dois períodos bem diferente: a cheia e a vazante. A cheia é quando o nível da água sobe e alaga tudo. Uma vez me disseram que para encher aqui, tem que chover lá para as bandas de Mato Grosso no verão, que é onde o rio nasce, deve ser verdade. A vazante vem depois dela, quando a água começa a baixar. Nessa época, algumas baías secam e corixosaparecem. É na seca que os peixes ficam mais a amostra para os tuiuiús e aves que se alimentam deles. A comida se torna abundante.

Foi-se o tempo em que conseguia viver só de peixe. As vezes faço uns ‘bicos’ de pintor, mas só quando o calo aperta. Para completar a renda também cato isca, isso dá um trocadinho. Nos últimos anos muitos turistas da cidade grande vêm para o pantanal pescar, daí eu vendo tuvira para eles, uma isca viva que serve para pegar peixes maiores. Com ela dá para pescar pintado, jaú, pacu, dourado…

Tudo que uso é meu: o barco, as tralhas, as redes…. Vendemos o peixe e a isca em casa também, mas nem todo mundo é assim. Tem pescador que empresta o material de pesca do moço do isqueiro, mas chegando na cidade seu peixe já tem dono. É um compromisso que ele faz. Se vale a pena, eu não sei. Prefiro fazer as coisas do meu jeito.

De novembro a fevereiro tem a piracema, tempo em que os peixes se reproduzem. Nesses meses, pescar só se for para sobrevivência e ainda assim, apenas três quilos ou uma peça de peixe pode ser capturado por dia. Não podemos vender peixes neste período, mas ganhamos um salário do governo enquanto a pesca não abre de novo, o defeso.

Esses dias um conhecido meu veio de conversa fiada para o meu lado, disse que saiu para pescar de madrugada e viu um movimento estranho lá na curva do rio. Os barrancos estavam desmoronando porque na água tinha muito movimento e onda grande se formando. Falei logo que não era nada, que devia ser coisa da cabeça dele. Ele continuou falando e até lembrou de uma canoa que virou um tempo atrás. No final perguntou: será que era o minhocão? O minhocão é a lenda de uma cobra gigante que tem chifres e circula pelos rios do pantanal. Uma vez meu pai disse que ele devora pescadores e vira canoas. Falei para ele que não sabia, mas que não duvidava de nada nessa vida. Fiquei encucado, mas guardei para mim. De uma coisa eu sei, tem coisa nesse rio que ninguém explica.

GLOSSÁRIO

Tralhas: Material de pesca.
Planície Alagada: Áreas inundadas periodicamente pelas águas dos rios.
Isqueiro: Local onde ocorre o comércio de iscas vivas.
Baía: Porção do mar ou rio rodeados por terra que se prolongam e deixam uma grande abertura coberta por água.
Corixo: curso de água de dimensões variadas, podendo ser um brejo ou canal.
Barranco: Margem mais alta de um curso de água, de um lago, de uma ribanceira.