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Reportagem 99

Infância é arte

Inserção da criança na arte e cultura estimula sua formação social, promovendo o processo reflexivo e questionador

Texto: Geane Beserra| Lizandra Rocha | Lauren Ferreira Netto | Maria Caroline Leite


Mais de 152 crianças e adolescentes são atendidas de forma gratuita no Instituto Projeto Livres – Foto: João Buchara

Na aula de artes visuais, a professora pediu que fizessem uma obra com colagens orgânicas para representar o desmatamento. Na mesa grande no centro da sala, os materiais estavam todos espalhados, galhos de árvores, tinta e pincéis. As crianças descalças, vestiam a camiseta do projeto, livres para explorar o espaço da Casa de Ensaio. “Lembrei de um sonho que tive, eu estava dentro de um barco, com algumas pessoas aleatórias, pensei em uma ideia surrealista que vem de uma coisa cotidiana com uma modificação, e o barco estava todo infestado de plantinhas. Dei o nome: a última embarcação”, conta Daniel Sant’Ana, de 13 anos, que participa do projeto cultural Casa de Ensaio desde os 11 anos.

No Brasil, a Constituição Federal, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA), asseguram o direito à cultura desde a infância. Brincar, praticar esporte e divertir-se são aspectos que compreendem o direito à liberdade de expressão presente no artigo 16º do Estatuto

 Além disso, os pais e responsáveis têm uma atribuição fundamental para que a cultura seja estimulada desde os primeiros anos de vida, seja por meio de dinâmicas com massinha de modelar, contação de histórias folclóricas ou até mesmo levando as crianças ao teatro e a concertos musicais. Toda essa vivência é válida.

Daniel, aluno do Projeto Casa de Ensaio, apresenta na aula de artes visuais sua escultura  com inspiração no movimento surrealista – Foto: Helder Carvalho

Para a Coordenadora de Comunicação da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul, Ana Paula Ostapenco, a cultura também é política, pois ensina a respeitar o outro, e a lidar com as diferenças do próximo, por isso a importância de introduzir a arte desde os primeiros anos escolares, em especial em áreas de vulnerabilidade de acesso.

Projetos que transformam

Do portão já se ouvia o som dos batuques. Não eram profissionais, tampouco feitos de um bom material, mas a sonoridade era o essencial. As crianças com idades variadas, entre 4 a 5 anos, vestiam roupas simples e tocavam em galões azuis descartáveis, que provavelmente iriam para o lixo.

Criado em 2012, o Instituto Projeto Livres, em Campo Grande, atende de forma gratuita mais de 152 crianças e adolescentes que possuem alguma dificuldade na aprendizagem. A diretora Rosangela Maria do Nascimento, explica que a motivação de ajudar esse público surgiu da precarização no ensino da educação infantil e que muitos deles não conseguiam ao menos identificar as letras do alfabeto.

Galões descartáveis são utilizados para fazer música – Foto: João Buchara

Além da escolinha de alfabetização, o instituto fornece musicalização todos os sábados, ensinando percussão, que ajuda a criança a se ressocializar, perder a timidez, desenvolver o raciocínio lógico e ter mais coordenação motora. Rosangela comenta que muitas crianças se sentem reclusas do contexto social em que vivem, mas quando estão reunidas desenvolvendo atividades práticas, conseguem perceber a capacidade de construir amizades e respeitar o diferente.

Outro exemplo de projeto, que promove a proximidade da cultura e o fazer artístico, é a Casa de Ensaio, fundada no ano de 1996, também em Campo Grande. A Casa ganhou vida graças ao trabalho da supervisora artística Laís Doria e do produtor cultural Arthur Monteiro de Barros. O instituto social é voltado para o público infanto-juvenil de 7 a 17 anos e promove oficinas, brincadeiras e rodas de conversa com uma psicóloga, toda sexta-feira.

A dança é utilizada como forma artística de aprendizagem – Foto: Ana Paula Cavalcante

“Eu entrei aqui porque achei esse lugar muito legal, tem brincadeiras, jogos, e muita diversão. Então eu fiquei com vontade de frequentar a Casa porque eu queria ter mais dessas experiências”, conta Grazi, de 10 anos, que participa do projeto há mais de um ano e meio.

Se engana quem pensa que os mais novos praticam as manifestações artísticas apenas como entretenimento e diversão. Brenda, de 10 anos, comenta como as apresentações que realizou ajudaram a superar o nervosismo diante de um público numeroso. “Eu melhorei muito na dança desde que eu entrei aqui, antes eu não me soltava. Na minha primeira apresentação eu estava tremendo, eu estava muito nervosa e achava que não iria conseguir, mas foi tudo de bom”, explica.

Emoção e expressão

O desenvolvimento da expressividade por meio da arte ajuda a trabalhar os próprios sentimentos e também torna as crianças mais sensíveis às emoções dos outros, contribuindo para a empatia. A psicóloga infantil Nina Dória, ressalta que é através da criação artística que o indivíduo pode externar e transformar seus sentimentos, pensamentos e comportamentos de forma concreta, aprendendo a identificá-los e diferenciá-los não só verbal, mas também visualmente. “É por meio da dança, da música, do teatro ou das pinturas que muitos artistas conseguem expor o que sentem, retratando suas inseguranças e paixões, externalizando aquilo que queima por dentro”, esclarece.

Materiais recicláveis são utilizados para produzir esculturas pelas crianças na Casa de Ensaio – Foto: Helder Carvalho

A artista, e professora do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Constança Lucas, concorda sobre os benefícios do contato direto com a cultura na infância e declara que a arte tem uma característica transversal, por estar presente em diferentes áreas. “A arte trabalha a questão do sensível, da concentração e um lado muito interessante, que muitas vezes é esquecido, a coletividade”, declara.

Jackson, de 12 anos de idade, participa de projetos culturais e artísticos há dois anos. Para ele, a dança é libertadora e ajuda a expressar todos os tipos de sentimentos sejam eles alegres ou tristes. 

“Na hora que eu vi a dança eu falei, essa é a minha arte e é isso que gosto de fazer. Quando estou triste a dança me faz ficar alegre e toda a tristeza vai embora, pois mexemos o corpo e exercitamos a memória ao coreografar-se o espaço” – Jackson

O assistente pedagógico da Casa de Ensaio, Luiz Carvalho, diz que uma característica social do Brasil é o medo das crianças e jovens de falarem, mas quando chegam na instituição eles encontram um lugar onde podem se expressar livremente. Arthur, de 10 anos, frequenta o espaço há dois anos e manifesta a sua alegria em conhecer os movimentos artísticos, conseguir fazer amigos e repassar tudo o que aprende nas apresentações de final de ano no próprio quintal da organização. Para a menina Grazi, de 10 anos, a arte ocupa um lugar de destaque entre as atividades que ama. “Eu amo dançar, cantar, desenhar e brincar. Tem muitas meninas e meninos da minha idade que já querem ser adultos, e eu fico meio brava, porque eu queria ser criança até os 20 anos”.

Pintura como forma de expressão – Foto: João Buchara

Com o intuito de proporcionar o contato das crianças com o conhecimento histórico-cultural brasileiro, as obras de diferentes artistas do país são um exemplo a ser explorado. Nomes como Tarsila do Amaral, Gilberto Gil, Alcione e Ney Matogrosso, que trabalham em diversos setores, desde a música até a pintura, contando a história de um povo, o empoderamento e as transformações que acontecem na sociedade, agregam para esse enriquecimento. 

“Você precisa passar esse conhecimento artístico brasileiro, porque a cultura é nossa, ela está dentro de nós. Só conhecemos o nosso passado devido aos movimentos artísticos” – Ilizandra Khun
Direitos e deveres

Projetos voltados para essa ação são muito importantes, principalmente pela dificuldade de acesso de algumas pessoas. Segundo uma pesquisa de 2019 feita pelo IBGE, crianças negras e moradoras de periferias não vão a cinemas, museus e teatros, o que, consequentemente, retarda a possibilidade da sociedade avançar em igualdade.

Em pesquisa divulgada pela consultoria JLeiva Cultura e Esporte, em 2021, houve diminuição de 10% dos valores totais investidos por todas as esferas de governo em atividades culturais no Brasil. O levantamento mostra como é desigual e desvalorizado esse alcance no cenário brasileiro e que a falta de investimentos demonstra problemas de gestão e de políticas públicas direcionadas à população em geral, em uma consequência direta, na prática, às crianças.

Em Mato Grosso do Sul, o Núcleo de Arte e Cultura (NUAC) desenvolveu o Programa Arte e Cultura na Escola que tem contribuído para que crianças e adolescentes tenham contato com esse meio. Para o arte educador do NUAC, Fábio Germano, essa possibilidade dá acesso às potencialidades dos estudantes, pois amplia um leque de atividades extra-classe, oferecendo um espaço de convivência social, desenvolvimento de talentos e troca de conhecimentos. “Procuramos trabalhar de modo que todos tenham acesso à cultura artística. A escola é um espaço de múltiplas possibilidades e um ambiente onde podemos desenvolver talentos, seja ele para qual campo for”, diz o educador.

Conforme dados da Secretaria de Estado de Educação (SED), 311 projetos do Programa Arte e Cultura estão em funcionamento em 159 escolas, de 49 municípios de MS, e o número estimado de beneficiários da rede estadual é de aproximadamente 4700 alunos e alunas. Por mais que tenham lugares que contribuam para que ações como essa sejam criadas, vale ressaltar que essa realidade não é a de todas e todos, e que muitos ainda estão sem esse direito garantido.

A música como arte estimula as crianças a se socializarem – Foto: João Buchara

A cultura do meu povo
O grafismo corporal é uma arte fortemente presente na cultura da tribo Kadiwéu da indígena Benilda Vergílio – Foto: João Buchara

“Ao som do tambor que ecoa os ouvidos e o mais profundo encontro com a essência de ser uma criança Kadiwéu, com a auto-afirmação do prazer de viver a prática cultural que é passada de geração a geração”.

Nascida na aldeia Alves de Barros localizada em Porto Murtinho de MS, Benilda Vergílio é indígena da tribo Kadiwéu, remanescente da nação Guaicuru, e desde sua infância vivenciava o melhor da arte e da cultura de seu povo e ancestrais. Retirar mel de abelhas, colher urucum e buscar jenipapo no jenipapeiro eram umas das práticas exercidas por ela em sua aldeia. Porém, foi na observação das festividades com movimentos circulares, vertical e horizontal, que descobriu o grafismo, pintura corporal feita a partir da extração da tinta do urucum. “Cada povo tem a sua especificidade de passagem de conhecimento e eu tive essa ligação através dos meus avós que me fizeram ter convívio com a arte da nossa aldeia até os meus 10 anos de idade”.

A arte se fez fortemente presente e resistente em sua vida quando se viu obrigada, pelos pais, a ir morar na cidade, pois na aldeia o acesso à educação era apenas até o quarto ano do ensino fundamental. Morar sozinha e longe da presença de seus familiares foi difícil e aprender o português foi um problema, porque até então ela ilustrava todos os textos, ao invés de escrevê-los.

Para Benilda, o maior medo era esquecer suas raízes e ser zombada em seu próprio povoado, que mantinham enraizadas críticas à cultura dos brancos. Críticas que ela compreende, pois entende toda a história de exploração que seus parentes sofreram desde a colonização. “Foi um desafio muito grande voltar a escrever na língua Kadiwéu, comecei a traduzir poemas, me inspirar e fazer poesias na língua indígena. A arte e a poesia foram importantes para fortalecer minha identidade, ampliou a visão de mundo das pessoas e o respeito ao meu redor”.

Hoje com 35 anos, é formada em Design pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), e desde 2009 tem usado o Etnodesign para mostrar aspectos de sua cultura ao mundo por meio da moda sustentável. Suas produções revelam detalhes, grafismos e cores que remetem aos rituais de festividades de seu povo. “Sou ativista pelos direitos dos povos indígenas, defensora e propagadora da arte Kadiwéu, sobretudo da cerâmica, que é a principal fonte de renda das mulheres da minha etnia”.

Para ela, buscar aprender mais sobre suas origens e costumes desde pequenina a ajudou a ser quem é: uma mulher empoderada e determinada a transmitir uma história repleta de conhecimentos. Para valorizar e compartilhar as especificidades de sua etnia, ela criou em 2018, o Festival de Cultura Kadiwéu. “Quando a passagem de conhecimento é transferida para uma criança ela nunca irá esquecer. Para onde ela for esse aprendizado será levado consigo em forma de uma missão, que é passar de geração a geração a continuidade dessa sabedoria”.