O papel de máquinas e algorítimos que estão tirando o trabalho – e o sono – de muitos humanos
Texto: Gabriella Gomes (agabriellagomes@hotmail.com)

A inteligência artificial (IA) é um campo da ciência e da informática que envolve o agrupamento de várias tecnologias, como redes neurais artificiais, algoritmos e sistemas de aprendizado, que aplicados podem oferecer aos dispositivos eletrônicos a capacidade de funcionamento para operar em uma lógica que remete ao raciocínio humano, aumentando o desempenho de tarefas outrora executadas por pessoas. Isso tem provocado mudanças na forma de trabalho e nas relações sociais, onde muitas profissões serão extintas ou serão adaptadas em decorrência da inteligência artificial. O funcionamento da IA está na combinação de grandes volumes de dados digitais e algoritmos inteligentes que permitem que o sistema leia e interprete padrões e informações para aprender automaticamente.
Por intervenção de sistemas de software a IA envolve o uso de robôs, e está cada vez mais presente na vida das pessoas, garantindo um papel importante em vários setores. Aplicada em assistentes pessoais virtuais, medicina, segurança, veículos, entretenimento, casa inteligente e até mesmo no judiciário, onde permite combater crimes e auxiliar a justiça em processos judiciais como a análise de documentos e monitoramento de alterações na legislação.

Fábio Hillário Martinez de Oliveira é procurador do Estado de Mato Grosso do Sul desde 2010. Bacharel em Direito (2004) e em Sistemas de Informação (2019), atuou como advogado nas áreas cível e tributária entre 2005 e 2006. Possui pós-graduação em Direito do Estado e das Relações Sociais e em Direito Tributário. Atualmente cursa mestrando em Administração. Já realizou palestras relacionadas ao tema, como ‘Algoritmos Advogados e Juiz Robô: Fim das carreiras judiciais’, apresentada no I Seminário de Direito e Tecnologia da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em 2021.
Projétil: O que é a Inteligência Artificial (IA)?
Fábio Hillário Martinez de Oliveira: Há quem prefira a expressão inteligência de máquina. A definição de inteligência artificial (IA) não encontra consenso na academia, porém, podemos afirmar que a ideia central de IA está relacionada a automação de atividades que demandam inteligência. Em resumo, seria a combinação de algoritmos projetados para obterem as mesmas capacidades que o ser humano.
P: A IA pode ser mais criativa que o cérebro humano?
FHMO: Presenciamos um crescimento exponencial da inteligência computacional nos últimos anos, e esse crescimento ocorre geometricamente. Com a habilidade de processamento de sentimento, as máquinas, que já são criativas, podem maximizar o desempenho. Se a criatividade seria superior a do agente humano teríamos que especificar o que entendemos por criatividade, já que as coisas no mundo, nesse campo, e principalmente na arte, depende dos olhos de quem as vê.
P: Quão autônoma é a IA?
FHMO: Ainda temos freios morais na IA porque agentes humanos ainda a controlam, auditam os algoritmos, de modo que a autonomia das máquinas ainda é vigiada. Porém, não temos garantia que esses mecanismos de contenção se mantenham íntegros no futuro.
P: Como essa tecnologia pode melhorar a vida das pessoas?
FHMO: A história evidencia que as descobertas realizadas pelo homem podem melhorar a vida das pessoas, mas também podem ser utilizadas para o mal. Por isso nós precisamos conduzir o processo evolutivo de modo que tenhamos uma convergência adaptativa entre algoritmos de carbono (humanos) e algoritmos de silício (IA).
P: O que leva um Procurador a estudar algoritmos?
FHMO: Em 2010 eu fui lotado na Procuradoria Regional de Ponta Porã e, cinco anos depois, o volume de trabalho havia crescido cinco vezes ao volume que havia quando eu tomei posse, porém, os ativos humanos diminuíram, ou seja, tínhamos uma demanda maior e capacidade de processamento humana menor. Buscando uma solução, um Assessor sugeriu que eu procurasse a resposta fora da área jurídica, na Administração ou na Computação, pois era evidente que a demanda não deixaria de crescer, e que não seria possível o aumento de recursos humanos em decorrência da escassez de recursos [financeiros]. Logo, a resposta seria aumentar a capacidade de processamento de Informação, o que a inteligência computacional possibilita.
P: O que a IA pode vir a mudar – ou já está mudando – no judiciário brasileiro, ou mesmo pode vir a provocar uma necessidade de atualização na atual legislação?
FHMO: Hoje a IA atua como suporte no processo de tomada de decisão pelos Juízes. Também auxilia os operadores de Direito na elaboração de peças (petições). A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal desenvolveu um robô, chamado Victor, que possibilita a separação e classificação de peças do processo, além de identificar matérias com repercussão geral. A legislação já regulamenta a prática de atos eletrônicos. Mas a palavra final ainda é do Agente Humano.
P: O que são ‘robôs’ hoje? Porque quando se fala essa palavra logo vêm à mente máquinas que vemos nos filmes. Mas me parece que há robôs de formas variadas, e até mesmo sem forma, no caso dos algoritmos. O senhor poderia nos explicar então o que é um robô hoje e como a IA usa os robôs?
FHMO: Os robôs envolvem o emprego de sensores e atuadores. Os algoritmos seriam os comandos que fazem os robôs executarem as atividades. Hoje é comum o emprego da palavra robô muitas vezes para designar o que na verdade é um algoritmo. É que o simbolismo da palavra facilita a concretização do entendimento.
P: Em relação ao robô Victor. Em quais tipos de casos o uso dele é atribuído?
FHMO: Quando os processos ou recursos chegam ao STF, ele auxilia na categorização da temática daquele processo, possibilitando um direcionamento mais rápido.

P: Os robôs substituirão os juízes?
FHMO: A ideia central hoje é a de que os robôs habilitados pela IA auxiliarão o agente humano (juiz) no processo de tomada de decisão. O aspecto fundamental diz respeito ao nível de confiança (legitimidade democrática) que ainda depositamos no ‘resultado esperado’ dos juízes. Porém, se um dia, o resultado esperado apresentado pela máquina for superior ao do agente humano, e se isso se traduzir em confiabilidade pela sociedade, poderíamos ter um cenário das máquinas decidindo.
P: Além do judiciário, onde a IA já vem sendo usada, e quais suas vantagens e problemas até agora vistos?
FHMO: Todos os dias utilizamos ferramentas que empregam IA. Quando fazemos uma busca no Google, por exemplo, estamos utilizando inteligência artificial. Uma das vantagens da IA seria possibilitar ao agente humano a execução de atividades que demandem um nível mais sofisticado de conhecimento, atribuindo à máquina aquelas atividades mais repetitivas, parametrizadas, embora se busque, também, o desenvolvimento de algoritmos que realizem atividades cognitivas, com o emprego da computação cognitiva. Em relação aos riscos, podemos citar o desenvolvimento de armas autônomas e a priorização da lógica em detrimento ao lúdico.
P: Quais são os principais problemas que vem sendo apontados em relação ao avanço da IA? Há dilemas éticos?
FHMO: Um dos dilemas enfrentados hoje diz respeito ao processo de tomada de decisão por armas autônomas, inclusive os drones. A máquina não considera em seu processo de tomada de decisão alguns valores inerentes ao agente humano. A título de exemplo, uma das conceituações de IA diz que a inteligência artificial se refere ao desenvolvimento de agentes racionais cujas ações maximizam a utilidade esperada considerando o histórico de percepção… se o histórico de percepção (os dados que alimentam ou alimentaram a IA) estiver enviesado, o resultado pode ser um algoritmo com percepção racista.
P: Há a possibilidade de pessoas perderem o emprego para robôs, e por exemplo assistirmos uma nova revolta humana contra as máquinas, como já se viu com a revolução industrial?
FHMO: Sim, essa possibilidade existe. Estamos no contexto da quarta revolução industrial, na revolução do aprendizado de máquina, e hoje se busca o desenvolvimento de algoritmos que façam atividades humanas não apenas repetitivas. Na área jurídica, por exemplo, temos soluções que já executam atividades que antes apenas o agente humano/advogado executava. Já se discute, inclusive, uma renda básica universal para as pessoas que ficarão desempregadas pelo emprego de robôs em atividades que antes eram executadas apenas por médicos e advogados.
P: Em quais outras áreas o uso da IA já está se implementando no Brasil? E como o Brasil é visto em relação ao resto do mundo quando o assunto é a IA?
FHMO: Os EUA e a China dominam as aplicações nessa área, inclusive no que tange ao emprego de IA no espectro da guerra cibereletromagnética. Temos diversas startups revolucionando o ecossistema em que estão inseridas, seja na esfera financeira, com as fintechs, seja no agrobusiness. Aqui a revolução é conduzida pela esfera privada. Em relação a área militar, o investimento que temos, em termos relativos aos países com a mesma dimensão que o Brasil, é o menor do Mundo. O exército possui o ComdCiber, Comando de Defesa Cibernética, que é responsável pela resposta a um eventual ato hostil que envolva guerra eletrônica.
P: Por conta dessa falta de investimento o Brasil pode ser considerado vulnerável? Quais são os riscos que isso pode trazer?
FHMO: Infelizmente, a vulnerabilidade, no Brasil, se dá em níveis considerados críticos. Não temos a capacidade de responder de forma proporcional aos ataques considerados atos de guerra eletrônica que sofremos diariamente. O próprio Estados Unidos lida em seu cotidiano com ataques oriundos de competidores estratégicos, com todo o poder e estrutura que possui. Isso dá uma dimensão do que ocorre nos bastidores das disputas estratégicas entre os Estados, disputa que o Brasil também faz parte. No Brasil há um foco muito grande na guerra cinética… paulatinamente estamos avançando no espectro cibereletromagnético.
P: Falta muito para Brasil estar altamente preparado essa revolução dos dados? Ou ele tende a ficar entre os menores por mais tempo?
FHMO: O Estado deveria fomentar e conduzir a revolução tecnológica, mas, infelizmente isso não ocorre. As empresas estão se movimentando, porém, nas disputas que ocorrem nessa área, alguns atores estatais também atuam. Por isso seria importante a presença do Estado neste processo, sob pena de ficarmos totalmente dependentes das tecnologias disponibilizadas pela China e EUA.
P: Parte do desenvolvimento da IA hoje parece vir do aprendizado que os algorítimos têm a partir da grande massa de dados que os humanos disponibilizam para as empresas em seus dispositivos digitais. Aquilo que alguns vêm chamando de ‘novo petróleo’, por estar gerando muito dinheiro. O senhor poderia traçar uma relação entre esse aprendizado e o direito à privacidade de dados dos usuários? Um pode existir sem o outro?
FHMO: Há Bigtechs que são braços de alguns países que são competidores estratégicos do Brasil. De fato, os dados representam o novo petróleo, já que o processo de mineração dos dados gera Informação e informação gera poder, que se converte em ativo financeiro. Os dados que produzimos diariamente são estruturados e negociados ou utilizados comercialmente. A Lei Geral de Proteção de Dados objetiva regulamentar a utilização dos dados dos brasileiros, porém ainda há muita dúvida acerca de sua efetividade.
P: Por quê existe dúvida da efetividade da Lei Geral de Proteção de Dados?
FHMO: O código legal (o texto jurídico), para ter efetividade, eficácia, depende de uma série de fatores, dentre eles o poder de fiscalização e tecnologia com capacidade de controle, o que o Brasil não tem.
P: Narrativas despóticas na literatura, cinema ou outras artes já descreverem um futuro no qual as máquinas dominam os humanos. Há que pense a IA como um caminho para isso. Mas há também quem veja a IA como apenas um meio para uma nova etapa da dominação de alguns grupos de seres humanos sobre outros. Qual o papel o senhor entende que ela joga no desenho do futuro da humanidade?
FHMO: A IA é um dos mecanismos que, isoladamente ou com a biotecnologia, nos conduzirá ao transumanismo. Hoje se fala da superação do homo sapiens pelo homo digitus, ou seja, no surgimento de uma nova espécie, superior à humana. A solução para evitar a dominação total seria proporcionar a todos está evolução, ou seja, todos deveriam ter acesso aos implantes e tecnologias inerentes à nova espécie.
P: O quão presente a IA estará na vida das pessoas daqui há 10 anos?
FHMO: Hoje a IA já se faz presente em quase todos os momentos de nossas vidas e daqui 10 anos, com o avanço da “internet das coisas” e da “computação quântica”, há quem acredite que estaremos dando os primeiros passos concretos para a singularidade.
P: Porque hoje as pessoas devem se interessar pelo assunto “Inteligência Artificial”?
FHMO: A IA pode ser moldada não apenas pelo exemplo de nossa força, mas pela força de nosso exemplo. Entendê-la nos possibilita ensina-la, molda-la ou a moldamos, ou ela nos moldará.