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Reportagem 102

Jornada dupla 

Em 2024, sobreviver em Campo Grande e garantir o sustento da família tem se tornado um desafio para as mães que precisam vivenciar jornadas extras de trabalho

Texto: Beatriz Barreto | Roberta Dorneles
Fotos: Isadora Colete

Infografia: Eliel Dias | João Antonio


Descansar? Não. Deixar os seus objetos pessoais e do restante da família organizados antes do dia seguinte começar. Acordar cedo para preparar o café da manhã, em seguida, levar os filhos para escola antes de ir para o trabalho. Depois, trabalhar durante todo o período matutino e vespertino. Sair do trabalho, buscar as crianças e levar para casa. Descansar? Não, cozinhar para fora durante a noite para complementar o orçamento. Chegar em casa, preparar a janta e ajudar os filhos com as tarefas escolares. Lavar a louça e enfim, descansar? Não. Deixar os seus objetos pessoais e do restante da família organizados antes de outro dia começar.

A falta de descanso é só um dos problemas relacionados às jornadas extras de trabalho que afetam principalmente as mães. Garantir a renda em um ou dois ofícios diferentes, cuidar dos afazeres domésticos e de questões pessoais junto aos filhos, faz parte da rotina de muitas mulheres. Segundo dados divulgados em 2022, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Contínua) do tema, Outras Formas de Trabalho, as mulheres dedicaram naquele ano, 17h semanais aos cuidados de pessoas e trabalhos domésticos. O tempo médio destinado a essas atividades também foi maior em comparação aos homens no quesito de ocupação, considerado quando há o exercício de alguma atividade profissional, seja formal ou informal, remunerada ou não. Enquanto as mulheres consideradas não ocupadas gastaram 24,5h nos trabalhos de casa, os homens não ocupados gastaram 13,4h. Já as mulheres ocupadas gastaram 6,8h a mais do que homens ocupados. 

A multiplicidade de funções das pessoas que trabalham para ganhar dinheiro, mas que também em um segundo turno são responsáveis por exercer trabalho doméstico não remunerado, pode ser definida como dupla jornada de trabalho. A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define esse trabalho não remunerado como o tempo gasto para cuidar de outros membros da família (sejam crianças, idosos ou cônjuges, por exemplo) ou mesmo cozinhar, limpar a casa e lavar a roupa. Tais atividades são de grande importância, mas nada acrescentam ao índice central de crescimento da economia do país, o Produto Interno Bruto (PIB). Caso fossem consideradas e contabilizadas, segundo a Fundação Getúlio Vargas do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE), em 2022 acrescentariam 12,1% ao valor anual do índice e 8,2% só na região Centro-Oeste. Pois, de acordo com o PNAD Contínua do mesmo ano, 34,9% das mulheres realizavam dupla jornada.

O sono regular está entre as necessidades básicas mais prejudicadas na vida dessas trabalhadoras. A esteticista, Caline de Souza Lopes, 36 anos, tem dois filhos e afirma que aos finais de semana, quando precisa acordar cedo para produzir seus doces e salgados, dorme apenas quatro horas durante a noite. Ela trabalha em uma gráfica e também empreende com vendas de confeitados. O lazer também entra para a lista das áreas impactadas. [Sobre lazer, confira a reportagem Tempo para liberdade nesta mesma edição].

Sobrecarga solo

Carmem Rosania da Silva, 44 anos, e Divanir Teresinha Vicente, 52 anos, são exemplos de mães que já precisaram trabalhar em dois empregos para poder liderar a finança familiar após a separação, quando seus filhos eram pequenos. No terceiro trimestre de 2022, o IBGE revelou que as famílias de chefia feminina com filhos representavam 34,2% das demais configurações familiares existentes, ou seja, mais de 11 milhões de pessoas. Sendo que dessas, 14,7% eram monoparentais, ou seja mães solo e apresentaram renda média de R$2.833,00. Já as famílias negras chefiadas por mulheres, 6,8 milhões, receberam ainda menos, uma média de R$2.362,00.

Outra limitação que afeta a saúde das mães solos, é o estresse constante ocasionado por ter que suportar a pressão financeira. “Eu não estou bem, inclusive estou com um encaminhamento para fazer terapia”, desabafa a graduanda de pedagogia, Letícia Campos de Almeida, 24 anos, que tem dois filhos pequenos e lida sozinha com as responsabilidades e as despesas da família. Ela enfrenta uma jornada tripla de trabalho. Estagia em tempo integral na creche, à noite encara os afazeres domésticos e cuidados dos filhos e, aos finais de semana, vende pães e salgados para compor a renda. Letícia ganha por mês pouco mais de R$2.000,00 reais, incluindo o valor da renda extra informal. Recebe também a pensão das crianças que considera não ser capaz de suprir todos os gastos. “Meu salário não é suficiente para eu conseguir dar a vida que eu gostaria para os meus filhos, precisaria de no mínimo uns R$5.000,00”. 

Letícia cuidando do seu filho após um dia de trabalho
“Meu salário não é suficiente para eu conseguir dar a vida que eu gostaria para os meus filhos”

Dados divulgados pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) demonstram que R$6.832,20 seria o valor do salário mínimo ideal para conseguir manter uma família de quatro  integrantes em março de 2024, sendo que o valor oficial do mesmo período foi R$1.412,00, ou seja, inferior ao adequado. A economista e supervisora técnica do escritório regional do DIEESE em Mato Grosso do Sul (MS), Andreia Ferreira, afirma que a estimativa é válida também para a capital, onde a cesta básica custa em média mais da metade do salário, R$730,02. O estudo utiliza como fundamento a Lei Nº399/1938 que estabelece que o gasto com alimentação de um trabalhador adulto não pode ser menor do que o custo da cesta básica de alimentos. “Consideramos a família composta por dois adultos e duas crianças, que representam um adulto”. 

Em 2021, conforme as tabelas amostrais da PNAD Contínua feitas a partir de cálculos de pontos percentuais (pp), ou seja, por apontamentos que unificam as diferenças entre duas porcentagens, as mães com baixo nível escolar tiveram 51,8 (pp) a mais de chance em relação aos homens de não participarem da força de trabalho e aquelas com filhos recém-nascidos, apresentaram 49,6 (pp) a menos de probabilidade de estarem no mercado de trabalho do que quando comparadas aos pais. Essa probabilidade só aumenta com o passar dos primeiros cinco anos de vida dos filhos, quando a fase da primeira infância chega ao fim. Elas só conseguem retornar a patamares semelhantes aos antes da maternidade, quando seus filhos se tornam adultos e independentes.

Antes de seu turno de trabalho remunerado, Beatriz cuida de sua filha e da casa

Beatriz Katharynne Sanches, 22 anos, tem o ensino médio completo e conta como foi difícil lidar com as demandas trabalhistas que surgiram após o nascimento de sua filha, que completou um ano em 2024. Assim que o seu  período de licença maternidade acabou, era preciso retornar para a rotina presencial, mas a bebê ainda estava em fase de amamentação e não se adaptou ao leite de fórmula infantil. Por ter que aceitar se distanciar da sua filha durante essa fase de desenvolvimento e suportar a falta de empatia dos empregadores que a colocaram para atuar em outro setor, Beatriz teve crises de ansiedade e tentou ao máximo se adaptar, mas decidiu pedir demissão. “Naquele momento nasceu uma criança e nasceu uma mãe. Eles não tiveram esse cuidado com meu psicológico”.

A dificuldade de conciliar a vida pessoal e a profissional faz com que muitas mães saiam da força de trabalho, isto é, faz com que mulheres com 14 anos ou mais, não produzam bens e serviços econômicos devido a falta das condições técnicas, físicas ou emocionais necessárias para a realização de um determinado trabalho, formal ou informal. A vulnerabilidade do contexto econômico e social fica mais evidente quando elas optam por ocupações informais que pagam menos, mas que são mais flexíveis quanto a horários, como as proporcionadas por atividades freelancers ou empregos de meio-período, por exemplo. Já de acordo com o DIEESE, 43,9% do público feminino negro constituinte das famílias monoparentais com filhos chefiadas por mulheres estavam fora do mercado de trabalho em 2023, no que se refere a quase três milhões de pessoas. Os outros 56,1% de ocupadas estavam empregadas de maneira informal, sem acesso a nenhum benefício trabalhista.

Liberdade financeira

Algumas mulheres promovem os seus próprios métodos para adentrar ao mundo dos negócios. O relatório do tema Empreendedorismo Feminino, realizado no quarto trimestre de 2023 pelo Serviço de Apoio a Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) revelou que elas representavam 33,9% dos empregadores e trabalhadores brasileiros por conta própria, formais ou informais, ou seja, 10,1 milhões de pessoas. Dessas, 67% tinham filhos, 49,8% eram pretas e 52,1% eram chefes de família. 

A economista, coordenadora nacional de empreendedorismo feminino do Sebrae e idealizadora do programa Desenvolvendo Empreendedoras Líderes Apaixonadas pelo Sucesso (Sebrae Delas), Maristela França, comenta a respeito da iniciativa criada em MS que se tornou referência em todo o país. “Hoje todas as ações do Sebrae MS voltadas às mulheres atendem também às mães. Elas entram no mercado empresarial, formam as suas empresas e muitas delas oferecem produtos e serviços que vem ao encontro de alguma necessidade que ela detectou ao ter um filho e que não encontrou no mercado”. A pesquisa nacional divulgou que no estado a porcentagem de empreendedoras foi de 36,9% e para favorecer a economia local, Maristela destaca que há 11 anos o Sebrae MS realiza redes de apoio e compartilhamento pensadas para as empreendedoras se unirem e comprarem coisas umas das outras. 

As mães loucas

Quando a alternativa é a solução, ideias transformadoras ultrapassam as expectativas. Assim, surgiu o coletivo Madre Loca em Campo Grande, em 2015. Ele é composto por mulheres que, em conjunto, realizam atividades comerciais diferenciadas, contando em 2024 com a participação de 16 integrantes que não precisam pagar taxa para estarem inseridas nas ações. A artista visual e fundadora Erika Pedraza, além de professora é mãe, incentivadora e vislumbrou nas praças a possibilidade de espaços oportunos para empreender na companhia de outras mulheres que compartilham dos mesmos pensamentos feministas. Pretende com o coletivo impulsionar a autonomia financeira e promover o auxílio que compreende todas as adversidades que só são vivenciadas por elas, as mães loucas. 

Loucura como adjetivo para a proposta de trabalho que garante maior flexibilidade quanto aos horários. Incomum no meio laboral. No coletivo, as madres podem contar com a presença dos filhos enquanto vendem as artes ou produtos e fazem suas apresentações, sem repreensão e caso não possam comparecer a algum evento devido a imprevistos, são acolhidas e respeitadas. “Às vezes as mães não têm com quem deixar seus filhos ou tem que pagar para cuidar, mas não tem condições de arcar com essas despesas e isso se torna desmotivador. A gente permite por empatia e economia”, acentua a idealizadora. A artista plástica Márcia Regina Lobo, 47 anos, vende roupas e acessórios de crochês no coletivo, é provedora do lar e aprova esse dinamismo. “Lá é uma rede de apoio, tanto emocional quanto financeira, onde tentamos nos ajudar de várias formas”.

Mirian cuidando do seu filho

Na opinião da graduanda em Artes Visuais, Suelen Fernanda Rocha, 30 anos, mãe de três filhos e membro do Madre Loca, a sobrecarga é um empecilho. “Querem que trabalhemos como se não tivéssemos filhos e criemos nossos filhos como se não tivéssemos um trabalho”, lamenta. Já a artesã e publicitária, Mirian Santos Costa, 45 anos, mãe de um filho e responsável pelo cuidado de duas idosas na família, é uma das integrantes que comercializa artes em geral. Para ela, o coletivo é importante para dar espaço, voz e motivação para que as mulheres criem seus filhos sem deixar a arte de lado e ainda sim, conquistem renda. Miriam recebe apoio do marido com as demandas, tal como Suelen, mas acredita que o tempo que é tomado das mães por atuar em várias jornadas retira o potencial de uma vida plena e atrapalha a dignidade da pessoa. “Para sobreviver estamos perdendo a liberdade, as liberdades, todas as liberdades. De criar, de existir, de manifestar e de ser por exemplo, para ter o básico”.

“Querem que trabalhemos como se não tivéssemos filhos”
Mirian mostrando uma das suas artes
“Para sobreviver estamos perdendo a liberdade, as liberdades, todas as liberdades. De criar, de existir, de manifestar e de ser por exemplo, para ter o básico”