Texto: Mauro César Silveira
Ilustração: Alicia Peixoto
Nenhuma adversidade, nenhum obstáculo, nenhuma pedra no caminho. Nada abalou o ânimo da primeira turma do curso de jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) diante do imenso desafio de produzir a pioneira edição do Projétil. Era um quadro verdadeiramente desalentador: infraestrutura mais do que precária; mal-estar, para não dizer boicote, dos setores mais retrógrados da instituição; e um dos editores responsáveis – o meu caso em particular – aprendendo, a duras penas, como dar aulas. Ainda recordo o dia, ou melhor, a noite – o curso nasceu noturno – quando o hoje consagrado jornalista investigativo Rubens Valente reagiu à minha esfarrapada desculpa para a pouca familiaridade com a lousa, alegando que eu era um repórter, com certa experiência, e pouco poderia oferecer além de partilhar minhas vivências profissionais. “Aqui, eu sou aluno e o senhor é o professor, então eu quero aula”, bradou ele, que, a exemplo de outros colegas, já atuava em meios de comunicação da região. Se eu segui em frente e persisti, teimosamente, como professor, devo isso ao repto do Valente.
Após a escolha do nome em votação na sala de aula, acolhendo a proposta do acadêmico Adriano Furtado, o grupo precursor encarou todas as deficiências com garra e determinação. Da improvisada redação, numa sala minúscula com carteiras apertadas e velhas máquinas de escrever, escondida nos cantos do então Centro de Ciências Humanas e Sociais, às madrugadas insones em serviço terceirizado de diagramação e montagem das páginas para composição e impressão, tudo exigia um esforço não apenas intelectual, mas sobretudo braçal. Os textos digitalizados precisavam ser impressos, cortados e colados em pranchas, no desgastante processo de paste-up das páginas. Trabalho arduamente artesanal nos tempos em que as redações das grandes capitais brasileiras já haviam sido informatizadas.
Quando a primeira edição do Projétil saiu às ruas, em setembro de 1990, a repercussão foi enorme na capital do Mato Grosso do Sul. Surgia um canal de comunicação impresso vibrante, com agudo compromisso social, resultado de um processo coletivo absolutamente livre, independente e sem amarras, como no melhor jornalismo daqui ou do Quirguistão. Melhor dizendo: como no legítimo jornalismo. Sob a orientação dos professores Edson Silva, Eron Brum, o saudoso Mario Ramires, mais o autor deste texto, a capa destacava os conchavos entre as oligarquias políticas do estado. Uma foto evidenciava as boas relações entre dois candidatos que se apresentavam na mídia regional como opositores um ao outro, os conservadores Gandi Jamil e Pedro Pedrossian. Falsa disputa, como denunciou o título da primeira página do Projétil: O jogo de cena na terra dos compadres. Alunas e alunos, professores e a também saudosa professora Maria Francisca Marcello, a coordenadora do curso, concederam entrevistas à TV Morena, comentando essa nova opção jornalística em Campo Grande.
Na minha visita ao curso em novembro de 2016, pude rever, depois de algum tempo, a publicação que ajudei a criar. Constatei que o Projétil continuava honrando sua história, afirmando, com vigor, seu compromisso com os direitos humanos e a defesa da cidadania.
Uma presença na equipe de produção mais recente deve ser destacada: a do grupo “Pensar o Desenho”. A aliança entre arte e texto, a simbiose entre forma e conteúdo, sempre foram perseguidas pelo jornalismo de qualidade, mesmo em suas primícias. O excelente resultado estético das capas tem sido uma expressão viva desse velho objetivo jornalístico, o de atrair a leitura, seja impressa ou digital. Nos difíceis momentos de reconstrução do país, com o jornalismo perdendo cada vez mais protagonismo nas grandes empresas de mídia, marcadas por crescentes demissões e a absoluta precarização do já combalido ambiente profissional, a esperança brota em experiências solidárias, coletivas, independentes. O Projétil faz isso, e há muito tempo. Exatas 100 edições. O jornalismo resiste, dentro e fora das universidades. É reconfortante.
Mauro César Silveira foi professor do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da UFMS de 1990 a 2007. Atualmente desenvolve pesquisa em História do Jornalismo na Espanha, com interlocução na Universidade de Sevilla.