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Opinião 102

Marias e Helenas não brincam de casinha

Texto: Sandy Ruiz
Ilustração: João Antônio


Brincar de casinha é um jogo de imaginação que ajuda a construir a compreensão sobre a vida adulta. Constituir família, trocar, alimentar e ninar bonecas, cuidar das coisas da casa, imaginar uma rotina com as responsabilidades cotidianas dos mais velhos. Embora essas atividades sejam, na infância, um passatempo, em algumas camadas da sociedade a brincadeira se torna realidade. Muitas meninas e adolescentes entram na vida adulta muito cedo. Apesar do avanço da luta e dos direitos das mulheres e sua liberdade, em 2023, segundo o ranking mundial do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil ainda foi o sexto país com maior número de mulheres que se casaram antes dos 18 anos.

O problema do casamento infantil é algo que atinge quase que exclusivamente as meninas. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, de 43 casamentos de menores de 18 anos, 40 são de adolescentes do sexo feminino. Isso levanta diversas questões sobre a proteção das mulheres e, inclusive, se ela é de fato efetiva, já que para a maioria dessas jovens o casamento não é uma escolha consciente, mas o único caminho visível.

Segundo a Convenção sobre Direitos da Criança (CDC) o conceito de casamento infantil é qualquer união formal ou informal antes dos 18 anos de idade. No sexto lugar do ranking, a cultura de união estável entre crianças e adultos, no Brasil, é uma realidade escancarada.

Enquanto algumas garotas planejam o futuro e sonham com experiências como faculdade, carreira profissional e viagens, a perspectiva de meninas que se casam na infância tende a ser limitada. Vindas em sua maioria da pobreza, muitas delas enxergam no relacionamento uma chance de fugir de sua própria condição, mas sem perceber, acabam simplesmente trocando as grades de sua prisão ao deixar seus objetivos e sua liberdade de lado, seja pela casa, marido ou até mesmo uma gravidez. E é justamente essa falta de liberdade para se dedicar a um sonho ou a um futuro profissional que tende a perpetuar diversos problemas relacionados ao casamento infantil.

A sociedade que assume uma posição, muitas vezes influenciada pelos crescentes movimentos religiosos e conservadores, também tem uma parcela de culpa. Ao invés de incentivar discussões sobre sexualidade, prefere empurrar uma criança para um casamento quando ela tem suas primeiras experiências na vida sexual com a desculpa de “manter uma boa imagem” para ela e para a família. Como foi o caso de Maria (ou de tantas Marias), que iniciou a vida sexual aos 15 anos. Quando o rumor começou a se espalhar na cidade pequena, ela desabafou com os pais e, no lugar de conselhos, foi fortemente repreendida. As duas únicas escolhas propostas foram o casamento ou a vergonha diante da sociedade, e que “Deus os livrasse se ela tivesse engravidado também”.

Em vários casos não existe a preocupação (física ou emocional) com a criança ou a/o adolescente, mesmo que ela esteja assumindo uma responsabilidade maior do que sua idade, a ideia é que é capaz de suportar. Se atualmente diversas mulheres adultas questionam a sobrecarga de um casamento, como é possível esperar que essas meninas em formação assumam essa posição?

Não é tão difícil conhecer alguma menina que na adolescência teve um relacionamento com alguém mais velho. Helena (e tantas outras Helenas) conta que na sua família isso era visto como algo comum: sua mãe se casou com 17 anos com seu pai dez anos mais velho, o que também aconteceu com sua avó e suas tias. Não foi surpresa, então, quando Helena se casou tão cedo, a diferença é que ao invés de um casamento saudável e duradouro, divorciou-se aos 22 anos com um filho pequeno para cuidar. Hoje, sonha em mudar sua vida para correr atrás de sonhos que nem sabia que tinha quando se casou.

Marias e Helenas só terão uma vida livre, com sonhos e conquistas, quando a sociedade parar de naturalizar o casamento infantil. A infância deve ser preservada e o caminho para isso é a proteção das crianças, com a liberdade para brincar, apenas brincar, de casinha.