Com inovações nas políticas públicas e representatividade, foram necessárias 94 edições para que “Correntes Demais” se tornasse “Mérito Negro, Privilégio Branco”
Texto: Brunna Paula | Felipe Arguelho | Heloisa Duim
“Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Opinião (Ibrape) entre 25 de outubro e 10 de novembro, 10% dos negros do Centro-Oeste gostariam de mudar de cor”. Esse dado foi revelado em uma reportagem feita para o Jornal Laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). No primeiro ano de atividade do Projétil, em 1991, a matéria “Correntes demais” retratou os desafios do movimento negro brasileiro na luta pela afirmação da raça.
O levantamento foi feito a partir de uma reivindicação do Grupo Trabalho e Estudo Zumbi (TEZ). Naquele contexto, as pessoas negras entrevistadas descreveram o sofrimento e a dificuldade que marcavam a busca por melhores condições de vida.
A precariedade em que viviam, levava-os a uma idealização de futuro melhor, caso tivessem nascido brancos
Trinta anos depois, em 2021, segundo análise realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população negra representa 56% dos brasileiros. Isso expõe um aumento de 32% em relação aos indivíduos que se declaram pretos e quase 11% dos que se declaram pardos, nos últimos dez anos. Dessa forma, retomamos a visão do Grupo TEZ, em entrevista feita com a presidenta da entidade, Bartolina Ramalho Catanante, que também é doutora em Fundamentos da Educação.
Ela afirma que mesmo com esse avanço, ainda existem pessoas negras que gostariam de mudar de cor. “A discriminação ainda existe. A gente parte desse princípio. Mas eu penso que a autoestima, a identidade e a representatividade são construídas, o que faz com que as pessoas negras hoje consigam se expressar e se querer”, destaca.
Bartolina conta que nesses 38 anos de existência, o grupo acompanhou as evoluções das leis e da autoestima do povo negro, apesar da desigualdade ainda vivida. “É lógico que a gente comemora essas conquistas, só que nós ainda observamos a grande disparidade e a desigualdade que sofremos”. Vale destacar que a maioria dessas vitórias foi alcançada em conjunto com o Movimento Negro, que nunca se calou.
Em contraponto, nós, pessoas negras, ainda somos minoria em lugares considerados de elite e de poder, causa e consequência do racismo
“Por muito tempo eu disse que era branco e chegava a brigar quando falavam que eu era preto. Talvez fosse pelo medo de ser inferiorizado, medo de ser acusado de algo que eu não tinha feito, medo de ser seguido ou o pior, vergonha de ser quem eu era”, reconheceu Felipe Arguelho, um dos repórteres desta reportagem. “Hoje, entendo que tenho que ter orgulho de quem eu sou, da minha cor e reconhecer toda a luta dos meus ancestrais para que eu pudesse estar aqui escrevendo sobre isso”.
A presidenta do TEZ ainda pontua que se na década de 1930 o Brasil tinha decretos proibindo o ingresso de pessoas negras nas escolas, hoje, existe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 10.639/2003, que altera o currículo e insere a negritude, a história e a cultura afro-brasileira e africana nessas instituições. São políticas como essas que dissipam aos poucos a discriminação e voltam o olhar da sociedade para o debate.
Na visão do professor do curso de História da UFMS, Lourival dos Santos, a encadeação da falta do autoconhecimento começa nas instituições de ensino. O especialista critica a maneira como as raças são abordadas na educação básica, quando o negro é representado exclusivamente como escravo. O tema, marcado sempre por imagens de negros sendo torturados, gera na criança a autonegação de sua origem. Essa reação passa a se intensificar quando, na escola, a questão de raça termina na Lei Áurea, sem abordar o Movimento Negro e o avanço até os dias atuais.
“Compensação” histórica
Quando falamos em avanço, tratamos da obrigatoriedade de reparação que o Estado tem com a população negra. É olhando para trás que reconhecemos os impactos negativos deixados na trajetória desse povo. Apesar da precariedade no auto reconhecimento na década de 1990, que persiste nos dias de hoje, esse cenário tem enfrentado mudanças.
Políticas públicas como a Lei de Cotas n°12.711/2012 e outras legislações como a Lei Nº 14.532, que equipara injúria racial ao crime de racismo, além da implementação de um programa que institui cotas raciais em 30% dos cargos de confiança, são iniciativas que impulsionam a liberdade de se reconhecer como indivíduo negro.
Outra medida foi a criação do Ministério da Igualdade Racial. Criado este ano pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o órgão tem o objetivo de combater a discriminação racial e promover a igualdade de oportunidades para as pessoas negras. O Ministério é lançado 20 anos após a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
O professor Lourival contrapõe que essas iniciativas só foram criadas no momento em que certos grupos negros pararam de se sentir inferiores aos brancos.
Ele afirma que o Racismo Científico, sancionado em séculos passados, fazia com que os negros se curvassem aos “superiores”
“Isso era uma estratégia europeia de subordinar e explicar cientificamente a inferioridade das raças. Porque se você tem um polo que se convence que é superior, você precisa fazer o outro polo acreditar que ele é inferior para se deixar dominar”.
É na tentativa de desconstruir essa hierarquização de raças que o Brasil formaliza, ao longo do século XXI, as chamadas “políticas de compensação”. Voltadas à população negra, o Estado busca compensar esses indivíduos pelo prejuízo infringido ao longo do tempo, respondendo à pressão do Movimento Negro.
Já citada, a Lei de Cotas, que completou dez anos no dia 29 de agosto de 2022, prevê a reserva de vagas para grupos específicos (como pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas – PPI e candidatos de baixa renda). De acordo com dados apurados pela Associação Nacional das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o número de estudantes negros e pardos aumentou de 41% do total de matrículas da rede federal, em 2010, para 52%, em 2020.
Já no mercado de trabalho, em 2023, o governo Lula instituiu a política de cotas raciais em 30% dos cargos comissionados no país. Assinado no Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, 21 de março, o objetivo do decreto é ampliar a presença de negros em comissão e funções de confiança no Poder Executivo, dando espaço para que pessoas como nós se sintam representadas dentro do governo federal.
Negritude no poder
Apesar dessas inclusões, a pessoa negra é, muitas vezes, vista como forma de cumprimento de cota, impedindo que muitas políticas públicas sejam efetivadas. Rosângela Hilário, conselheira de Desenvolvimento Econômico, Social e Sustentável da Presidência da República, conta que ocupar um local de poder nem sempre é fácil. “Algumas pessoas me dizem que se eu fosse uma mulher branca, muito provavelmente eu já seria ministra. É verdade. Porque normalmente as mulheres brancas têm uma rede de contato de proteção que eu não tenho”.
A conselheira indica que ocupar este local é enfrentar uma luta diferente todos os dias. Na Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC), onde é uma das coordenadoras, Rosângela diz ter proposto uma ação denominada “21 dias de ativismo contra o racismo” e chocou-se com o resultado:
em mais de 3 mil cientistas, apenas 21 eram negras.
Mesmo com as divergências que ainda enfrenta, a ativista ressalta que quando um negro rompe uma barreira, ele viabiliza a passagem para outras gerações, assim como Zumbi dos Palmares, Nelson Mandela, Gloria Maria e outros. São nomes que representam não só negros em posição de destaque, mas também servem de referência à autoidentificação do povo preto e pardo.
“O fortalecimento da autoestima vem de uma geração que foi educada para isso e o papel da família nessa discussão é fundamental. Eu por exemplo, tive uma avó que disse ‘você vai ter que lutar a vida inteira, porque está no seu cabelo, está na cor da sua pele, a sua única chance é estudar e criar argumentos para debater com essas pessoas”, destaca Rosangela.
Sede de se encontrar
O espaço de poder ocupado por pessoas negras, apesar de marcado por dificuldades, é composto pela representatividade. São personalidades como Rosângela que servem de inspiração para o entendimento de jovens que não têm o debate racial como pauta no núcleo familiar. Assim foi o caso da estudante e militante do Movimento Negro Unificado, Cristiane Oliveira.
Aos 28 anos, ela se auto reconhece como mulher negra, mas o pó compacto de tom mais claro marcou sua juventude. Rodeada por colegas brancas na escola, buscou adequar-se com maquiagens e alisamentos. A estudante se propôs a pensar em raça apenas cinco anos atrás, e foi na universidade que passou a emergir dentro desses debates.
Assim como a nossa entrevistada, eu, a repórter Brunna, passei muito tempo da minha infância me escondendo atrás de alisamentos. O cabelo cacheado, que hoje não escondo, antigamente era meu maior inimigo. E da mesma forma que ela, passei a me identificar com aqueles à minha volta só depois do ingresso na faculdade. Atualmente, me auto reconheço como parda. A representatividade de terceiros me fez reconhecer a mulher que sou hoje.
Os fatores que implicam o não pertencimento da pessoa negra fizeram Cristiane questionar suas raízes. “Eu não sou tão escura para ser negra, e eu não sou tão clara para ser branca, e existe esse não lugar dos pardos no Brasil. É o limbo, e você não sai do limbo se você não tiver informação”, declarou.
Eu, a repórter Heloisa, compartilho do mesmo sentimento. Sigo a definição que consta em minha certidão de nascimento e nunca fui questionada ou me questionei sobre quem eu sou, até escrever essa reportagem. Pessoas negras me consideram parda. Pessoas brancas me consideram branca. Essa produção me abriu os olhos para a dificuldade de identificação quando o assunto é raça. Hoje, com sede de me encontrar, busco me reafirmar como a mulher parda que sou.
“Busquem andar com os seus. Quando estamos com aqueles que fazem parte do nosso grupo, enxergamos as coisas de outra forma, porque enquanto você está em um meio onde só a branquitude é presente, ele se torna pouco questionador”, aconselha Cristiane àqueles que têm dúvidas sobre autodefinição. Ela ressalta, contudo, que é importante viver além da própria bolha. “Convivendo com os meus, eu vivo o mundo. Convivendo com os outros, eu vivo o universo”.
Correntes por mais
Apesar do progresso indiscutível da edição 6 do Projétil de 1991, até esta edição 100, a luta promovida pelo Movimento Negro não está nem perto do fim. Embora atualmente a rede federal brasileira seja composta majoritariamente por estudantes negros, em Mato Grosso do Sul essa informação não condiz com a realidade.
Segundo levantamento indicado pela plataforma UFMS em Números, em 2022, apenas cerca de 36% dos ingressantes eram pretos e pardos. Entre as classificações de raça, existe ainda uma considerável porcentagem de universitários definidos como “não declarado(a)”, tornando o dado real desconhecido.
O historiador Lourival dos Santos indica a UFMS como um exemplo de instituição precária em relação às políticas afirmativas direcionadas à permanência desses acadêmicos. O pesquisador afirmou que até 2022, a Universidade não possuía sequer registros de quantos negros estavam matriculados. O número de egressos continua sem ser calculado.
Dessa forma, o sucesso desses acadêmicos nas instituições se limita apenas à sua aprovação. Com a dificuldade de se manterem na graduação devido aos problemas financeiros e às dificuldades de aprendizado, a maioria acaba desistindo, o que faz com que a porcentagem de formandos seja inferior a de matriculados.
Essas e outras divergências em políticas públicas também são destacadas por Bartolina. Apesar do recente decreto do presidente Lula, que institui pelo menos 30% dos cargos de confiança para pessoas negras, ela afirma que é possível contar nos dedos a designação dessas pessoas em Mato Grosso do Sul. O mesmo ocorre com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
As conquistas são muitas, mas as políticas afirmativas continuam longe de serem dispensáveis, graças ao nível de desigualdade presente. É preciso empoderar-se para dar poder à representatividade.
Essa “corrente” já fez feridas demais e continuará fazendo.
Enquanto isso, identidades são construídas e é como Bartolina diz. “Desmistificou-se tudo o que foi dito que nós éramos e nunca fomos. É aquela velha história. Sou porque somos”.
Afinal, qual é a sua cor?
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pardo(a) é uma pessoa com diferentes ascendências étnicas, baseadas numa mistura de cores de peles entre brancos, negros e indígenas. Essa miscigenação engloba descendentes de negros e brancos, de negros com indígenas, de indígenas com brancos, além de todas as outras possíveis interações inter-raciais diretas ou indiretas. Ou seja, se você se encaixa em alguma dessas formações, pode se declarar pardo(a).
Uma pessoa preta, contudo segundo classificação do IBGE, tem como referência a descendência oriunda de nativos da África. Independentemente de seu território ou construção social, pelo fenótipo manifestado por sua pele de cor escura. O conceito de negro é definido pelo Estatuto da Igualdade Racial de lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010: “conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”.
Para entender a sua cor, é preciso também voltar ao passado e compreender a história escravagista brasileira. Com a vinda dos navios negreiros ao Brasil, aumentou a população preta do país. O transporte era realizado em condições desumanas (muitas pessoas morriam no trajeto). Além disso, a miscigenação do Brasil – tão romantizada – também foi fruto de estupros sistemáticos cometidos contra mulheres negras – a exemplo da situação problematizada pela ativista Angela Davis . Assim, a idealização da miscigenação é uma forma de ocultar a violência presente neste processo. Foram esses crimes sexuais que intensificaram a variação nos tons de pele.
Existem mesmo diversas tonalidades da pele negra, que podem ser entendidas como colorismo. Embora ser negro ou negra em tom mais claro ou mais escuro indique afrodescendência, a sociedade não enxerga todos os negros e negras da mesma forma. As oportunidades não são iguais e é perceptível que as pessoas negras que têm mais oportunidades são as que apresentam traços mais próximos da aparência branca, como o tom de pele mais claro, boca e nariz mais finos e cabelos menos crespos.
Nós do Projétil esperamos ter contribuído para o entendimento da pessoa negra e proporcionado reflexão sobre o racismo estrutural presente no Brasil.