Venezuelanos residentes em Campo Grande contam ao Projétil como vivem diante a distância de sua terra natal.
Texto: Gustavo Bonotto, Leticia Monteiro e Naiara Camargo

A crise que assola a Venezuela nos dias atuais tem levado homens, mulheres e mesmo famílias a busca pelo desconhecido. O Projétil foi atrás dos grupos de venezuelanos que residem em Campo Grande para ouvir suas histórias, e saber por que deixaram tudo para trás e optaram pelo recomeço no Brasil.
Nessa nova etapa os imigrantes reafirmam sua cultura, tradições, gastronomia, e datas comemorativas ao mesmo tempo que se adaptam ao cenário em que vivem. Muitos moram em locais pequenos e simples. Mas de forma amistosa e simpática, receberam a reportagem para dialogar sobre a sua inserção na comunidade local. Desde os venezuelanos que chegaram há pouco tempo, até os considerados veteranos que já possuem vínculos com a capital sul-mato-grossense, trazemos aqui as histórias da vida dessa comunidade de imigrantes.
Como chegaram até aqui
Desde de fevereiro a família Zamora e Medina vive em Campo Grande. O administrador de empresas Adelmo Eriberto Zamora Paez, 55, a pedagoga e massoterapeuta Rosa Ysbelia Medina Herrera, 44, e o estudante Moisés Abraham de Jesús Zamora Medina, 8, vieram para o Mato Grosso do Sul após morarem por mais de dois anos em Boa Vista, capital de Roraima.
O casal veio para a capital em busca de oportunidade de vida, melhor renda e educação de qualidade para o filho. Enquanto estiveram em Boa Vista, era frequente o contato com outros venezuelanos, em consequência da grande quantidade de imigrantes na região. Porém, ao chegar a Campo Grande, os laços comunitários foram quase perdidos, pela falta de conhecimento de outros compatriotas e pela distância dos familiares. Aqui, tiveram contato apenas com uma única venezuelana, Mirtha, a quem conheceram pela internet.
“Não ter contato com alguém que fala o idioma pode dar um pouco de depressão”, relata Rosa Ysbelia. |
Mirtha Carpio Díaz, 47, é venezuelana e bioquímica. Veio para o Brasil em 2008, com o objetivo de oferecer educação a sua filha, depois que o marido havia conseguido um emprego no país. Encontraram aqui apoio em um grupo de brasileiros que os ajudaram na mudança, a encontrar uma casa, e até uma boa escola para a filha. “A minha relação com brasileiros é excelente. Não temos do que nos queixar do Brasil, sempre fomos bem recebidos”. Mirtha tem amigos e familiares no país de origem e afirma sentir muitas saudades de todos que ficaram lá. “Sempre tive vontade de trazê-los para cá. Mas para eles, o idioma é uma trava. Eles preferem ir para outros países que falam a mesma língua”.
A dificuldade em falar e compreender português pode ser uma barreira para quem troca a Venezuela pelo Brasil. É o que explica o pesquisador venezuelano Linoel Leal Ordóñez, 36, que vive em Campo Grande desde 2018 e faz pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso de Sul (UFMS). Ele considera que tudo depende da motivação do imigrante, de seu nível de disposição e de interação com os brasileiros. “Vejo o ato de aprender a língua portuguesa como um presente contínuo”, diz, referindo-se à necessidade do aprendizado constante.
Voluntário da Associação de Venezuelanos em Campo Grande, Lionel pontua a organização da comunidade com características que promovem a união. “Muitas famílias estão fugindo da Venezuela por conta da crise econômica, política, e por temer a repressão da ditadura. O recomeço é um sentimento de sobrevivência, para encontrar aqui oportunidades previamente negadas.”
Um novo começo
Francismary Perez, 39, exercia a profissão de Enfermeira antes de vir para o Brasil em 2019. Ela teve que deixar tudo, inclusive a mãe e os filhos na Venezuela. “Eu trabalhava em três hospitais, e mesmo assim, não dava para manter a alimentação da família”, conta. Com uma colega de trabalho, Francismary partiu para Pacaraima (RO), primeira cidade brasileira na fronteira, onde ficaram por três dias. Após esse período, as duas seguiram viagem por mais de cem quilômetros até encontrar uma comunidade indígena onde foram ajudadas com roupas, banho e comida. Continuaram o caminho até chegar em Boa Vista (RO) para a regularização dos documentos de imigração.
Enquanto esteve na cidade, conheceu uma missionária que, sabendo de sua situação, pediu para que ela ajudasse como voluntária na caravana “Sem Fronteiras”, a primeira com trajeto estabelecido entre Boa Vista e Campo Grande. Francismary aproveitou a oportunidade e embarcou rumo ao recomeço em terras desconhecidas. Estabilizada na cidade pôde trazer, com ajuda da Fraternidade Sem Fronteiras , os dois filhos e a mãe que ainda estavam na Venezuela.
A Fraternidade Sem Fronteiras é um grupo de voluntários que auxilia na adaptação, acolhimento e encaminhamento ao mercado de trabalho das famílias e indivíduos que buscam abrigo no país. |
Também vieram para Campo Grande Francisco José Motoban, 41, e Rosa Angélica Castellano, 44, casal que hoje atua com reposição em supermercado. Eles vieram para o Brasil fugindo da atual crise na Venezuela: “Quis mudar minha situação para ajudar minha família”, disse Francisco, que sempre foi muito apegado aos parentes com os quais diz ter uma relação muito boa. Nas datas festivas, como Semana Santa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal e aniversários, sempre havia reuniões familiares. Além dessas, ainda há as festas patrióticas e feriados nacionais, como a declaração de independência (19/04), independência da Venezuela (05/07), e nascimento do libertador Simón Bolívar (24/07) – líder político pioneiro em apoiar a descolonização na América do Sul. Francisco relembra que nessas datas a população venezuelana saía às ruas em marchas e desfiles para festejar e honrar seu país. Diz ainda que tanto em Boa Vista como em Campo Grande encontrou muitos venezuelanos e foi bem recepcionado por seus compatriotas e pelos brasileiros, cultivando bons amigos.
Essa receptividade pode ajudar a construir pontes, como explica Lionel. “O povo venezuelano é bem afetivo e social. Muitos nos acham parecidos com os brasileiros porque o povo brasileiro também é considerado assim. Mas isso não é uma questão definida por país, ou pela comunidade. É um ato de solidariedade e humanidade.”
Se reconectando
Agradecidos com a ajuda que receberam e buscando fortalecer a união entre os imigrantes venezuelanos, um grupo capitaneado por Mirtha montou a página Venezuelanos em Campo Grande no Facebook. “É um mural onde nós ajudamos fazendo eventos, dando orientações sobre a documentação, informando sobre vagas de trabalho e obtendo utensílios domésticos como fogões, geladeiras, todas estas coisas essenciais”, afirma.
O mural de Venezoelanos en Campo Grande é público e existe desde 2019. Para realizar uma publicação, é necessária a aprovação de um dos administradores. |
Foi através desta ferramenta que Francismary ajudou a realizar o evento em homenagem às mulheres imigrantes da capital em 08 de março de 2020. Durante a comemoração, foi possível mostrar as roupas e a comida típica da Venezuela para as bolivianas, brasileiras, haitianas e japonesas que estiveram presentes. Francismary diz que pretende realizar um evento somente com a culinária venezuelana, mas para isso precisaria de apoio para o local da festa. O dinheiro arrecadado será destinado a ajudar a outros imigrantes que têm interesse em vir para Campo Grande.

Foto: Acervo de Francismary Perez
Além do mural, os grupos de mensagem tem forte presença no cotidiano da família Zamora e Medina. Com o objetivo de fazer contato e compartilhar rapidamente fotos, notícias, vídeos e até receitas dos pratos típicos da Venezuela, como empanadas, ‘hallaca’ – guisado envolto em uma massa empacotada em folhas de bananeira – e a ‘arepa’ – massa de pão feito com milho moído pré-cozido –, que, de acordo com Rosa Ysbelia, é o símbolo de representação mais forte do país.
Venezuela representada
Escutar a música nativa e se reunir para conversar com a família é um ato tradicional para Francisco, que diz ter hábitos alimentares de seu país de origem até hoje, e descreve a dificuldade de encontrar no Brasil ingredientes nativos da Venezuela, como a farinha de milho superfina pré-cozida com a qual é acostumado. O preço em lojas de produtos naturais na capital chega a cerca de 20 reais por quilo. “Cozinho ‘arepa’, empanadas, macarrão com sardinha, ‘pabellón’, que é a combinação de arroz e feijão e frango guisado”, afirma Francisco. Entretanto, ele também já conhece e se acostumou com a culinária sul-mato-grossense. “Já experimentei arroz carreteiro, churrasco, linguiça, feijoada e gosto muito do tereré”.

Foto: Acervo de Francismary Perez
Neste período relativamente curto em que mora no país, a família Zamora e Medina afirma não ter tido muitos problemas com a culinária. Eles gostaram do cuscuz, prato tradicional das regiões norte e nordeste do Brasil, e dos temperos que aqui conheceram – utilizados em pratos menos condimentados se comparados aos da Venezuela. Francismary cita algumas diferenças que percebeu, como a forma em que a pimenta é utilizada no Brasil, tornando-a mais picante, além do tipo de processamento da farofa consumida aqui, que não existe no país de origem, e até mesmo a massa utilizada em diversas receitas como a da ‘arepa’, parecida com a da tapioca brasileira, mas que tem textura diferente.
Francismary conhece a tapioca tradicional do Brasil, feita a partir da goma de mandioca, mas sua comparação se dá no modo de preparo e recheio: “Usamos o floco de milho que encontramos, mas não tem o mesmo sabor e nem a mesma textura. Muitos costumes daqui são bem diferentes, mas pouco a pouco vamos dando nosso jeito”. Talvez seja por isso que a enfermeira misture alguns ingredientes da cultura venezuelana com a brasileira, ao citar que a adaptação de pratos típicos também seria uma forma de mostrar os costumes de seu país aos brasileiros.
Para Linoel, a culinária brasileira se assemelha a venezuelana pela tradição e preparação dos alimentos. “Em Campo Grande você tem, por exemplo, os churrascos aos domingos com significado social e cultural bem forte. Para nós, temos a ‘parrilla’. Seu maior choque até agora foi com a sopa paraguaia, torta de milho salgado muito consumida no Paraguai e em Mato Grosso do Sul: “Esperava um caldo, mas não era um caldo. É um bolo salgado”.
O pesquisador também descreve o ritmo mais comum em seu país, chamado ‘Joropo Llanero’. Além de dança tradicional da Venezuela, ele também é um gênero musical que se toca com harpas, maracás, e ‘cuatro’ – um pequeno violão com apenas quatro cordas. “Temos ritmos tradicionais, populares e urbanos, assim como o Brasil. Por estarmos na América Latina, muitos dos artistas representam esta identidade latina de diferentes regiões do país e até do exterior” explica, ao citar Franco de Vita, cantor e compositor venezuelano que mistura pop/rock latino com referências caribenhas.
Já Francisco e Rosa Angélica dizem ouvir ‘Polca Criolla’ todas as manhãs, e desejam que esse costume se mantenha para as próximas gerações. O casal se identifica com este estilo musical que utiliza do ‘cajon’ – instrumento de percussão de origem afro-peruana: “A música faz parte do meu cotidiano, e me remete ao pertencimento que tenho pela Venezuela”, afirma Rosa Angélica.
O futuro
Em tempos de pandemia do novo coronavírus, Rosa Angélica demonstra preocupação com os familiares que estão na Venezuela quando lembra que em Campo Grande consegue adquirir medicamentos ou mesmo obter atendimento médico de forma gratuita: “Preocupo-me com quem está em situação de risco e não pode recorrer a recursos como esses”. Para a venezuelana, o retorno ao seu país em um momento crítico como este é algo imprevisível. “Sei onde nasci, mas não sei onde posso morrer. Tudo agora depende da vontade de Deus”.
Mas não foi apenas a família Zamora e Medina, Linoel, Francisco, Rosa Angélica, e Francismary que disseram ter vindo para o Brasil devido à crise que assola a Venezuela. Mirtha também concorda que o país se encontra em um desastre humano e que é muito triste se imaginar inserida naquele contexto social. E torce para que, talvez um dia, a Venezuela se compare a países em âmbito de investimentos para a população, trazendo bons frutos àqueles que ficaram. “Ajudar o próximo e buscar os recursos necessários para o bem da minha amada família é um sentimento libertador”, menciona.