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Reportagem 98

Miscigenação Gastronômica

Contradição inusitada de sabores influenciam na construção das identidades culturais de Mato Grosso do Sul

Texto: Evellyse Michelle | Isabella Motta | Patrícia Martins


Porco no rolete, linguiça de Maracaju, sobá, tereré, sopa paraguaia, carreteiro e quebra-torto são algumas das comidas típicas de Mato Grosso do Sul. Para quem não conhece, esses alimentos podem causar um estranhamento à primeira vista. Um café da manhã acompanhado de um salgado boliviano ou uma chipa paraguaia. Um almoço com um tradicional arroz carreteiro dos peões pantaneiros. Durante a tarde, um tereré gelado ou uma deliciosa sopa paraguaia. Por fim, no jantar um sobá okinawano quentinho. São estas combinações inusitadas que constroem a gastronomia deste estado e evidenciam que em sua cultura nada é imutável.

Mato Grosso do Sul é moldado por uma grande diversidade cultural, uma mistura de costumes e tradições que são legados de países como Paraguai, Bolívia, Líbano, Japão e a ilha de Okinawa. A gastronomia regional pode ser singular, significativa e viva. Mais do que um simples prato, a comida é um patrimônio cultural que carrega as características de um povo e conecta suas raízes ancestrais, gerando um sentimento de pertencimento, reforçado em eventos gastronômicos típicos.

A multiplicidade cultural compõe essa miscigenação que se manifesta nos hábitos culinários e nos gostos por determinados alimentos. O antropólogo Álvaro Banducci Júnior explica que a gastronomia é um componente da identidade cultural. “A comida propicia um hábito cultural coletivo, são sentimentos, saberes e técnicas que têm a ver com o nosso modo de ser, nosso gosto, paladar e com a nossa identidade”.

Para Álvaro, esta contribuição de diferentes povos acabou conformando a característica do estado. “É singular por essa complexidade étnica, pela variação e multiplicidade de referências culturais que condizem com a realidade social e cultural. É sobre falar: ‘Olha, eu sou sul-mato-grossense, eu como sopa paraguaia e tomo tereré’. É o que marca, é uma referência de identidade, o orgulho de um povo”.

Para promover a cultura regional, atrair turistas e desenvolver a economia local, são realizados durante o ano festivais gastronômicos que possibilitam um rico calendário cultural. Para o diretor-presidente da Fundação de Turismo de Mato Grosso do Sul Bruno Wendling, os festivais gastronômicos realçam o melhor da gastronomia regional. “A nossa cultura é tão rica, tão diversa que hoje a gente consegue entregar uma alta gastronomia. E com os festivais, é uma forma de disponibilizar uma alternativa de lazer para o público que mora aqui e para o turismo”.

Além do turismo habitual em cidades como Bonito, Rio Verde e o Pantanal, os municípios de Maracaju e São Gabriel do Oeste atraem pessoas pelo paladar de seus pratos, o que desenvolve o turismo gastronômico que é um dos principais motivadores de novos fluxos turísticos. “Já temos turistas que procuram épocas de festivais gastronômicos para compor a sua rota de viagens e já decidiram visitar aquele destino pela comida típica oferecida”, aponta Bruno.

Ô trem bão sô

A Festa da Linguiça de Maracaju é considerada um dos maiores eventos gastronômicos do estado e sua iguaria veio de Minas Gerais, através das primeiras famílias fundadoras da cidade que deu nome à linguiça. Em sua 26a edição, realizada de 29 de abril a primeiro de maio de 2022, foram assadas mais de 20 toneladas de linguiça. O Rotary Club, responsável pela organização no Parque de Exposição, contou com voluntários e parcerias. Ao todo, 400 pessoas auxiliaram na estruturação do festival que movimentou cerca de 25 mil pessoas em três dias de evento.

Entrada da Festa – Foto: Isabella Motta

A festa é aguardada pela população devido ao impacto econômico. Em três dias, movimenta postos de gasolina, redes de hotéis, farmácias, lanchonetes, conveniências e lojas de vestimenta. O organizador da festa e presidente do Rotary Club de Maracaju Júlio Silva Carlonga, aponta que cada real investido na Festa da Linguiça é revertido sete vezes a mais para a cidade. “Na sexta-feira e no sábado tivemos o maior público. Fomos além do recorde das outras edições e temos a sensação de dever cumprido. Podemos reverter todo o lucro para as entidades que tanto precisam. E dá uma alavancada na economia”. Todo o recurso arrecadado na festa é destinado ao hospital municipal e entidades filantrópicas.

Júlio Silva Carlonga – Foto: Amanda Melgaço

Euclides Ivani de Lima, conhecido na cidade como Seu Bigode, participou de todas as edições e destaca que o ponto principal é o cuidado ao assar a linguiça. “Se não sair bem assada, do jeito que o pessoal gosta, acabam não voltando no próximo ano. Então, a gente faz o possível e o impossível para fazer um trabalho bem feito”. Ao ser questionado se a linguiça é o prato que representa a cidade de Maracaju, declara que vai além. “Com toda certeza. Não é conhecida apenas na cidade, mas em todo o Brasil”.

Euclides Ivani de Lima – Foto: Amanda Melgaço

A linguiça é preparada com cortes de carnes da parte traseira do boi, como picanha, patinho, coxão mole, contrafilé, alcatra, ponta de alcatra e maminha. Um dos diferenciais é que a carne não é moída, mas cortada na ponta da faca, em pequenos pedaços. O tempero leva também suco de laranja azeda, que adiciona um sabor especial. Durante a festa, como acompanhamentos são servidos arroz branco e com guariroba, mandioca, creme de milho, farofa, vinagrete e salada de repolho agridoce são os acompanhamentos servidos.

Vídeo: Isabella Motta

Quem administra o preparo destes alimentos desde a primeira edição da festa é a cozinheira Laísa Felício Benites e relata que o serviço é gratificante. “A emoção é muito grande e ficamos contando nos dedos para chegar o dia. É muito bonito ver toda a equipe trabalhando para gerar benefícios para a cidade”. As cozinheiras acordam por volta de quatro horas da manhã para começar a preparar os alimentos para milhares de pessoas. Em um único dia são feitos mais de 60 quilos de arroz.

Laísa Felício Benites – Foto: Amanda Melgaço
Bah tchê

A Festa do Leitão no Rolete também faz parte do calendário oficial de Mato Grosso do Sul. Realizada em São Gabriel do Oeste, começou em 1993 como uma iniciativa da Cooperativa Agropecuária da cidade. A princípio, tratava-se de uma comemoração com os trabalhadores e também uma iniciativa a fim de estimular e divulgar o consumo da carne suína. Nesta época, iniciou-se a suinocultura na cidade, que, segundo o relatório da Pesquisa da Pecuária Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é atualmente líder do ranking dos municípios sul-mato-grossenses produtores de suínos.

Símbolo da cooperativa – Foto: Acervo da assessoria de imprensa da prefeitura de São Gabriel do Oeste

O crescimento da festa começou por volta de 2000. A partir deste ano, ela passou a ser realizada em dois dias, no sábado e domingo. O diretor presidente da cooperativa Sérgio Luiz Macron, detalha este desenvolvimento. “A festa saiu das paredes da Cooasgo. Todos os anos se abatia e assava mais animais do que no período anterior. Nos últimos anos, foram cerca de 240 animais, com aproximadamente 33 quilos”.

Sérgio Luiz Macron – Foto: Acervo da assessoria de imprensa da prefeitura de São Gabriel do Oeste

O sócio-fundador da Cooperativa Arlindo Willemann, auxilia na organização desde o começo e explica que o sucesso está na qualidade de tudo que é produzido na festa. “A questão foi a qualidade da carne suína, que no começo muita gente nem conhecia. Não é somente o assar, mas toda a preparação que temos”. Preparação que se inicia com cerca de quatro meses de antecedência, desde o desmame do animal. Como precisam atingir um certo peso, recebem inclusive uma alimentação especial.

No dia da festa os trabalhos iniciam às 4h30 da manhã. “O principal segredo ali é quanto ao fogo, que tem que ser constante. Precisa ser devagar. O ponto atrativo é ver o leitão girando ali no rolete”. Outro ponto que Arlindo e Sérgio comentam é sobre a tradição são-gabrielense de acolher bem. “Como a movimentação na cidade é intensa e os hotéis sempre trabalham com lotação máxima, muitas famílias inclusive abrigam pessoas de fora em suas casas”. Além disso, a questão principal sempre foi servir bem. “Queríamos que quem viesse pela primeira vez voltasse. O grande triunfo nosso foi esse, demonstrando que estamos no caminho certo”.

A festa atrai cerca de 30 mil pessoas, dobrando a população da cidade. Já a equipe de organização conta com 150 pessoas diretamente envolvidas. Por conta da pandemia a celebração não foi realizada nos dois últimos anos. Sérgio detalha sobre o planejamento do retorno. “Esse ano [2022] a previsão é que retornamos com apenas um dia de festa, por enquanto, o tradicional almoço no domingo”.

Leitão no rolete – Foto: Acervo da assessoria de imprensa da prefeitura de São Gabriel do Oeste
Vídeo: Acervo da assessoria de imprensa da prefeitura de São Gabriel do Oeste
Sabor okinawano

A contribuição dos imigrantes okinawanos no estado se tornou um patrimônio cultural. O sobá, prato típico de Okinawa, uma das maiores ilhas do Japão, passou a ser comercializado por volta da década de 1950. Para o presidente da Associação Okinawa de Campo Grande Marcel Arakaki Asato, o sobá okinawano tem um significado profundo. “Representa a resistência da colonização. É uma questão de herança cultural de um reino que existiu no passado. Uma cultura que foi suprimida, mas ainda sobrevive”

Sobá – Foto: Amanda Melgaço
Marcel Arakaki Asato – Foto: Acervo pessoal de Marcel A. Asato

A Feira Central de Campo Grande promove anualmente o Festival do Sobá, que chega a movimentar 200 mil pessoas, com atrações culturais, regionais e musicais. A primeira edição ocorreu em dez de agosto de 2006 e, na ocasião, foi celebrado o registro do prato como Patrimônio Imaterial de Campo Grande. Desde então, todo segundo domingo de agosto é comemorada a festa.

O último Festival do Sobá foi realizado em 2019, por conta da pandemia de Covid-19, e ainda não há confirmações da próxima edição. O diretor cultural da Associação Okinawa e proprietário da Barraca da Niria Tadashi Gabriel Katsuren, relatou que a capital é um dos maiores centros de imigração okinawana. “Em questão de proporcionalidade, a concentração de okinawanos é maior que a de São Paulo. Então, não é de se assustar que o prato tenha vindo para Campo Grande. Mas o que foi uma surpresa, foi a desenvoltura e a popularização do prato que evoluiu com o tempo”.

Tadashi Gabriel Katsuren – Foto: Isabella Motta

A família de Tadashi foi a pioneira na venda de sobá na Feira Central em 1965. “Meu avô Hiroshi Katsuren começou a vender sobá na feira e na época, o prato era direcionado para os próprios imigrantes de Okinawa. Mas eles tinham vergonha de comer este prato em público porque fazia uso do hashi [vareta usada como talher] e não era algo que todo mundo estava habituado a ver em público. Então, meu avô colocou uma espécie de varal, uma cortina para eles comerem escondidos do resto do pessoal”, conta Tadashi. O truque usado para dar privacidade aos clientes gerou curiosidade para as pessoas de fora da comunidade okinawana. O público começou a pedir o prato e o fato de ser consumido escondido, virou um marketing de sucesso.

Vídeo: Isabella Motta

As culinárias dos festivais evidenciam as diferenças de sabores, sentidos, aromas e temperos da cozinha okinawana, mineira e gaúcha. A identidade sul-mato-grossense é representada pelo sabor de sua gastronomia, das produções musicais, festas populares, artesanato e das danças que mantêm um forte tempero regional.

Diferença do sobá okinawano

O sobá okinawano difere do japonês. De acordo com o presidente da Associação Okinawa Marcel Arakaki, o prato não representa a mesma coisa para os dois. “O sobá okinawano é um tipo de macarrão feito com trigo normal. Agora, para os japoneses o sobá tem que ser preparado com o trigo-sarraceno”. Os complementos do sobá, como caldo suíno, cebolinha e omelete fatiado não estão presentes em todas as receitas. O preparo original é feito com carne de porco, panceta suína, kamaboko (bolinho feito de massa de peixe cortado em tiras) e o gengibre vermelho, feito com corante. “Na nossa barraca, eu continuo fazendo o caldo que eu aprendi com os meus avós. Ele é bem tradicional, feito com caldo suíno. O caldo japonês é mais leve”, aponta Tadashi.
O sobá campo-grandense, tradicional de Okinawa, é feito com carne bovina, caldo de puchero de boi, omelete em tiras e cebolinha. Mas também tem a opção suína e é comum o público colocar shoyu no sobá. “No Japão isso não existe. O shoyu fica dentro da cozinha junto com o cozinheiro e não na mesa”. Para Tadashi, o sobá representa um marco da cultura de Okinawa na capital. E mostra como uma comunidade pode deixar a sua marca e influência em uma cidade do outro lado do mundo.