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Reportagem 100

Muito prazer, sexo! Acredito que você ainda não me conhece totalmente

A edição 59 do Projetil ousou ao falar sobre sexo, mas falhou ao omitir o prazer feminino. Quase 15 anos depois, voltamos nesse mesmo tema, e dessa vez é diferente – o sexo tem que ser para as mulheres

Texto: Bianca Campos | Evelyn Mendes | Lauren Netto


Com a promessa de “múltiplos orgasmos de criatividade” e dedicação, os acadêmicos de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) apresentaram a edição 59 do Projétil, publicada em 2008. “Muito prazer, sexo!” foi umas das edições monotemáticas que surgiram ao longo da história do jornal laboratório. A vontade da turma de sair do clichê abriu espaço para leituras excitantes sobre cultura, comportamento e comércio sexual.

Matérias como ”Na hora do almoço”, que falava sobre as casas de massagens de Campo Grande, “A um clique do prazer” com o foco no sexo virtual e “Vende-se prazer”, sobre alguns sex shops da capital, garantiram uma edição deveras divertida, mas que infelizmente não teve espaço na plataforma online Issuu, que disponibiliza todos os jornais produzidos até hoje. A edição foi censurada pela plataforma. Isso mesmo, o sexo não pode caber na boca de todo mundo.

Após 15 anos, os assuntos abordados continuam pertinentes, mas merecem uma reflexão mais profunda. Naquela edição monotemática, nenhuma das 13 matérias abordou a sexualidade feminina e, por isso, a centésima edição traz a premissa de expor perspectivas que há muito tempo são negligenciadas.

A pluralidade de mulheres dessa reportagem, começa com uma equipe de três repórteres e duas professoras à frente da edição. As entrevistadas também são exclusivamente femininas e a perspectiva de cada uma delas possibilita que possamos nos deliciar com diversas vivências. Já sabemos que a edição 59 não chegou lá, mas a 100 está pronta para atingir o ápice.

O estereótipo de cada dia

Foi dado um passo para frente quando o Projétil tratou sobre sexo, mas infelizmente ele não foi o primeiro a silenciar a voz feminina. Ao trazer assuntos tão pertinentes, as mulheres só foram retratadas em posição secundária. Ou, quando eram protagonistas, os temas giravam apenas em torno de assuntos como maternidade e prostituição. “Mãe, esposa e cia” e “Embarque, prostituição e sonho”, da edição 11, de 1992 e “A saga de mães e filhos dentro do presídio” da edição 80, de 2013, são apenas alguns exemplos da manutenção do estereótipo. O apagamento da fala feminina é um fenômeno que ocorre desde sempre, não só aqui no Brasil, mas no mundo.

Quando o assunto é sexo, essa questão fica bastante evidente já que a sexualidade feminina é retratada como tabu na sociedade. Um sistema que exclui os direitos das mulheres, se delicia com o corpo feminino, concebido fisiologicamente para gozar do próprio prazer.

Um sistema que exclui os direitos das mulheres, se delicia com o corpo feminino, concebido fisiologicamente para gozar do próprio prazer
Colagem: Rafaella Moura

Quando o assunto é sexo, essa questão fica bastante evidente já que a sexualidade feminina é retratada como tabu na sociedade. Um sistema que exclui os direitos das mulheres, se delicia com o corpo feminino, concebido fisiologicamente para gozar do próprio prazer.

Para Sarah Santos, jornalista e influencer digital, o apagamento da sexualidade aconteceu desde quando ela se entendeu no mundo como um ser sexual, perto dos seus 13 anos. A jornalista conta que essa época foi frustrante, pois ela passou a acompanhar suas amigas iniciando relacionamentos românticos enquanto para ela não. “Estudava num lugar em que, naturalmente, todas as minhas amiguinhas já beijavam, já tinham um namoradinho, os meninos se interessavam por elas e por mim não era a mesma coisa”, relata Sarah.

Sarah Santos, jornalista e administradora da pagina Sou passarinha
Foto: Evelyn Mendes

Ainda na adolescência, a jornalista, ao imergir nas redes sociais, teve contato com o lado sombrio do sexo: a fetichização do corpo com deficiência. “Postava uma foto de regata que mostrava o bracinho, e aparecia uns caras esquisitos que queriam me adicionar. O problema não é só o fetiche, mas você reduzir aquela pessoa a um único membro dela, o membro com deficiência”, relata.

A perspectiva de Sarah é construída a partir das vivências de um corpo com deficiência. Um corpo que, muitas vezes, foi reduzido ao cuidado e não ao sexo. Sarah, contudo, tem uma história muito diferente da modelo e DJ Marcela Deniz, um corpo gordo e preto, de uma mulher nascida e criada na periferia de Campo Grande.

Para Marcela, a sexualização sempre esteve presente, mesmo quando não deveria existir. “Eu menstruei muito cedo, então me desenvolvi muito rápido, enquanto as menininhas da minha idade eram magrinhas, eu já era gordinha e já tinha muito seio. Com 11 anos de idade eu já era assediada na rua”, conta a modelo.

Marcela Deniz, modelo e Dj
Foto: Evelyn Mendes

Para Agatha, estudante de psicologia, a sexualização do corpo começou logo quando ela se assumiu uma mulher trans. “Desde que eu me entendi como Agatha e botei meu nome pra jogo, as pessoas começaram a ter curiosidade. Homens casados me procuravam, por conta do fetiche, e outros que eu nunca imaginaria na vida que viria atrás de mim só por isso”, lamenta a acadêmica.

Agatha Echeverria, acadêmica de psicologia
Foto: Evelyn Mendes

Até chegar lá

Essas histórias indicam como o corpo feminino é rotulado pela sociedade, o que se espera da mulher antes de tomar qualquer atitude. Qual roupa vestir, como deve ser o corte de cabelo, como se comportar de saia e qual o batom ideal. Regras que limitam a liberdade feminina de ser e estar à vontade socialmente.

Para Thaynara Belmonte, egressa de artes visuais da UFMS, foram longos anos, questionamentos e negações até se descobrir como uma mulher lésbica. Com 17 anos, ela enfrentou diversos atravessamentos até dar o seu primeiro beijo. “Foi bem complicado eu entender a minha sexualidade, eu sempre ficava: ‘eu sou bi’, ‘não sou lésbica’, ‘eu sou pan [sexual]’. Foram altos e baixos até eu entender que aquilo era uma heterossexualidade compulsória e que eu sou, sim, lésbica”, relata.

Thaynara Belmonte, egressa do curso de artes visuais da UFMS
Foto: arquivo pessoal

A mulher lésbica e gorda não se enquadra nos moldes socialmente aceitos – não é considerada sexy e sua estética, desfeminilizada por não se enquadrar nos padrões heteronormativos, se torna inviabilizada. “É muito difícil uma mulher gorda e “caminhoneira” se relacionar no meio lésbico, nós somos muito apagadas. Até pra sociedade quando se pensa em duas lésbicas, são duas mulheres padrões. Eu acho que até por isso eu demorei tanto para ter as minhas primeiras vezes, como o meu primeiro beijo e o meu primeiro sexo”, desabafa Thaynara.

A invisibilização da comunidade LGBTQIAPN+ é responsável por uma série de omissões em diversos setores, entre eles o da saúde. A saúde sexual de mulheres que não se enquadram nos padrões heteronormativos é omitida pela sociedade, com base na crença machista de que se não houver penetração, não há risco de doenças. A máxima “sem penetração, não tem sexo” está intrínseca na sociedade, apesar de ser um mito. Uma pesquisa veiculada no Public Health em 2021, feita com 150 mulheres que mantêm relações com outras mulheres, indica que quase metade delas contraíram alguma infecção sexualmente transmissível (IST). A maior parte, 45%, foi contaminada pelo vírus HPV.

Em um espaço estruturado apenas para mulheres heterossexuais cisgênero, a falta de acolhimento e distanciamento entre o médico e a paciente afasta essas mulheres de um tratamento que deveria ser acessível e seguro para todas. Contribuindo ainda mais para o silenciamento da saúde sexual de mulheres fora dos padrões impostos pela sociedade.

Onde está o clitóris?

Há um falso guia de sobrevivência para as mulheres diante de uma construção sociocultural machista, que define o que é belo e aceitável. Sarah conta que ainda na adolescência as frustrações vieram aos poucos. “Teve uma época que me incomodava, porque me achava uma pessoa com muitos pelos, toda semana eu raspava os pelos dos meus braços. E é horrível, ficava me pinicando, mas fazia questão de aparecer toda depilada”, relembra a jornalista.

Essa busca de Sarah por se encaixar no padrão, infelizmente, é comum. Segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, em 2018, cerca de 87,4% dos procedimentos realizados no mundo foram feitos pelo público feminino. Quando se trata de cirurgias na vulva, esses números são ainda mais altos. De acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, em 2020, o Brasil ocupou primeiro lugar no ranking com mais de 20 mil cirurgias de labioplastia, que é o procedimento que diminui os pequenos lábios vaginais.

Esses dados mostram que as mulheres ainda não conseguem viver sua sexualidade de maneira livre e plena. De acordo com Yorrana Della Costa, jornalista e produtora de conteúdo sobre sexualidade feminina (@papodevenus)

a “castração” do poder feminino é histórica. “Não era viável para a sociedade nem para algumas instituições, como as religiosas, por exemplo, que as mulheres tivessem proeminência”, afirma a jornalista
A jornalista Yorrana Della Costa
Foto: Evelyn Mendes

A falta de proeminência, ou seja, de destaque feminino em debates que envolvem sexo e sexualidade, funciona como uma estratégia implícita de manter a mulher em posição secundária, submissas aos seus próprio corpo. O silenciamento feminino também pode afetar o desempenho sexual dessas mulheres, limitando ainda mais o prazer.

Segundo pesquisa realizada em 2023 pelo Hibou, empresa de monitoramento de mercado e consumo, cerca de 79% das mulheres já fingiram ter um orgasmo. Dessa porcentagem, mais da metade, 53%, afirmam que fizeram isso para acabar logo com o ato.

Ascensão feminina

As preliminares do autoconhecimento podem acontecer de diversas formas e serem estimuladas de muitas maneiras. Seja com cosméticos, perfumes ou produtos eróticos, que elevam a autoestima e a autoconfiança. Vibradores, sugadores e demais acessórios sexuais são artefatos que contribuem para o estímulo da sexualidade feminina. Explorar o próprio corpo vai além de saber o que lhe deixa com tesão. As infinitas possibilidades da anatomia feminina são capazes de gerar autonomia e se empoderar do próprio prazer.

Para os sex shops ou mercado de produtos sensuais – como a Maria Graziele Paulino, gerente da loja Afrodite, prefere chamar – o passar dos anos foi positivo. “Antigamente o tabu era muito grande. Hoje em dia a gente vê que tem mais produtos voltados para a saúde íntima da mulher, então expandiu muito. A gente trabalha com produtos desde a área sexual, mas também de pompoarismo, vibradores, então ajudou muito”.

A pandemia foi um fator que também impulsionou as vendas. Só no estado, o Serviço Brasileiro de Apoio as Micro e Pequenas Empresas de Mato Grosso do Sul (Sebrae-MS) registrou um aumento de 20% nas vendas de produtos eróticos e artigos de sex shop em compras realizadas virtualmente e em lojas físicas.

O público consumidor dos brinquedos eróticos é o mais diverso possível. “Não tem como definir uma persona, tem desde a menina de 15 anos que começou a vida sexual agora e tem pouca lubrificação, até a senhora de 70 anos com uma vida sexual ativa”, revela Maria.

Os produtos sensuais já conseguiram alcançar até mesmo mulheres que estão inseridas no universo religioso. “Uma vez atendi mãe e filha evangélicas. Mãe evangélica do pé a cabeça, ai a filha falou ‘mãe, pede para Jesus Cristo virar as costas e entra’”, contou a gerente da loja Maube, Claudia Oliveira.

Para Yorrana, os produtos eróticos são uma maneira que algumas mulheres encontraram para se conectar com elas mesmas, já que para ela a experiência sexual é um jeito de potencializar a energia feminina. Um brinquedo erótico não tem o poder de mudar a vida de uma mulher, mas permite a experimentação. “Se nós acreditarmos que somos merecedoras de prazer, podemos entender que somos merecedoras de qualquer coisa”, afirma Yorrana.

Ainda que haja um tabu para cada mulher que viva sobre a terra, lutar contra isso é imprescindível. No passado, o Projétil negligenciou a visão das mulheres e deixou de lado vivências e questões que carregamos por décadas, ou melhor, por séculos.

Esperamos que a percepção da sexualidade contada nesta reportagem desperte não só o lado prazeroso do sexo, mas também o lado consciente. Ousamos, mais uma vez, em falar sobre sexo, mas dessa vez foi diferente. Afinal, as 10 mil terminações nervosas do clitóris não estão lá à toa.

E aí, foi bom pra você?


De onde vem os vibradores?

Vibradores com diferentes formatos, cores e tamanhos não são mais novidade para ninguém. Em qualquer site de vendas de produtos eróticos é possível achar uma diversidade que, à primeira vista, parece infinita. Cada item com sua particularidade que, na prateleira da loja, tenta seduzir o público, com a promessa de propiciar momentos de puro prazer e intimidade com o próprio corpo.

Mas você já deve imaginar que nem sempre foi assim, não é?

O primeiro aparelho usado como um vibrador, foi inicialmente pensado como um instrumento de massagem e também de cura para a chamada “histeria feminina”. “Foi utilizado para tratamento de histeria, que eram as mulheres que tinham libido e só depois descobriram que as mulheres cisgênero passam por um processo hormonal diferente dos homens,  e que a libido não tiha nada ver com histeria”, conta Yorrana.

A princípio, somente os médicos realizavam esse processo de massagear as costas e o pescoço do corpo feminino para provocar nelas o que eles caracterizavam como paroxismo. Porém, paroxismo era nada mais do que o orgasmo feminino, que causava sensações de alívio e êxtase. “Era um massageador muscular, que era tipo um trambolho gigantesco de ferro. Para o clitóris mais sensível seria mais complicado. Muitas mulheres sofreram”.  

Com o apoio da tecnologia, por volta do século XX, os vibradores se tornaram elétricos e também para o uso doméstico, deixando de ser um produto usado apenas para “tratamento”. Logo em seguida, as mulheres começaram a usar os vibradores de forma individual e como uma ferramenta de prazer e também autoconhecimento.