Como mulheres religiosas, por meio da fé, conquistam espaços de liderança no dia a dia de suas comunidades
Texto: Ana Carla de Souza | Mariana Azevedo
A benção! Essa é a primeira saudação que as mulheres entrevistadas nesta reportagem costumam ouvir no dia. Elas levam a sina de rezar, diariamente, por pedidos de todas as causas, até mesmo por aquelas que não conhecem. Madre Neiva costuma orar por essas intenções na missa da manhã. A ekedi Ana Paula e a mãe de santo Vilma fazem suas rezas durante as celebrações à noite. A evangelista Marilene, além dos cultos noturnos, visita os irmãos da igreja em suas casas.

Madre, pastora, mãe-de-santo, ialorixá, irmã, evangelista e ekedi. Elas disseram sim ao chamado de suas crenças e assumiram a liderança que, na maioria das vezes, é atribuída aos homens. A missão, vocação e espiritualidade são a base de suas vidas e, além de suas comunidades de fé, invocam a graça divina sobre alguém e exercem um papel essencial e, que faz a diferença na vida de quem as reconhece como parte da família.
Autodescobertas
Na Vila Bandeirantes, próxima ao centro de Campo Grande, a casa de Vilma Moreira, 83 anos, sempre está rodeada por filhos e netos. Ao som dos pássaros na gaiola e o entra e sai de pessoas, a casa, que já tem alma de gente, tornou-se um local de acolhimento para os umbandistas do terreiro da mãe de santo. No fundo do terreno, o Templo Paz, Amor e Caridade (TUFAC) foi construído por Vilma para acolher os seus filhos de santo e realizar as giras e celebrações.“Tenho prazer em atender e às vezes até choro junto com a pessoa porque sei como é duro caminhar nesta estrada”, desabafa.
Às sextas-feiras, os preparativos no templo são voltados para receber visitas de entidades chamadas de Caboclos e Pombas-Giras. Para a Umbanda, é um dia de cura àqueles que buscam por respostas para o sofrimento, um dos motivos que levou a própria Vilma a uma gira pela primeira vez. “Minha entidade chama Cabocla Jurema, ela que é dona, é uma mãe e eu já tenho ela há muitos anos aqui comigo”.
Desde jovem, já sentia os sinais da mediunidade. Frequentou a igreja católica, mas foi na Umbanda onde passou a compreender mais sua espiritualidade e atua como liderança há mais de 50 anos.

Mais adiante, na região central da cidade, uma casa com arquitetura antiga, em tons de rosa, que adentram até a sala de estar do convento das irmãs do Instituto Jesus Adolescente. As paredes com fotografias penduradas mostram todas as madres que já estiveram à frente do Instituto e, o quadro de Neiva do Coração, 67 anos, é o mais recente da fileira. Há 43 anos, a irmã define ter como missão sustentar o mundo com ações e orações, sendo consagrada como freira da Igreja Católica Apostólica Romana.
Neiva foi escolhida como Madre da casa em 2022, por meio de uma assembleia entre as irmãs que ocorre a cada quatro anos. “Eu sempre quis ser irmã. Quando eu tinha 5 anos de idade, duas coisas eu tinha certeza na minha vida: que eu ia ser irmã e professora.”

Durante a semana, ela dá aulas aos estudantes da Escola Estadual Coração de Maria, local onde passou mais tempo em jornada religiosa. Aos 23 anos, após pedir demissão de seu emprego enquanto ainda cursava a graduação, ela atendeu ao chamado de fé e viu que poderia ser freira e conciliar outros objetivos. “Minha vida inteira está muito ligada à educação, eu já dei aula na faculdade, fiz projeto numa universidade, trabalhei em escola. Então, faz parte da nossa identidade estar a serviço dos que precisam, estar alegre e contente com a vida”, comenta.
É Deus quem nos escolhe, a gente atende esse chamado porque queima no coração
Em outro ponto da cidade, no bairro universitário, Marilene Guedes, 55 anos, recebe os irmãos na porta da igreja evangélica Nosso Senhor Jesus Cristo. Com um sorriso no rosto, convida todos com as bíblias em mãos a refletirem a palavra de Deus e rezarem. Nos bancos da igreja, os fiéis escutam com atenção a pregação da evangelista, que sempre foi convicta da sua escolha religiosa. “É Deus quem nos escolhe, a gente atende esse chamado porque queima no coração”, define.
A fé que guia Marilene está presente em sua vida desde muito nova. Apesar do desejo de estar à frente dos cultos da igreja, a parte que mais gosta é a dos bastidores, onde pode aconselhar de forma individual aqueles que a buscam por ajuda espiritual. Através da terapia, Marilene já realizou vários cursos relacionados à área de saúde mental para oferecer acolhimento mais direcionado às mulheres que estão na igreja. “Quando eu estou conversando com a mulher e ela está abrindo o coração dela, eu estou vendo que ela não confiaria mais em ninguém para falar aquilo. Então eu acredito que ali, Deus está me usando para poder ouvir, curar, sarar.”

Já na casa de Ana Paula Espindola, 37 anos, a recepção calorosa e acolhedora com aqueles que chegam invade o ambiente e exibe um pouco do significado do seu cargo para o candomblé. A liderança surgiu na vida de Ana Paula com apenas um ano de casa e assim foi escolhida pelo seu Orixá Xangô como ekedi do terreiro que frequenta. Alguns hábitos foram deixados para trás e deram espaço para uma nova vida como líder da comunidade. “É muito bonito e gratificante, mas é uma coisa que eu nunca esperei, foi uma surpresa para mim”, afirma.
É como maternar, porque no final das contas a gente materna de alguma forma
Por muito tempo foi cética em relação à fé e, inclusive, passou pelo catolicismo até chegar ao Candomblé. O primeiro passo estava dado e, para ser iniciada no terreiro, a celebração exigiu algumas restrições como: não usar roupas de cor preta, evitar bebidas alcoólicas, algumas saídas noturnas, uma alimentação restritiva e o que a marcou para sempre, a raspagem total do cabelo.
Mesmo com as mudanças em seu estilo de vida, o chamado do orixá para ser ekedi a faz mais completa. Sua filha Maria Luiza Espindola também entrou para a religião e a ajudou a construir uma relação mais íntima com os filhos do Candomblé. “É como maternar, porque no final das contas a gente materna de alguma forma. A Ekedi tem o papel de cuidar, do cuidado. É o cuidar no sentido total do cuidar, como a sua mãe cuidou de você.”

Vestidas de corpo e alma
Em junho de 2025, dados divulgados no último Censo das religiões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que as mulheres são a maioria dos fiéis no Brasil. Esses números expressam uma crescente diversificação do campo religioso do país que não se condiciona apenas às estatísticas; os evangélicos, por exemplo, triplicaram seu crescimento em todas as regiões e possuem cerca de 55% de presença feminina. Católicos Apostólicos Romanos seguem sendo mais da metade do país, com 51% dessa estimativa sendo composta de mulheres.
A maior expressão do gênero, no entanto, está nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, que declaram o equivalente a 57% de religiosas mulheres em suas comunidades. Historicamente, essas são religiões consideradas matriarcais, pois têm a figura feminina como o centro das celebrações. Ana Paula e Vilma compartilham seu pertencimento feminino como principal motivador nas funções que conquistaram espiritualmente. “Lá, todo mundo me chama de mãe porque a relação que elas nos passam é assim, da gente ter harmonia entre nosso irmão. A troca de carinho e atenção. Todos que entram aqui, geralmente, querem falar com a mãe Vilma”, fala a mãe de santo.
Ana de Xangô ainda explica que o Candomblé urbano teve grande disseminação no país pelas adaptações à vida na cidade do ponto de vista feminino. “O Candomblé me ensinou muito sobre o meu eu feminino, meu papel como mulher socialmente falando, sobre me empoderar por carregar essa bandeira. A gente sabe que o patriarcado está aí, mas a mulher carrega útero, carrega vida! E isso eles não podem tirar da gente.”
Marilene, por sua vez, representa um grupo religioso que está em crescimento por todo o território nacional. Como evangélica, pertence a uma corrente do evangelicalismo chamada neopentecostal, que experimenta o contato com o divino a partir de outras correntes, como a batista e pentecostal.
Ela é avaliada e faz um curso na igreja para ser consagrada. “Tem casos que o líder indica. Casos e casos, é muito pessoal”. A evangelista ainda não possui o título de pastora, mas acompanha seu marido neste ministério. Segundo ela, há mais ou menos dez anos, a inclusão de mulheres no pastoreio foi determinante para levar a união da presença feminina na igreja. “Para pastorear, primeiro você tem que liderar. Para eu conseguir abençoar a vida delas, trabalhar mais com elas.”
Da mesma forma que outras religiões estão em ritmo de mudanças, a presença feminina com o papado de Francisco, indicou que a Igreja Católica abrisse mais espaços para a representação de mulheres, mas o caráter masculinizado vem desde as escrituras bíblicas.
“Quando a gente está numa paróquia, faz todas as funções dentro daquilo que é permitido. Oficializamos casamentos, todos os sacramentos, menos a celebração da Eucaristia e a Confissão”, conta a irmã. “Eu nasci para ser irmã, eu gosto de fazer o meu trabalho como irmã e não nasci para ser padre”, declara a madre Neiva sobre a vocação que assumiu como mulher religiosa.
Essa fé que ultrapassa a história e as tradições também é vista dos pés à cabeça nessas mulheres, com o uso de cores e estilos de peças especiais do guarda-roupa.
Vilma: nas giras de esquerda, pode usar preto ou vermelho e dependendo da incorporação, calça de tecidos leves ou saia longa são as suas preferências.“Não tem essa de divisão de gênero”.
Neiva: faz uso do hábito, que inclui um véu e um escapulário, joia que simboliza fé e proteção. “Quem quer usar hábito, usa. Quem não quer, usa roupa civil dentro daquilo que condiz com uma vida religiosa”.
Ana Paula: a escolha das vestimentas brancas no uso do quebra-gomo e bata vêm da “história do tecido, porque existe história em tudo”.
Marilene: é adepta a moda evangélica, costuma adotar saias, vestidos longos e vestimentas adequadas aos valores cristãos orientados por sua crença.
A minha fé é o que me guia
Mãe Vilma descreve a sua fé como o amor que tem pela sua família e o encontro pela paz que tanto desejou. Orgulhosa do trabalho que realiza no templo, já perdeu as contas de quantos filhos-de-santo passaram pela sua casa e levaram consigo o sentimento de pertencimento. “Para mim valeu a pena, tudo foi bom para eu criar minha família. Foi muito importante, acho que vim para cumprir essa finalidade.”
Para a madre Neiva, a fé se faz presente em todas as áreas da vida. A irmã exemplifica em um momento de dificuldade em sala de aula, que a fé a conduziu para acolher os alunos da melhor forma possível. “Eu acredito muito que Deus inspira, que Deus põe a mão, que Deus protege. Então, tudo precisa ser feito com esse espírito de fé. Porque se não for, não tem como você acreditar que dá para levar um trabalho adiante.”
Marilene define a fé como a força que a move e acredita que sem ela é impossível agradar a Deus. Firme no seu propósito como líder, acredita que Deus se faz presente em tudo, seja em casa, no trabalho ou nos encontros com os irmãos da igreja. “A fé nos move todo dia para aquilo que eu acredito ser possível e impossível. As experiências que você tem com Deus, ninguém tira de você.”
A fé, para mim é como o amor, é um sentimento que te move e, ao mesmo tempo, é um sentimento de conflito. Porque a fé é conflituosa, mas ela te gera isso: paciência
Ana Paula afirma que seu olhar sobre a vida mudou, principalmente no contexto feminino, no papel da mulher e na maternidade. Apesar do tamanho do cargo, os conflitos internos e questionamentos não deixaram de existir, mas proporcionam a paciência para ser quem ela é hoje. “A fé, para mim, é como o amor, é um sentimento que te move e, ao mesmo tempo, é um sentimento de conflito. Porque a fé é conflituosa, mas ela te gera isso: paciência.”
A fé na religião é o que guia essas mulheres a levarem consigo a responsabilidade de ser um canal de graças entre o divino e o terreno e passarem esses conhecimentos adiante. Além de líderes, elas são mães, esposas, avós, trabalhadoras, sempre atentas ao chamado de suas crenças, cada uma dentro da religião que professa. Em nome de Deus, Exu ou Olorum.