Assédios moral e sexual expõem a desigualdade de gênero nos ambientes profissionais
Texto: Ayumi Chinem | Roberta Dorneles
A violência contra as mulheres é uma discussão importante na sociedade brasileira, em especial, porque o machismo estrutural impacta a atuação feminina também no ambiente de trabalho. O assédio no emprego é um dos entraves para o ingresso, a permanência e a qualidade da presença das mulheres no mundo laboral.
Apesar dos avanços nas políticas de igualdade, o ambiente profissional é palco de comportamentos abusivos. Dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) mostram que, em 2024, mais de 70% das denúncias de assédio sexual envolveram mulheres. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reforça esse quadro preocupante, apontando que uma em cada três mulheres já sofreu algum tipo de violência no ambiente profissional, seja verbal, física ou psicológica.

Entre 2020 e 2023, a Justiça do Trabalho julgou mais de 338.814 processos morais e 22.758 casos de assédio sexual, com 72,1% dessas ações movidas por mulheres. Em 2024, somente nos casos de assédio sexual, houve aumento de 35% (8.612 casos) nas ações em relação ao ano anterior. Apesar desses números alarmantes, a subnotificação permanece um desafio expressivo. Pesquisa do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul (TRE-MS), de 2024, aponta que 97% das mulheres vítimas de assédio sexual no trabalho não denunciam, frequentemente por medo de retaliação ou falta de confiança nos canais disponíveis.
Para reforçar o combate a esse problema, foi instituído em Mato Grosso do Sul o Dia Estadual de Combate ao Assédio Moral e Sexual contra Mulheres no Ambiente de Trabalho, celebrado anualmente em 2 de maio. A Lei 5.699, sancionada em agosto de 2021, visa, ainda, conscientizar, prevenir e combater atitudes abusivas, constrangimentos, intimidações e humilhações que violam a dignidade e a liberdade sexual das mulheres no ambiente laboral.
Outras barreiras também reforçam a desigualdade no ambiente profissional. Dados do 2º Relatório de Transparência Salarial, de 2024, mostram que em MS as mulheres ganham, em média, 27,1% menos que os homens. A pesquisa The State of Women in Leadership, do LinkedIn, revela que apenas 32% das posições de liderança no Brasil são ocupadas por mulheres, mesmo elas representando 45% da força de trabalho nacional.
Esses fatores evidenciam como o patriarcado continua criando barreiras que impedem a ascensão das mulheres e naturalizam a desigualdade de gênero. Isso acentua ainda mais a vulnerabilidade feminina e aumenta a incidência de assédios sofridos por mulheres. É um ciclo vicioso.
Emily Okumoto trabalha no Poderosas e Atrevidas Sex Shop há 17 anos e conta que quando abriu o negócio vendia produtos como óleo de massagem, géis e calcinhas comestíveis, por isso os comentários não eram muito frequentes. Desde que implantou a venda de itens diretamente voltados para o bem estar sexual, como próteses e vibradores, o assédio se intensificou drasticamente. Ele se apresenta de inúmeras formas, desde convites indiscretos até insinuações mais graves.
A situação mais alarmante aconteceu quando um cliente exibiu o genital para ela no meio da loja. “Ele disse que compraria o gel que deixava o órgão maior, mas queria saber se ele precisava. Então, ele tirou o órgão para fora e pediu para eu avaliar”.

Ayumi Chinem
Apesar da gravidade das situações, Emily tenta manter o bom humor e a simpatia, mas admite que já se questionou se gostaria de permanecer nesse ramo. O medo de que algo mais grave aconteça ainda é constante, em especial por trabalhar durante a noite na feira central. “Já aconteceu de um cliente ficar me esperando sair da loja, de achar que eu quero usar o produto com ele”.
Já aconteceu de um cliente ficar me esperando sair da loja, de achar que eu quero usar o produto com ele
Milena Mendonça, psicóloga especializada em Psicologia Organizacional e do Trabalho, explica que o assédio afeta profundamente a saúde mental das vítimas. “Ansiedade, depressão, baixa autoestima e até síndrome do pânico são comuns em quem passa por essas situações. O sofrimento psicológico, geralmente acumulado, gera um desgaste emocional imenso”.

A estudante Andréa Cristina Vieira foi vítima de assédio moral enquanto trabalhava em uma loja de roupas. As situações se intensificaram quando ela percebeu mudanças no comportamento da superior imediata. “Percebi que estava sendo vítima de assédio moral quando minha chefe começou a me rebaixar sem motivo, utilizando sua posição de autoridade para se impor de forma humilhante e desrespeitosa”.
Durante o período em que trabalhou na empresa, Andréa relata ter enfrentado episódios frequentes de repressão, julgamentos, deboche e autoritarismo, além de piadas de mau gosto. “Sempre com o intuito de diminuir meu valor profissional”, destacou. A estudante conta que a prática de micro agressões também fazia parte da rotina. “Com frequência, era alvo de ironias, piadas ofensivas e atitudes sutis de exclusão e menosprezo”.
As consequências foram diretas na saúde emocional e na trajetória profissional da jovem. Andréa afirma que não procurou os canais formais da empresa por receio de represálias, mas buscou apoio em pessoas próximas. “Conversei com familiares e amigos, e após relatar as situações, fui aconselhada a pedir demissão, pois aquilo já estava afetando minha saúde mental.” O caso não teve desdobramentos formais, como investigação interna ou ação judicial.
Os efeitos, porém, vão além da vítima. Milena explica que o assédio prejudica toda a organização. A segurança psicológica é rompida, a produtividade cai, e os relacionamentos interpessoais se deterioram e o isolamento da vítima e o medo de represálias comprometem o desempenho de toda a equipe. Para prevenir o problema, a psicóloga defende a criação de uma cultura organizacional que promova o respeito e a segurança psicológica. Treinamentos regulares, canais de denúncia anônimos e a capacitação de líderes são fundamentais.
Maria(*) viveu na pele o que muitas mulheres enfrentam diariamente. Durante três anos, trabalhou como assistente administrativa em uma empresa. “No começo, eram só piadinhas. Depois vieram toques desnecessários e comentários mais invasivos. Quando reclamei, fui isolada pela equipe e passei a ser tratada como problemática”, relata. A situação atingiu o ápice quando o chefe sugeriu uma promoção em troca de favores pessoais. Maria pediu demissão, mas as consequências foram duras. “Levei meses para me sentir segura em outro emprego. A vergonha e o medo de retaliações me acompanharam por muito tempo”.
Para o advogado trabalhista e professor universitário Rodolfo Loureiro Filho, entre os principais obstáculos enfrentados por quem sofre esse tipo de violência no ambiente profissional está a dificuldade em reunir provas. “Geralmente, isso acontece em ambiente fechado, que não tem uma testemunha ou uma gravação. Então fica muito difícil provar”.
O especialista acrescenta que, por parte das autoridades, há casos em que não há o devido cuidado ao acolher esta vítima”. Ressalta que existem mecanismos formais para que a vítima busque reparação. “A vítima pode denunciar na polícia a conduta ilícita e também pode ingressar com uma ação na Justiça do Trabalho pedindo uma indenização,” orienta.
Assédio moral: um processo de aniquilação emocional
A juíza do trabalho e ouvidora da Mulher no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 24ª Região, Ana Paola Emanuelli Balsanelli, fala com propriedade sobre esse cenário e aponta caminhos para quebrar o silêncio e combater essas formas de violência. Explica que o assédio moral se caracteriza por uma série de ações repetidas com a clara intenção de desmoralizar o trabalhador.
Ela esclarece que “não se trata apenas de um estresse do dia a dia. O que diferencia o assédio moral de um ambiente de trabalho sobrecarregado é justamente a intenção de prejudicar, de isolar e adoecer a vítima”. Esse tipo de violência pode vir tanto de superiores quanto de colegas, o chamado “assédio horizontal” e geralmente se manifesta por meio de microagressões diárias, que escalonam com o tempo.
No caso do assédio sexual, Ana Paola alerta que não se limita ao contato físico. Comentários sobre a aparência, insinuações e “brincadeiras” inapropriadas também configuram a violência. “Você está bonita hoje” ou “essa saia ficou ótima em você” podem parecer inofensivos, mas carregam uma carga de opressão e objetificação que marca profundamente a vítima, diz a juíza.

“Não podemos mais nos calar”
A desigualdade de gênero é a raiz de grande parte dessas violências. “Desde pequenas, as meninas são educadas para suportar, enquanto os meninos são ensinados a dominar. A mulher já nasce em desvantagem”, afirma Ana Paola. Essa cultura machista se reflete em todos os espaços, inclusive no mercado de trabalho.
A magistrada destaca que a maternidade agrava essa desigualdade. “Na entrevista de emprego, perguntam se a mulher tem filhos ou se pretende ter. Já para o homem, ninguém questiona”. E é justamente essa dependência econômica, somada à violência estrutural, que prende muitas mulheres a relações abusivas e ambientes hostis.
Apesar do medo e das dificuldades, a denúncia é o primeiro passo. “Não podemos mais nos calar. Hoje, temos canais de escuta e acolhimento. A Ouvidoria da Mulher, por exemplo, está de portas abertas”, reforça a juíza. Os assediadores, segundo ela, devem responder na Justiça Civil e, nos casos de assédio sexual, também criminalmente.
Ainda assim, o maior obstáculo é o medo da vítima, de represálias, de perder o emprego, de não ser acolhida. A cultura do silêncio ainda é forte, mas Ana Paola se mostra otimista. “Hoje, as pessoas se sentem mais encorajadas a falar. A nova geração não aceita mais esse tipo de opressão”.
O TRT da 24ª Região desenvolve ações permanentes de combate ao assédio. Campanhas, palestras, parcerias com outras instituições e a própria Ouvidoria da Mulher são instrumentos que vêm ajudando a promover a cultura de respeito e equidade. A juíza defende que a transformação deve começar desde cedo. “A educação precisa mudar. Os meninos precisam ser ensinados desde a infância a respeitar, a dividir responsabilidades e a não reproduzir essa mentalidade violenta”.
Violência em alta, apesar dos avanços
Embora haja mais políticas públicas e informação, a magistrada reconhece que a violência só aumenta. “O feminicídio também. A informação cresceu, mas a violência não diminuiu na mesma proporção. Falta educação e independência financeira para as vítimas”.
A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas lançou, em 2023, a campanha nacional #AssédioZero, com o objetivo de promover o debate e combater a cultura do assédio contra professoras, estudantes, técnicas administrativas e profissionais terceirizadas nos ambientes acadêmicos.
Dados revelam a dimensão do problema. Pesquisa de 2015, realizada pelo Data Popular e Instituto Avon com 1.823 universitários, apontou que 67% das estudantes já sofreram algum tipo de violência sexual, psicológica, moral ou física praticada por homens dentro das instituições de ensino superior.
Levantamento de 2020 feito pela pesquisadora Bianca Beltrame, da UFRGS, com 71 Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), mostrou que 52,3% dessas instituições não contam com políticas de prevenção ao assédio, e 70% delas não possuem medidas efetivas de combate.
De acordo com a legislação, o Poder Executivo deve promover, em parceria com órgãos governamentais e não governamentais, ações como seminários, palestras, cursos, fóruns e rodas de conversa para informar sobre direitos, mecanismos de denúncia e a importância de um ambiente de trabalho saudável para as mulheres e assim fortalecer políticas públicas que combatam o assédio. A sociedade civil tem se mobilizado e o assunto se mantém no debate, mas ainda avançamos a passos lentos.