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No grito do rap: Mato Grosso do Sul é indígena

O grupo criador do rap indígena no Brasil, Brô MC’s, revela qual é a visão do país sobre os povos indígenas, ao cantar sobre demarcações, luta e tradição

Texto: Raíssa Trelha | Maria Isabel Mainvailer | Mariana Lima


O gosto pelo estilo começou ainda na infância. Em 2006, desafiado a montar uma apresentação que fugisse dos padrões da escola, Bruno Veron decidiu que o rap seria a sua expressão. Quando foi mostrar a letra para o professor, logo de cara veio o estranhamento. “Eu falei que tinha um rap para cantar e ele disse: ‘rap? mas o que é isso?’”.

Clemerson, Bruno, Charlie e Kelvin, integrantes do Brô MC’s – Foto: Luan Iturve

Clemerson Batista, Bruno Veron, Charlie e Kelvin Peixoto, duas duplas de irmãos das etnias Guarani-Kaiowá e Terena, nasceram em uma reserva indígena localizada na cidade de Dourados (MS), em uma espécie de periferia rural. Com ruas precárias, casas simples, sem muita estrutura e um comércio pobre, o local por si só já demonstra o tratamento do estado para com os povos originários.

Prontos para mostrar o talento com as palavras musicadas e transmitir a cultura indígena por meio da arte, os jovens atraíram atenção de alguns professores da Escola Estadual Indígena Guateka Marçal de Souza. A partir daí, o sonho com a música e o que viria a ser o Brô Mc ‘s começou a nascer.

“Não tinha ninguém que falasse por nós, que gritasse a voz do povo Guarani-Kaiowá”

A vivência recorrente de conflitos com fazendeiros por demarcação de terras e a realidade das aldeias sendo noticiada de forma distorcida nas rádios da cidade, fez com que os quatro decidissem utilizar o rap para reivindicar direitos, expressar indignação e levar a cultura de seus povos para além da reserva.

Para Kelvin, nas músicas o grupo dá o grito que pede socorro para os guatekas, o mesmo grito que ouvem dentro da aldeia que é cercada de retomadas. “A gente escuta quase diariamente, barulhos de estouro e tiro, esse tipo de grito não chega aos lugares.” A música Terra Vermelha retrata bem a resistência dos “guerreiros do passado massacrados”.

Foto: Raíssa Trelha

Motivados pelas histórias contadas no rap nacional, impulsionado com os Racionais Mc’s, os artistas mesclam em suas letras AS EMOÇÕES de suas histórias com a realidade vivida pelo povo Guarani-Kaiowá.

Assim como Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, o Brô não se intimida com a reação do público às suas letras, que segundo eles, é considerada pesada até pelo próprio movimento hip-hop, e reflete a realidade indígena.

A representatividade índigena que o grupo fala em suas músicas está presente em quase toda a equipe de trabalho que faz o Brô acontecer. Com exceção da produtora Fabi Fernandes, Karaí, como eles a denominam, desde o marketing digital até as roupas utilizadas nos shows, tudo é produzido por indígenas.

Segundo Fabi, o grupo precursor da arte contemporânea ancestral abre portas para a comunidade que busca expressar a cultura, língua e o talento dos povos originários. Algumas das artistas que compõem a sua equipe são nomes conhecidos nacionalmente, por exemplo, a figurinista Dayana Molina, referência em vestuários indígenas, e também a ex-atriz, Eunice Baía que interpretou a indígena Tainá, no filme de mesmo nome.

“Para mim, o Mato Grosso do Sul é indígena”

Desde o início da carreira uma das maiores dificuldades enfrentadas foi a falta de shows em Mato Grosso do Sul. Brô Mc’s já se apresentou em diversos locais do país, e até em Frankfurt, na Alemanha, a convite do Weltkultoren Museum, mas raras vezes em sua própria cidade.

Para Bruno, os grandes festivais musicais do estado não valorizam os artistas sul-mato-grossenses, a não ser grupos sertanejos. Brô Mc´s não foi convidado, por exemplo, para participar do “Campão Cultural”, o primeiro Festival de Arte, Diversidade e Cidadania, organizado pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Campo Grande (Sectur), entre novembro e dezembro de 2021.

Convidado pela rapper Cris SNJ para fazer uma participação em seu show no festival, o grupo foi a Campo Grande, mas não pode subir ao palco. Os organizadores do festival disseram que o Brô era “estrelinha demais” e cobrava um cachê muito alto. “Nesse evento que aconteceu há um tempinho em Campo Grande a gente foi boicotado”, aponta Bruno

Criar um grupo de rap e ignorar os preconceitos distribuídos em uma sociedade que nega sua origem é uma luta diária do Brô. Conhecidos também por não se calarem, o grupo viveu no começo da carreira uma objeção dupla: o estranhamento do movimento hip-hop diante da imagem de indígenas cantando rap, e de outro lado, caciques e lideranças da aldeia questionando o motivo de tal empenho com a música de denúncia. “O maior desafio que enfrentamos como grupo foi o preconceito. Quando a gente ia tocar, as pessoas falavam que lugar de índio era na aldeia, que estávamos indo fazer a dança da chuva e coisas assim”, continua Bruno.

Mesmo antes do sucesso nos palcos e nas redes sociais, os jovens não escaparam de sofrer xenofobia. Bruno afirma que até em casa, os próprios pais pediam para que não falassem em guarani quando estivesse na escola, pois assim evitariam os estigmas com o sotaque.

Com uma irmandade que vai para além dos laços sanguíneos das duplas de irmãos, o Brô não desanimou com os primeiros comentários negativos que recebeu. Em 2009, quando lançaram o álbum inaugural, saíram de porta em porta pelas casas da aldeia para vender a cinco reais o ‘piratão’, como o chamaram.

Em 13 anos de existência, o grupo luta contra todas as barreiras que tentam impedir a expressão de sua arte, seja na aldeia ou na cidade. Após ganharem repercussão cantando sobre o cotidiano que os indígenas da Jaguapiru e Bororó vivem, os preconceitos com o rap indígena foram se dissolvendo entre o povoado e deram lugar à parceria e apoio.

As letras em guarani-kaiowá, língua materna dos integrantes, trazem um alerta sobre a importância de manter vivo o idioma já quase extinto e torná-lo conhecido entre os não indígenas, segundo eles. “Tem músicas que é só na nossa língua, muitas pessoas não entendem, xingam e ofendem nas redes. Para nós não importa, o que eles tem que saber é que a gente é originário e falamos guarani-kaiowá”, afirma Bruno e todos confirmam com a cabeça.

Mais do que estabelecer a representatividade das vozes originárias, as músicas mescladas com dois idiomas trazem à tona uma realidade que há tempos as Karaís tentam apagar do solo brasileiro: O Brasil e, sobretudo, o Mato Grosso do Sul, é indígena.

Além dos músicos que inspiram o Brô na composição de suas músicas, o grupo também está na lista de inspirações de outros grandes artistas, que viram neles a concretização para também trilhar um sonho.

O grupo é fortalecido ao saber que Jason Fernandes, mais conhecido como Xamã, que se autodeclara afro-indígena, rapper carioca que alcançou primeiro lugar das mais ouvidas no Brasil em 2021, e 38º nas paradas mundiais com o hit “Malvadão 3“, se inspirou neles. “No tempo que ele vendia balinha no farol, ele viu a gente no arco da lapa quando fomos fazer o nosso primeiro grande show no Rio de Janeiro”. Xamã disse aos meninos que eles o estimularam a não desistir de fazer o que gosta.

O que parece ser o ápice da carreira de um artista, para o grupo acontece de forma natural. Participar do Rock in Rio 2022, é “normal”, segundo eles, consequência de um trabalho de anos. Brô Mc´s subirá ao Palco Sunset em setembro de 2022 junto com o rapper Xamã. “Cantar no Rock in Rio é a forma de levar o grito de socorro das três etnias e representá-las”, afirma Kelvin.

O grupo também participou da série documental do DJ Alok, que fala das raízes sonoras dos povos originários do país. Além de gravarem três músicas para o novo álbum do artista. Uma das músicas da parceria é trilha sonora da novela “Pantanal” da rede Globo, “Jarahá”, que mistura português e guarani, e é sobre a luta por demarcação de território e a cultura indígena. No grito do rap, Brô Mc’s mantém firme a origem indígena de Mato Grosso do Sul. Iporãpe koape aju ehendu che nhe’e porahei, (na humildade eu venho, escute meu canto).

Letra da música Jarahá

Jarahá ( Estamos levando)

Iporãpe koape aju ehendu che nhe’e porahei
Na humildade eu venho, escute meu canto
Só ke mbaepa koape ajapo,tekoha tekoha ,retomada retomada
Só que realmente venho fazer, meu lar meu lar, retomada retomada
Rehegua aju achuka
Sobre isso vim mostrar
Karai guarani che aju koape ambopy
Homem branco em guarani vim tocar
Mbaeichaguapa ore rogueru
O que realmente viemos trazer
Kaiowa guarani mbarete nhande hente mbarete koape che nhe’e
Kaiowa guarani nosso povo é forte
Com força, minha fala vim trazer
Nhanderú ha nhandesy ombovava pe mbaraká
Nhamderu e nhandesy chacoalhando mbaraká
Mborahei ko mbarete ko ape ojelutá
Reza forte na luta
Nhamderu guasú omanhã yvategui omopotî
Nosso Deus de lá de cima olha e limpa o nosso caminho
Ko ape nhanderape upepe jaguatahanguã
Limpando pra gente caminhar
So ke jahechá tenomdepe oi ypy Guarani ha kaiowá ibatalhare yvy
Mas sempre vimos os ypy e Guarani e kaiowá batalhando por suas terras
Tekoha ymaguare jajevyta jaipe’a
Terras de origem que vamos retomar
Ko ape ko nhamderu ha’ekuera oikuaa
Os anciãos sempre sabem que essas terras é sempre nossas
Jaha!jaha!jaha!jaha! (2x)
Vamos!vamos!vamos!vamos (2x)
Hake!!!
Cuidado!!
Koape,apê,koape,apê,koape,apê,koape e!!
Aqui,e ali,Aqui,e ali, Aqui,e ali, aqui!!
Jagueru jachuka haetegua
Viemos mostrar a verdade
Tenonde mombyry jaraha
Estamos chegando longe
Koa nde rehegua
Essas e de vocês
Jahake jajegua
Vamos usar nossas pinturas
Upecha ave jaha
E assim vamos caminhando
Imbarete ava
Para nos fortalecermos
A gente grita mas ninguém nos ouve, aprendi a sua língua não indígena, essa é pra você
Quanta tristeza pobreza, andam lado a lado
Dentro de um barraco caindo aos pedaços
Passando fome sem graça, bebendo só água suja com a roupinha furada e seu cachorro
do lado
De baixo, de baixo do palco mantendo a gente isolado.