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Opinião 97

Nosso luto frequente

Carlos Eduardo Ribeiro


O luto é a fase da expressão dos sentimentos decorrentes da perda, a qual se demonstra por choque, desejo, desorganização e organização. É a fase de aprender que a morte deve ser tornada real. Geralmente leva-se um longo período de assimilação. Entretanto, uma das mais estranhas realidades da pandemia é o luto frequente. Para além do nosso convívio familiar, também ficamos abalados com as inúmeras mortes de grandes referencias populares, que faziam parte do nosso cotidiano.

O mundo das artes foi fortemente abalado. Porém, diferentemente de outras fatalidades que causaram um trauma nacional, as mortes por Covid vêm acompanhadas de circunstâncias políticas agravantes: o negacionismo e a falta de um plano para contê-las, uma vez que hoje já somam mais de 600 mil.

Foto: Pedro França / Agência Senado / FotosPublicas

Nesses dois anos de pandemia, junto a um sentimento de ‘orfandade’ cultural, vivemos sob um clima de morbidez nacional. Em 4 de Maio de 2020 perdemos Aldir Blanc. Um dos maiores compositores de nosso país, o artista escreveu músicas como ‘O bêbado e o equilibrista’ (imortalizada na voz de Elis Regina), ‘Resposta ao tempo’ e ‘Amigo é para essas coisas’. Uma perda que certamente representou a morte da esperança equilibrista. O luto pela partida de Aldir Blanc também chamou a atenção pela maneira que o país tratava seus heróis nacionais. O compositor morreu esquecido, sem recursos para se manter internado no hospital e vivendo de doações.

No mesmo dia em que o vírus levou Aldir Blanc, perdemos também Flavio Migliaccio. A morte dele não foi por Covid, entretanto representou um choque. O brilhante ator fez parte do cinema novo, atuando em clássicos como ‘Cinco Vezes Favela’, ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’ e ‘Terra em Transe’. Flavio também fazia parte do nosso cotidiano por ter atuado na TV brasileira ao longo de 40 anos. A conjuntura político- social, um processo que Migliaccio travava contra a antiga TVE, além da pandemia, teriam criado um vórtice de depressão e desalento tal que ele já não via mais solução e alegria numa vida futura. Seu corpo foi encontrado sem vida em seu sítio, na cidade de Rio Bonito. Ao seu lado, um bilhete dizia: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui”.

Após a morte dessas duas referências da cultura brasileira, fomos abalados por muitas outras: Nicette Bruno, Tarcísio Meira, Agnaldo Timoteo, Nelson Sargento, Robson Rocha, Paulo Gustavo, entre outras. Tais perdas provocaram uma forma diferente de luto coletivo. Uma constante apatia e desalento parecem ter tomado conta daqueles que cultuavam a arte dos que partiram, já que além das perdas do dia-dia também fomos trazidos para uma realidade desconhecida, bruta em que até nossos mestres estão nos deixando.

Entretanto, a revolta também existe, afinal são mortes que reúnem elementos políticos cruciais. Foram perdas evitáveis, com provas da omissão governamental, em um país largado à tragédia.

Todo esse luto vai se somando a um caldeirão de sentimentos confusos e inconclusos, e que geralmente acabam transbordando, pontualmente, com cada óbito de um desses grandes ídolos. A morte do ator e comediante Paulo Gustavo, certamente foi uma das que mais abalaram o país, misturando a revolta popular com o luto. A figura que estava tão presente no nosso dia a dia, seja na televisão ou no cinema, catalisou a dor coletiva. De Aldir Blanc a Paulo Gustavo esses estranhos tempos pandêmicos representaram uma enorme perda sociocultural. A cada perecimento vamos ficando mais órfãos, misturando revolta com tristeza.