Histórias por trás da romantização de mães solo
Texto: Evellyse Michelle| Mariana Lima | Patrícia Martins

A maternidade solo retratada pela mídia, especialmente no ramo publicitário, sugere a figura de uma ‘super-mãe’ – a heroína que consegue tudo, supera limites, e que sempre ‘dá conta do recado’. No entanto, quando olhamos para a realidade, é possível perceber uma romantização da rotina de sobrecarga, cansaço mental e pressão psicológica com as demandas que a maternidade exige.
Essa visão que habita no imaginário da sociedade contribui de forma efetiva para a manutenção de opressões que fazem a maternidade ser obrigatória e a paternidade facultativa. De acordo com a Associação de Registradores de Pessoas Nacionais (ARPEN), o número de crianças sem o nome paterno no registro de nascimento aumentou pelo 4º ano consecutivo em 2021, chegando a quase cem mil.
A Maternidade Solo
A denominação ‘mãe-solo’ está associada à solidão ao criar uma criança. Há mulheres que são inteiramente responsáveis pela criação e demanda de seus filhos, tendo ou não um parceiro, pois o estado civil não interfere em sua maternidade.
De acordo com o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, mães solo representam 37% das famílias brasileiras. Vivenciam esta condição mais de 11 milhões de mulheres no Brasil.

Para a cientista social e doutoranda em Educação pela UNICAMP, Nátali Bozzano, que também é mãe solo, isso se justifica porque não avistamos a imagem masculina associada às funções de cuidado. “Tanto é que quando a mulher tem um parceiro, ela fala ‘ah, ele me ajuda’, como se fosse um cuidado secundário. […] A gente não cobra dos homens por achar que é uma questão natural às mulheres estarem nessa função de cuidado”.
A empreendedora Mayumi Nakasato, 27, relata que desde a descoberta da gravidez, o ex-marido se mostrou em choque. “Ele falava que eu era muito nova, que ia decepcionar minha mãe, que ia me prejudicar nos estudos, que poderíamos ter esse filho mais pra frente. Eu disse apenas que não iria implorar para que ele assumisse a paternidade, já que considerava ser muita responsabilidade. Eu me considero mãe solo desde a gestação, apesar de continuar namorando com ele e seguir para um casamento, justamente por ele não ter tido responsabilidades. Eu era a provedora de casa, tinha que correr atrás de tudo, e até hoje é assim”. Mayumi conta que depois de dois anos separada, recorreu à justiça porque o ex-marido havia parado de pagar a pensão. “Ele olhou pra conciliadora e falou que não estava em condições psicológicas e financeiras para estar na audiência naquele momento. Foi cômico”.
Essa é também a realidade de Ruth Lopes, 27, moradora do interior de Minas Gerais. Ela passou pela experiência de ser mãe solo duas vezes. “Me vi sozinha, grávida de dois meses. Tive que criar força, maturidade e responsabilidade. Após o nascimento da Gabriele, a única coisa que ouvi foi ‘vou querer um DNA’. Tive de enfrentar a segunda gravidez também sozinha. Grávida e com uma filha de três anos”. Apesar de toda sua história, ela afirma que não gosta de ser denominada como ‘guerreira’. “Deveria ser ‘a Ruth é sobrecarregada’, porque o pai da filha dela não cumpre com as obrigações de pai”.

Ruth é criadora das páginas Mãe Solteira, no Facebook, e @maesolooficial, no Instagram, que contam, juntas, com mais de 400 mil seguidores. Ela criou os perfis para utilizá-los como um diário, compartilhando as dificuldades da maternidade solo, e considera que hoje esse é um espaço de visibilidade, onde ela também posta informações jurídicas. “Antes não existia uma visão sobre nossos direitos. Tinham mães que morriam de medo de perder a guarda pelo simples fato de deixar a criança com a avó para ela poder trabalhar, e o pai ameaçava. Hoje em dia eu tenho advogados que trabalham junto comigo e a gente coloca ali sobre os direitos das mães e elas ficam bem informadas”.
Ansiedade e Culpa
Outro agravante presente na vida de mães-solo é a ansiedade, a culpa e o sentimento de incapacidade com relação às demandas da maternidade. Em grande parte, as mães nesta situação precisam se desdobrar para atender à rotina exaustiva que envolve o trabalho, a casa, a saúde e a educação dos filhos. Com uma imensa lista de tarefas para cumprir sozinha, essa mulher acaba por deixar de lado os cuidados consigo mesma e embarca no ciclo do auto-esquecimento, onde ela sempre está no último lugar de prioridade.
A psicóloga Myllena Santana conta que tais sentimentos são tão intrínsecos a essas mulheres que em muitos casos elas não notam os sintomas de sobrecarga. “Muitas mulheres levam isso no automático. Elas não conseguem perceber, porque a noção que elas têm é que aquilo é obrigação, faz parte do papel dela estar sentindo tudo isso”.
Ana Joice Leite, 45, mãe de dois meninos, diz que se sente frustrada quando não consegue dar conta dos seus múltiplos papéis. Ela conta que o horário de aula dos filhos coincide com sua agenda de trabalho durante o dia, restando apenas a noite para ter um tempo com os meninos. Ana é a única fonte de renda da casa, e a sustenta com o salário mínimo que ganha somado à pensão que os filhos recebem do pai. “Minha maior dificuldade é cuidar de mim mesma. É tanta coisa para dar conta que não sobra tempo para sair, para conhecer pessoas e acabo ficando muito só”. A mãe de Gustavo, 16, e Miguel, 10, afirma que sofre por se cobrar demais e por ter a sensação de que sempre falta algo. “Isso nos cansa não só fisicamente, mas psicologicamente, e muitas vezes nos frustramos porque não somos ‘supermães”.

Gustavo e Miguel – Foto: Acervo Pessoal
Esse é um sentimento compartilhado por outras mães solo. Para Ruth, a luta é diária. “Quando você pensa ‘acabou, agora vai ser mais tranquilo’, sempre surgem coisas novas. […] Tinham vezes que eu pensava ‘não vou dar conta, é muito sofrimento, é melhor acabar com a minha vida’. Eu chorava mesmo, quase entregava os pontos”.
Mayumi Nakasato conta que sua experiência foi muito solitária e cercada de pressões sociais. “Eu tinha muito comigo aquele lance de ‘você tem que dar conta, você colocou uma criança no mundo’. Fiz tudo sozinha, mas foi muito difícil. A gente tem essa visão errônea de que você tem que dar conta do recado, que a maternidade é linda, quando na realidade não é bem assim que acontece”.

Raízes no Patriarcado
Desde muito cedo as meninas são ensinadas sobre as responsabilidades maternas e da vida de uma dona de casa, que limpa, cozinha e está sempre bem arrumada para o seu marido. Nesta cadeia histórica e cultural, Nátali Bozzano diz que falas como ‘meninas são mais responsáveis do que os meninos’ ou ‘mulheres são mais dóceis’, determinam essas relações como inerentes à feminilidade.
Nátali reitera que essa vinculação traz sofrimento para a vida das mães, que se sentem culpadas. “Essa culpa é uma forma de controle social. Não é natural que a mulher faça muitas coisas ao mesmo tempo. Isso nos foi ensinado. A menina desde cedo é aquela que lava a louça e cuida do irmão enquanto ele não precisa fazer nada por ser um menino. Somos criadas nessa cultura da menina-mulher que faz tudo e quando chegamos na fase adulta dizemos que a mulher sabe fazer várias coisas ao mesmo tempo, mas isso não é natural e nem biológico. Tudo foi ensinado”.

Para Nátali, a luta contra o patriarcado é diária e praticar o autoconhecimento é uma forma de superar as barreiras machistas que perpassam o mito da ‘mãe heroína’. “A gente precisa se conhecer, saber quem nós somos, quais são os nossos desejos e nossas ambições. Ninguém está livre de um sistema completamente, mas buscar autonomia para não cair em ciladas, conhecer seus desejos e se questionar: ‘eu quero mesmo um relacionamento ou fui ensinada que só assim serei feliz?’ é um ponto importante”, afirma a cientista social.
Cadê o Pai?
A aceitação e conformismo com relação à ausência paterna na vida dos filhos ainda é passiva e pouco discutida. Ruth considera essa legitimação da falta paterna um absurdo e que o olhar social deveria ser o mesmo para ambos. “Muitas vezes a mãe sai como errada e o pai como certo. ‘Ah você virou mãe solteira porque você não presta, porque você não se deu o valor’. Mas ninguém fala isso para o pai. Se virem o pai solteiro cuidando do filho, vão falar que ele é guerreiro, batalhador, vão dar a ele todos os elogios possíveis. Já a mãe, não. A mãe sempre vai ser julgada”.
De acordo com a ARPEN, cerca de cem mil crianças nascidas no ano de 2021 não possuem o nome do pai na certidão de nascimento.
A psicóloga Myllena reitera que essa idealização é histórica, pois há muito tempo a figura masculina é ausente. “Historicamente o pai é o provedor. Ele quem saía e ia fazer tudo para o sustento da família. Então a paternidade é facultativa, porque o cara pode exercê-la ou não. Já a maternidade é compulsória nas mulheres. Até na questão judicial as mulheres são prioridade. Por que não pode ser a mãe quem vê o filho de 15 em 15 dias?”.
Rede de Apoio
Uma das formas de minimizar os impactos negativos advindos da rotina cansativa de mães solo é uma rede de apoio. Esta rede serve para acolher e amparar a mãe nas demandas que envolvem a criação do filho. Parentes, amigos, educadores e pessoas que se fazem presentes na árdua rotina de cuidar de uma criança é o que forma a base dessa rede. Unidades Básicas de Saúde, assistência social, Delegacia da Mulher, escola e políticas públicas também se enquadram como rede de apoio. Apesar de não substituir a imagem do pai, esse suporte auxilia a mulher para que ela não se sinta tão só diante das dificuldades enfrentadas.
Para Myllena, essa rede é fundamental na criação da criança. “Um ponto importante é que pai não é rede de apoio. Pai é pai, mãe é mãe e todos tem sua função diante da criança. O pai não apoia a mãe, ele não a ajuda. Ele tem a obrigação dele como pai”, afirma.

Ela ainda reitera que a sociedade não compreende as relações de apoio na vida das mães, pois não consegue ver a mulher enquanto indivíduo, sem o vínculo dos filhos. “Existe muito essa ambivalência de entender qual o papel da mãe. É preciso separar: existe a mãe e existe a mulher. Não é porque você se torna mãe que você deixa de ser mulher. Essa rede de apoio que fica com a criança para que a mãe possa viver outras coisas é essencial”. Para Myllena, raramente uma mãe conseguirá manter sua saúde mental e física intacta sem a presença de uma rede de apoio disposta a auxiliá-la com a maternidade.