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O jogo dos compadres à frente do Projétil

Texto: Maurício Aguiar | Rafaella Moura
Ilustração: Marina Duarte


“Um cara que não tem medo, que tem coragem, que enfrenta e que chuta a canela dos poderosos”, descreve um dos compadres quando se refere ao trabalho complexo do notório repórter e egresso da primeira turma do até então curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Rubens Valente. Mal sabe ele que fez referência a si próprio e aos seus compadres, os quais mantiveram com diligência e empenho o trilhar de uma longa e renomada produção do Jornal Laboratório ao longo dos anos. Na etimologia, a palavra “compadre” está diretamente ligada a “quem coopera com o pai”. Nesse caso, um pai que não é nem pai, mas é a forma de um substantivo masculino que dita as regras do jogo. O Compadre complementa que Rubens Valente é “o grande exemplo do sujeito que enfrenta, porque o jornalismo precisa disso”. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Se hoje Rubens é o fruto do filho que enfrenta, é porque o pai-que-não-é-pai-mas-que-é-substantivo-masculino precisa. O pai é o Jornalismo. O filho é o Projétil. E os Compadres… como posso melhor apresentá-los a vocês?

Peças do tabuleiro

Na linguagem semiótica, beira a semelhança entre o pantaneiro “velho do rio” e o mais caricato dos viajantes do tempo ‘hollywoodianos’. Há quem diga que Edson Silva é uma lenda. Outros afirmam que ele é um fato. Fato ou hipótese, o primeiro dos Compadres é incontestavelmente lembrado pela palavra “imersão”. Desde suas exigências aos processos imersivos na construção de reportagens para o Projétil às imersões em sua fortaleza, dividindo uma boa comida e música ao lado de seus alunos e alunas. Ao seu ver, os estudantes “têm que ser perturbados”. O Compadre é calmo e fala baixo, mas no ensino, faz arder a inquietação de enxergar os procedimentos jornalísticos do Projétil como se eles estivessem vivendo uma distopia. “O aluno tem que sonhar com a pauta, ele tem que ver a pauta como um fantasma que a noite o chama para responder determinadas coisas”, completa Edson. Destoando dos cenários fictícios de fantasmas e viagens no tempo, o professor aposentado se comprometeu com a realidade ao atuar na linha de frente do Projétil, por 24 edições.

O segundo Compadre é um novo-velho conhecido. Para as novas turmas, é uma referência em forma de um gabarito do Projétil desenhado à mão. Para as turmas mais antigas, é as mãos que fizeram o desenho de páginas do jornal virarem referência. Quem desenha não tem pressa. Sabe errar e tentar de novo. Ainda que com leveza, tem a ânsia de fazer com que o Jornalismo seja feito e entregue nos prazos. Mesmo que seja em uma mesa de bar. “O trabalho faz parte da vida, a gente não precisa se estressar” é a lembrança acesa de sua trajetória à frente do Projétil. José Márcio Licerre sabia os tantos meios, mas ensinou seus alunos, alunas e compadres a se libertarem do metodismo para executar uma produção. “Não dá pra gente andar de Ferrari, mas de fusquinha a gente chega lá”, apontou ao ser indagado sobre os processos de planejamento gráfico do jornal laboratório. O sarro e a brincadeira, aliados ao profissionalismo e à dedicação árdua, levaram Licerre a participar de 66 edições do jornal.

Existe um paradoxo entre os jornalistas. Devem falar muito ou pouco? Observar ou fazer perguntas? A única certeza é que, para ser jornalista, tem que ser bom narrador. O terceiro Compadre é o que a gente escuta por aí sobre um “contador de histórias”. Alguns dos tantos quase-jornalistas que já lotaram as salas de aula de Mario Luiz Fernandes devem se recordar da sua experiência no Rock in Rio de 1991 e como o Compadre aproveitou os shows só com o dinheiro da passagem no bolso. O Boêmio até se aventura em versar letras de música. É o narrador-compositor das melhores histórias de Balzac. “Às vezes você enfrenta muito discurso contrário dentro de uma iniciativa que é muito positiva”, relata o Compadre ao fazer referência às reivindicações e mudanças que o curso e o jornal sofreram ao longo dos anos de atividade. Mario Luiz assumiu o Projétil na edição 62 e se manteve até 2014, na edição 82.

Je ne sais pas parler français, mas ele deve até tentar. Mesmo com toda a bagagem de um jornalista pós-doutor, o quarto compadre vive um sonho adolescente no disfarce comum do universitário: camiseta, calça jeans e adidas superstar nos pés. Com seu espírito regado à juventude, Marcos Paulo da Silva chegou para assumir o Projétil confundindo os antigos credos e propondo mudanças para se adequar à modernidade. “Se a gente não começasse a trabalhar com as novas gerações e elas não passassem a entender o jornalismo como uma mediação importante da sociedade, a gente ‘taria ferrado’”, explica o Compadre ao utilizar gírias e tantos outros termos que contrariam a norma culta da língua. Língua essa que se mistura entre os jargões e idiomas, fazendo com que o “Emepê” buscasse a referência para a reformulação do Projétil entre o sotaque bonito e a forma crítica-moderna do periódico Le Monde Diplomatique. Entre aulas e cafés com estudantes nas cantinas da Universidade, Marcos Paulo participou ativamente de três edições do jornal. Bem aquelas que desencadearam a nova proposta gráfica e editorial do Projétil.

A pressa é típica do jornalista. Mas na universidade também aprendemos a ter pressa. Seja para cruzar o campus em busca da sala ou para finalizar uma pauta. Ao passar pelo Corredor Central, observamos a urgência de alguns. Se está sempre correndo, trajando uma polo e nunca olhando para o lado, podemos estar falando da mesma pessoa. Se você chutou “é jornalista!”, acertou. É professor, também. Silvio da Costa Pereira, o último compadre, tem a pressa e a coragem de enfrentar quem acredita na perfeição. Com seu olhar imagético, enxerga o mundo através de lentes. Como uma câmera, Silvo é um analógico vivendo em tempos digitais. “Para manter o Projétil, a gente considera que é muito importante ter papel ainda, transformar ele simplesmente no online acho que não cabe”, reforça ao optar pela lentidão dos processos produtivos de um jornal impresso. Silvio assumiu a direção do Projétil em tempos pré-pandêmicos, em 2019, e continuou no período de total distanciamento social, nas edições 94 a 97.

O jogo

Seria irônico se o único dia da semana que chovesse fosse justamente o dia da coletiva que reuniria cinco dos professores orientadores de edições passadas do Projétil. Bem, na sexta-feira, 14 de abril, choveu. Dentro do Anfiteatro Marçal de Souza, o tempo passou diferente. Eram mais de 30 anos de Projétil para serem contados em pouco mais de duas horas. O professor Edson já se desculpou com antecedência. “Uma das marcas que eu acabei deixando aqui no curso é que eu falo demais, tá? O que é ruim para um repórter que sou. O repórter deve falar pouco e ouvir muito”, brincou.

Comecemos do começo. A primeira edição foi lançada menos de um ano depois do início do curso de Jornalismo da UFMS. Edson destaca a primeira reportagem de capa da história do Projétil, “O jogo de cena na terra dos compadres”, que 33 anos depois influencia o título deste texto. Na época, a reportagem buscava abordar os acordos políticos em Mato Grosso do Sul. A capa causou impacto no jornalismo local ao falar sobre política de maneira escrachada.

“Você chega ‘de cara’. Um cursinho de merda, com professores que ninguém conhecia direito e já chega chutando a canela da política. O Projétil já chegou mostrando a que veio”, relembrou.

Na prática, o jornal laboratório tem como objetivo simular a experiência de uma redação jornalística. Mas, diferente de redações tradicionais, Márcio Licerre ressalta a liberdade dos alunos e alunas no Jornal Laboratório. “A casa é contra ou a favor? No Projétil não tem isso […] Não podemos ter medo. Chegar hoje à centésima edição é um negócio que dá pra largar a mão, não dá pra pegar leve e esquecer”, considerou. Para chegar à edição 100, o Projétil passou por aproximadamente 23 professores, cerca de mil estudantes e é o único jornal laboratório impresso perene do curso de Jornalismo da UFMS. Até hoje, o reflexo da primeira turma que o produziu pode ser visto em seu nome. Decidido em uma precária votação em sala de aula, o nome ‘Projétil’ foi idealizado com uma subversão em mente, que fosse um “tiro certeiro” ao chegar nas bancas.

A função do professor-orientador em um jornal laboratório é difusa. Não é um editor-chefe, mas está ali para guiar os e as estudantes e garantir que o produto final seja entregue. Como no mito de Prometeu, que dá o fogo e ensina a brincar, cabe aos mortais decidirem o que fazer com ele. Com mais de dez anos de experiência como editor-chefe, Mário assumiu que dividir funções não foi uma tarefa fácil quando chegou ao Projétil. “Essa foi minha primeira grande dificuldade, era uma turma de trinta alunos e tinha que negociar com eles. Eu não estava na posição de editor, mas sim de mediador, para trabalhar um produto que mexe na cabeça dos alunos”, contou.

“O professor tem que enfiar uns negócios na cabeça do aluno para ele ficar perturbado. Ele tem que se incomodar com aquilo que o professor está falando”, defendeu Edson. De fato, quem pisa no Projétil nunca sai do jeito que entrou. Resultado do processo imersivo e de reflexão que as reportagens requerem. Na edição 31, uma das primeiras temáticas do Projétil, esse processo de imersão foi levado ao limite. Edson e Licerre, junto ao professor Marcos Morandi, propuseram aos estudantes uma viagem à cidade de Bonito, que serviria de inspiração para as pautas. Nesse processo, os acadêmicos encontraram descasos ambientais e problemas sociais. A turma retornaria à Bonito para distribuir o jornal, mas a prefeitura ‘desconvidou’ estudantes e professores, dizendo para nunca mais colocarem o pé lá. “Ótimo, cumprimos a nossa tarefa”, conclui Edson, que encontrou na negativa, o incômodo que o jornalismo tanto almeja causar.

Outra edição emblemática para os compadres foi a 68, lançada durante a comemoração de 20 anos do jornal, em 2010, com orientação de Licerre, Mário, Silvio e o professor Mário Ramires. A reportagem de capa “O negócio do câncer” se aprofundou no desvio de recursos para o tratamento da doença no estado.

A repercussão da matéria em Campo Grande fez com que outros veículos locais também investigassem o assunto, que posteriormente virou reportagem no Fantástico, programa da TV Globo.

A tiragem e o número de edições do Projétil variaram muito ao longo dos anos. Nos primeiros anos, o jornal laboratório não era um projeto centralizado, mas resultado de uma colaboração entre as disciplinas de Edição, Redação e Planejamento Gráfico.

Gambito da Rainha

O jornalismo está sempre em constante mudança. Marcos Paulo chegou na UFMS em 2013 e o Projétil já era histórico, mas havia passado por pequenas mudanças editoriais. Quando ele assumiu a orientação do jornal laboratório, em 2018 – junto a professora Rafaella Peres –, houve uma renovação. “Eu assumi meio que no susto. Havia um desafio colocado pela coordenação do curso de diminuir a velocidade e aumentar o investimento em reportagem”, afirmou.

A reformulação do Plano Pedagógico de Curso centralizou a produção do Projétil em duas disciplinas, Jornal Laboratório I e II. Assim, o número de publicações anuais diminuiu de quatro para duas. Do ponto de vista editorial, outra grande mudança foi a implementação de uma dinâmica da divisão de trabalhos, mais próxima de uma redação jornalística. As turmas passaram a ser divididas em editorias transversais: executiva, arte, opinião, imagem e reportagem. Em meio à crise do jornal impresso, a edição 90 chegou às ruas trazendo o novo Projétil, modernizado e pensado para novas gerações.

“Quando eu cheguei no Projétil, o projeto gráfico era feito lambendo cola Pritt”, relembrou Licerre sobre o processo gráfico das primeiras edições, a reforma visual do jornal propôs mudanças estéticas e estruturais. O logotipo perdeu suas bordas arredondadas para dar espaço às formas retas e, as fotos emblemáticas de capa se tornaram ilustrações realizadas em parceria com o grupo “Pensar o Desenho”, do curso de Artes Visuais da UFMS. As editorias receberam cores que as diferenciaram e nomes fantasiosos como “Aspas”, que nomeia a editoria de entrevistas Ping-Pong. Além da utilização de mais espaço em branco para demarcar respiros na página, houve também a inserção de outros recursos visuais, como as infografias.

Apesar de assumir a orientação do Projétil apenas em 2019, Silvio foi quem iniciou o processo de digitalização dos impressos, em 2011, para preservar a memória do jornal. Com o auxílio de estudantes, as edições foram hospedadas na plataforma digital issuu, com exceção de duas, que não tiveram seus exemplares encontrados. A edição 59, que teve como tema central o sexo, e a 22, que ilustrou a capa com uma bunda, foram censuradas pelo site.

“Nas redes sociais aceitam que a gente sugira matar pessoas ou estimular Hitler, mas não pode botar uma boca ou uma bunda”, apontou.

Outro passo para modernizar o Projétil foi a criação de uma versão online com conteúdo extra. Na visão de Silvio, a principal dificuldade era conciliar as produções impressas com o material online, devido ao processo desgastante. “Acho que o Projétil ideal seria transmídia, que passa pelo papel e por outras redes, se complementando”, comentou.

A pandemia da Covid-19 foi outra dificuldade. “Dá pra resumir a produção na pandemia em uma palavra, que é caótica” contou Silvio. A turma da edição 95, que teria 40 pessoas, foi resumida a oito e se aliou à disciplina optativa de Infografia. Afinal, “o Projétil não pode parar”. Com o distanciamento social, os processos produtivos se complexificaram e outras interferências, para além da sala de aula, acometeram os estudantes. A função do professor orientador ganhou outros ares, não apenas de mediador, mas também de motivador.

Xeque-Mate

Liderança, na linguística, é um substantivo feminino desde que o mundo é mundo. Chega a ser cômico e beira o trágico que homens, historicamente, ocupem posições de liderança no Projétil, enquanto a participação feminina tende a diminuir no desencadear do processo hierárquico. A Língua Portuguesa fez da liderança uma mulher. A língua palpável faz ecoar sons de reivindicação por espaços ativos de revolução. Não é à toa que a revolução também é substantivo feminino.

Em meio a tantos compadres, pais e filhos, a história não se repete. Não dá pra dizer que todo homem precisa mesmo de uma mãe. Longe de nós também reduzir duas potências ao maternar de homens. A dualidade que atende o chamado do Projétil no presente mais se parece com óleo e água. Elas são duas energias complementares. Em um mundo ideal e fantasioso, elas possivelmente seriam irmãs, daquelas de filmes de 1980 que passam na sessão da tarde. Diferentes na altura, no jeito de se vestir, de se comportar, mas que não conseguiriam ocupar esse mesmo lugar se não fossem juntas. Uma escuta mais que fala. Outra fala mais que escuta. Uma segue a política da cautela. A outra se precipita sem políticas. Ainda que ambas saibam o peso e a medida de suas diferenças, são indissociáveis. As Comadres, se é que assim podemos dizer, deram um xeque-mate no jogo hegemônico de compadres à frente do Projétil.

O Jornal Laboratório do curso de Jornalismo da UFMS, em sua centésima edição, é um gênero flexível comandado por mulheres. Katarini Miguel e Rafaella Peres assumiram a responsabilidade de reconstruir narrativas e reescrever uma história que, por muito tempo, foi escrita sob a ótica de uma coordenação masculina. História essa que excederia os 12 mil caracteres disponíveis, mas que pode ser lida e relida desde a edição 98, de 2022. E o Projétil? O Projétil realmente não para.

Que o jogo à frente do Projétil siga à liderança,
no substantivo feminino.