Lenilde Ramos é um ícone sul-mato-grossense. Sua história e a do Estado estão entrelaçadas
Entrevista: Alicce Rodrigues | Raquel Alves
Lenilde Ramos é escritora, musicista, compositora e ativista cultural. Aos 70 anos de idade, teve o privilégio de visitar 73 das 79 cidades de Mato Grosso do Sul para conhecer o que o estado tem de arte, de raízes culturais, de artistas e de histórias. Filha de ferroviários e de pai comunista, o nome Lenilde nasceu da vontade do pai Severino de homenagear o revolucionário russo Lênin. Seus pais incentivaram sua alma artística desde criança e hoje ela carrega na bagagem vivências ilustres e memoráveis. Na infância, foi a primeira aluna negra num internato particular. Por influência da mãe Áurea, se encantou pela sanfona. Com 16 anos, foi chamada para prestar depoimento na polícia federal ao compor e apresentar uma música antirracista. Grávida, e de “barrigão gigante”, como ela mesma conta, viu seu filho mais velho ganhar o apelido de “Mato Grosso do Sul”, porque nasceu no ano em que o estado foi criado. Acompanhou de perto o processo de criação do hino do estado e teve a linda habilidade de adaptá-lo para a sanfona. Hoje, é consagrada como a primeira mulher negra a tomar posse na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Lenilde Ramos é e representa, como ela mesma diz, “Mato Grosso do Sul, de carne, alma, osso e espírito”. Se o estado fosse personificado, a representação certamente seria a sua existência.

Projétil: Você nasceu numa família de ferroviários. Como esse aspecto influenciou sua trajetória?
Lenilde Ramos: Foi importantíssimo primeiro porque é uma influência histórica. Os meus avós maternos chegaram em Campo Grande para trabalhar na construção da ferrovia. Meu avô saiu do Rio de Janeiro naquelas levas de peão e a minha avó veio com os pais dela, que também vieram trabalhar na ferrovia. Eles tiveram 11 filhos e todos os homens foram ferroviários e as mulheres se casaram com ferroviários, minha mãe foi uma delas. Então esse aspecto histórico é importante.
Outro aspecto importante é o social, porque todos os ferroviários começaram no trabalho braçal. Somos uma família do proletariado. Somos uma família de trabalhadores. Da classe trabalhadora. Então isso criou essa consciência. Meu pai tinha essa consciência de ser trabalhador, de ter que lutar pela classe. Meu pai foi comunista. Ele fazia parte de um grupo de trabalhadores que era ligado ao partido socialista. Alguns inclusive na época da ditadura foram presos. E [outro ponto importante é] essa questão da gente fazer parte de um grande equívoco da história brasileira, porque eu considero o que fizeram com a ferrovia um genocídio. Nós ferroviários fazemos parte, tristemente, desse processo do desmonte da ferrovia.
P: Quando e por que começou a ser ativista cultural?
L: Acho que [vem] da infância. Meu pai lia muito e ouvia muito rádio, ele achava que eu tinha a idade dele e me passava essas coisas. Criei o gosto de ir atrás. Eu lia muita notícia, muito jornal, ouvia muito rádio. E o fato de eu ter consciência de onde vim e das raízes, isso nunca abandonei. Até hoje tenho minhas raízes populares. Sou do trabalho braçal até hoje. Levo minha arte como um trabalho braçal.
Quando teve o movimento do golpe militar, eu era uma menina, tinha 12 anos, mas já estava com minha anteninha ligada que alguma coisa estava acontecendo. As freiras colocavam a gente de joelho pra rezar porque os comunistas iam dominar e eu falava “porque tô rezando para os comunistas se meu pai é comunista?” Aí ficava meio confusa. Depois teve o assassinato do [Martin] Luther King e eu acompanhei tudo isso e as minhas amigas achavam meio estranho porque elas não compartilhavam do meu gosto de querer saber desses assuntos.

P: Sabemos que você sabe tocar piano, violão e sanfona. Em qual gênero musical se enquadra seu trabalho?
L: Eu coloco meu trabalho musical em dois pilares. Um pilar é o trabalho autoral, que eu não tive tanta oportunidade de me dedicar como meus amigos, Paulo Simões, os Espíndolas. Eles resolveram assumir o trabalho autoral, por mais difícil que fosse. Porque a carreira artística é uma mega-sena, você concorre com 50 milhões de pessoas todos os dias. Mesmo assim eles decidiram encarar. Eles falaram “por que você não vem também?”, mas eu não tinha coragem de me aventurar nesse ponto. Porque eu já estava trabalhando aqui. Depois que terminei a faculdade, fui trabalhar num jornal. Eu já tinha um pé na minha sobrevivência que dependia muito do meu trabalho, então não tive coragem.
Eu tenho um outro pilar que chamo de trabalho braçal, porque comecei a tocar em eventos, festas, casamentos. Eu gostava muito de cantar. Esse trabalho braçal acho que fiz muito mais do que o autoral, porque era o que me dava grana.
P: Por que começou a tocar sanfona?
L: A sanfona foi uma herança da minha mãe, apesar de ter morrido cedo, ela era muito musical. Dançava super bem. Quando meu pai casou com minha mãe ele tinha 49 e ela 19. Meu pai era tão revolucionário que ele viu a musicalidade da minha mãe e resolveu incentivar. Naquela época a mulher podia tocar na orquestra, mas quando casava não podia mais. Quando eles casaram meu pai a colocou numa escola de música. Ela foi estudar acordeão. Chegava em casa, eu pegava a sanfona monstruosa da minha mãe. Um dia fui tentar levantar com a sanfona e caí. Meu pai ficou furioso e saiu pra rua bravo. Ele voltou com uma sanfoninha e aí comecei a aprender, com 7 anos.
P: E a literatura? Como começou?
L: Eu sempre fui aquela menina que gostava de redação. Escrever é exercício, é ralação, quanto mais você rala, mais aprende. Quando fiz 50 anos, vi que tinha uma vida inteira ainda pela frente. Refleti que já tinha dado espaço para a música, para trabalhar com produções e projetos culturais, para viajar e conhecer lugares, e me envolver culturalmente com outras culturas. Foi a partir dessa reflexão que decidi me envolver profissionalmente com a literatura, e ser uma velhinha escritora.
E eu não sei escrever ficção, escrevo vivências. Se alguém falar “ah, inventa uma história”. Eu não sei inventar história. Já vivi tanta coisa. Tem um poema que eu escrevi e diz assim:
“Eu passei o tempo inteiro
Sem saber ganhar dinheiro
Vida em glória?
Não
Hoje vendo a minha história”.
P: Como você insere o Mato Grosso do Sul nas suas produções?
L: O Mato Grosso do Sul é o cenário das minhas histórias, porque é o da minha vida. Se não tivessem criado o Mato Grosso do Sul, e fosse ainda o Mato Grosso, talvez eu não me sentisse tão parte dele. Mergulhei tanto na vida do nosso estado, que eu digo que não ganhei na loteria, mas essa riqueza e esse privilégio de ver o Mato Grosso do Sul e todas as suas personalidades surgirem valeram muito mais.
O apelido do meu filho mais velho era Mato Grosso do Sul, porque ele nasceu no ano em que o MS foi assinado. E eu estava grávida, com um barrigão gigante quando deram a notícia da lei de criação do estado. Nesse dia eu saí e curti muito na [rua] 14 de julho e na [avenida] Afonso Pena. Meu filho tem a idade do MS. Mais envolvida com o estado do que isso impossível. Então é Mato Grosso do Sul mesmo, de carne, alma, osso, espírito, tudo.
P: Como foi acompanhar as mudanças tecnológicas que aconteceram na cultura, especialmente na sul-mato-grossense?
L: A tecnologia entrou tão naturalmente na minha vida como entrou a música, como entraram as artes e o amor pela cultura em geral. E sempre vi a internet como uma ferramenta, já que acompanhei as mudanças das tecnologias e dos costumes, e muito naturalmente me inseri nessas mudanças. Desde criança eu me adapto com muita facilidade. Tanto que na música, logo depois que as pessoas começaram a produzir os seus CDs, chegou uma época em que já sabíamos que essa tecnologia já era. E aos artistas que continuaram insistindo em sair por aí vendendo CDs, eu só dizia: “para com isso, vai botar suas músicas na internet!”.
Hoje tenho dois livros escritos somente na internet, que ainda não botei no papel. “O baú da Tia Lê”, com mais de cem histórias, e o meu projeto de poemas minimalistas. As pessoas me perguntam “quando você vai publicar?”, eu falo “tá publicado! Vai na internet que você acha” (risos). Mas eu vou publicar sim esse material no papel.
P: Como foi participar da criação da Fundação de Cultura do Estado e como a criação do Mato Grosso do Sul influenciou na produção artística?
L: Foi um período maravilhoso. Meu trabalho era de dar visibilidade para a nossa cultura, além de defini-la. Tive o maior prazer de organizar eventos para mostrar a nossa música, a nossa cultura, a nossa pintura, o nosso cinema, e toda a nossa expressão cultural.
A criação de Mato Grosso do Sul profissionalizou a minha produção artística. Antes eu fazia porque gostava, era hobby, era legal tocar com meus amigos. Sem pretensões, sempre me envolvi com histórias relacionadas ao estado. Mas a partir do momento que eu assumi um trabalho profissional em que eu tinha que dar um resultado profissional, olhei para tudo de outra forma, e busquei me profissionalizar para atender essas exigências.
P: Como avalia a representatividade negra na cultura sul-mato-grossense?
L: Existe um nome, doutor Luiz Alexandre de Oliveira, praticamente desconhecido hoje, mas ele é o nome de um pedacinho de rua no começo da Via Park, logo na saída da Afonso Pena. Ele foi um negro, que a mãe trabalhou em 1914 como cozinheira na cidade. Quase cego, com problema na visão, conseguiu estudar, se formar advogado, e ele pra mim representa o peito e a raça dos negros em Mato Grosso do Sul.
Você pode perguntar para qualquer personalidade negra do nosso estado, professores e professoras, mestras, doutoras, médicos, sem contar os artistas, como foi chegar ali. Todos vão te responder que não foi fácil, não foi fácil para ninguém. Mato Grosso do Sul tem um grupo de pessoas que deram o exemplo e o incentivo para que todos os outros jovens estudantes acreditassem, e dissessem: se ele conseguiu, eu posso também. E não só a cultura negra, mas a indígena também. O que nós precisamos é dar visibilidade e garantir a justiça social, dando oportunidades e educação para todos, para que cada um crie a sua própria oportunidade.
Mas eu acredito que a classe política é a grande culpada pela injustiça social, porque a partir do momento em que persiste essa cultura centenária de querer enriquecer desde o período colonial, nada anda pra frente. A diferença de oportunidades é brutal e criminosa no Brasil.
P: O nosso estado é composto de diferentes culturas, como as indígenas, paraguaias e bolivianas. Como você definiria essa mistura?
L: Mato Grosso do Sul é um caldeirão. Aqui no sul, temos uma cultura indígena forte, apesar de altamente discriminada e vítima de genocídio. Temos uma cultura paraguaia fortíssima, assim como a japonesa. Campo Grande mesmo é uma cidade que cresceu na mão da imigração, árabes, libaneses, espanhóis, japoneses. O MS é cheio de portugueses, italianos… Antigamente quando tinha lista telefônica, podíamos observar a quantidade de sobrenomes italianos. É um caldeirão de culturas. E todas elas se juntam para criarmos essa cultura cosmopolita que é a do nosso estado.
P: Como você caracteriza a identidade sul-mato-grossense?
L: Na época em que foi criado o Mato Grosso do Sul, vivemos a efervescência de uma ebulição cultural fantástica. Quando todos souberam da divisão, foi um momento de indagação de qual era a nossa música, a nossa literatura, a nossa cara, já que tudo antes era focado em Cuiabá, distante daqui. Os professores, os universitários, os jornalistas e os intelectuais se reuniram para buscar a identidade de Mato Grosso do Sul. E eu entendo a identidade do estado com um pé na raiz e outro no contemporâneo.
A nossa raiz que vem das fronteiras, como o Chamamé que surgiu na Argentina e através do Paraguai chegou até aqui e se enraizou, de primeiros músicos de raiz como Delio e Delinha, Jandira e Benites, o ritmo da polca paraguaia. E até hoje, quando as novas gerações começaram a compor, elas beberam nessa fonte, como Almir Sater, Paulo Simões e Geraldo Espíndola. Ao mesmo tempo, o cinema, a pintura, também foram buscar nessas fontes.
Simultaneamente às raízes, nós ouvíamos Beatles, Bob Dylan, sabíamos o que estava acontecendo no eixo Rio-São Paulo. Os artistas regionais também bebiam de uma influência global. Manoel de Barros é um exemplo, fala dos passarinhos e dos bichos lá do meio do Pantanal de uma forma tão contemporânea, que já foi até cotado para receber o prêmio Nobel de Literatura. Temos Humberto Espíndola nas artes plásticas, artista que inventou o movimento da bovinocultura, mas que expõe no mundo inteiro e já foi citado até por José Saramago.