Ian Netto Maciel Gil
Segunda-feira, 8h, o sol começa a esquentar na capital do Pantanal. Sala vazia, mas sem silêncio. Tchaikovsky ao fundo com o famoso repertório mundialmente conhecido para o balé, mas que para aquela fila de crianças, um ruído que começa a ter significado. Eu conheço aqueles olhares perdidos, ano por ano esse ciclo se repete. Acompanhar a transformação desses olhares é fascinante.

Pele escura, pés descalços, shorts quase maior que as pernas. Se destaca entre as meninas, um único menino na sala, no palco dos seus 8 anos. Encara a todos, buscando um rosto conhecido. “Cinco, seis, sete e oito”, ouve atentamente as primeiras instruções.
É coisa de menina? As nossas construções sociais sempre limitaram o acesso dos homens à cultura do balé. Afinal, a cultura tem gênero? A arte precisa de corpos que queiram ser movidos pela música, de uma democratização que alcancem todos os que queiram entender e se mover com ela. A história se repete. Quem rege a aula é um dos meninos que um dia também foi uma exceção social, que fez dos meus espaços, abrigo. A realidade da pesca sempre foi destino iminente, mas desde que cheguei por aqui, as sapatilhas substituíram os molinetes, a sala de espelho contrapõe o cenário do pôr do sol do pantanal.
Meus corredores já ouviram esse choro estridente e solitário, que chama por sua mãe. Na ausência do colo materno, envolto na solidão, ecoa na sua cabeça, aquilo que lhe foi dito, no meu portão de entrada, na despedida de sua mãe, a voz mansa, o cabelo preso com algumas mechas soltas, lembrança que se força a não esquecer. “Preste atenção, querido, o mundo é o moinho”. Sem saber o mesmo rumo que irá tomar, retorna à sala de espelho, os olhos vermelhos, mas sem ar de desistência: uma promessa interna que tentará.
Meus corredores já ouviram esse choro estridente e solitário, que chama por sua mãe. Na ausência do colo materno, envolto na solidão, ecoa na sua cabeça, aquilo que lhe foi dito, no meu portão de entrada, na despedida de sua mãe, a voz mansa, o cabelo preso com algumas mechas soltas, lembrança que se força a não esquecer. “Preste atenção, querido, o mundo é o moinho”. Sem saber o mesmo rumo que irá tomar, retorna à sala de espelho, os olhos vermelhos, mas sem ar de desistência: uma promessa interna que continuará tentando.
O pé, não mais descalço, estranha a sapatilha, a recusa pelo medo de ser julgado e a preferência por calejar os pés, tomado pela dúvida de se encaixar em um “sapato de menina”.
Três. Não mais o único. A presença reconfortante de mais três meninos dentro daquela pequena sala lhe traz sorrisos, uma encarada discreta, que lhe dá fôlego para mais uma aula. A expressão é mais limpa, alguns sorrisos, mas sempre sério. O olhar já começou a se transformar, o moinho mais uma vez girou, e continua a girar.
Já não faz calor há algum tempo, os rios estão cheios, o vento constante balança as árvores durante a noite. Alguns meses se passaram, o tempo mudou, mas aqui dentro continua aquecido. Hoje se inicia a preparação para o Moinho in Concert. O sol ainda não apareceu, mas (ele) já se encontra de pé. Casacos colocados, sapatilhas na mão e a espera pelo horário, pronto para o retorno do eu o faz feliz, o balé.
Alguns sonhos mudaram, abandonar as chuteiras e colocar as sapatilhas, não foi um processo fácil, nesse moinho de emoções, alguns choros rasgados durante a noite, ao apego atual pelo seu objeto de trabalho. É assim que ele tem visto o balé, o futuro.
Os ensaios constantes e a busca pela perfeição não amedrontam, o plié perfeito, a pirueta bem dada, alonga, pula, abre, fecha … sequência que se repete na sala de espelhos e no quadrado de palafita na beiro do rio.
A data do espetáculo, se aproxima, em pouco tempo não será mais o que és. Da realidade da pesca à artística, esse é o caminho dançado que vem sendo traçado. O cabelo alinhado, a roupa de ensaio e horas a fio no pequeno espelho de casa, repete constantemente tudo aquilo que foi feito em aula. Não há mais medo, receio ou qualquer sentimento que o restringia de vivenciar o balé.
Risca a penúltima data do calendário, é amanhã. Antes mesmo dos mosquitos chegarem, em cima do colchão no chão, o figurino pronto, sapatilhas novas, embalada ao pé da cama e a ansiedade no peito, o dia não acabou, mas há urgência do amanhã.
O abismo que cavastes com seus pés, se torna menor, na beira do palco, uma respiração profunda, de olhos fechados direciona a fé á algo que ainda não sabe, mas sente. A orquestra se inicia, aos poucos os movimentos ganham forma, de jeito leve, como se fosse destinado àquilo, é como se sente. É a liberdade da arte, é o sentimento que faz voar durante saltos e as piruetas. Não há expressão além do sorriso a cada pequeno movimento em cima do palco. O fim se aproxima, se prepara para o último passo, se ajoelha, encontra o rosto de sua mãe, lhe oferece o sorriso mais sincero e numa troca de olhar, agradece. O moinho está no topo. A cortina se fecha, a luz se apaga, a orquestra fica silenciosa, finalmente os ruídos têm sentido, a arte tem sentido. O mundo é o moinho.