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Opinião 95

O sangue nativo ainda corre

Texto: Daniel Rockenbach (drocken@gmail.com) | Emily Lima (emilyalribeiro@gmail.com)

Ilustração: João Soares Rampi


Garimpo ilegal, desmatamento, invisibilidade, assassinato, suicídio, vício e agora a pandemia da Covid-19: a lista de chagas que perseguem os povos indígenas brasileiros é generosa em número e cruel no castigo. Os problemas são ancestrais, não surgiram com a eleição de Jair Bolsonaro e provavelmente não vão sumir quando o próximo presidente assumir. O desprezo das administrações com os povos nativos é estrutural.

A realidade do Brasil 2020 trouxe a pandemia e a intensificação das queimadas que já assolaram as comunidades indígenas na Amazônia e no Pantanal. Em áreas onde o garimpo ilegal atua ou onde há o corte de madeira clandestina próximo a aldeias, os casos de contaminação pela Covid-19 dispararam.

As comunidades indígenas sul-mato-grossenses têm feito barreiras para que pessoas de fora das aldeias não adentrem. A liderança Dionedson Terena conta que em Aquidauana e região os próprios indígenas montam e fiscalizam as barreiras, uma vez que o governo não tem oferecido nenhum amparo. Para piorar, a situação se agravou ainda mais com as queimadas que assolam o Pantanal nos meses de seca. Em 2020 o período de estiagem seguiu até quase novembro. O avanço dos grileiros nas terras indígenas é gritante e a queimada é um poderoso recurso nas mãos de quem quer aumentar sua propriedade às custas dos povos nativos.

Documentar o que acontece nas aldeias é tarefa árdua. A falta de recursos e de quem dê visibilidade aos povos faz com que surjam iniciativas como a Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI), cujo realizador Gilmar Galache cria conteúdos audiovisuais desde 2008, documentando a rotina e os problemas das aldeias sul-mato-grossenses. Durante a pandemia, Gilmar e a equipe formada por indígenas produziram e lançaram curtas que abordam a condição dos povos no estado.

Assim como são invisíveis na mídia, os indígenas também não aparecem na estatísticas oficiais. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem sido a única instituição a realizar um levantamento confiável das vítimas da Covid-19 entre os povos nativos. Se o Ministério da Saúde abandonou o povo brasileiro em junho quando o último ministro médico foi afastado, os indígenas já estavam desamparados desde o início. Os dados divulgados pelo Ministério nunca bateram com os da APIB.

Até o fechamento do artigo, de acordo com a APIB, 41.794 indígenas foram infectados, 894 faleceram e 161 povos foram afetados em todo território nacional. O desmonte de instituições como a Funai entregam o racismo estrutural com as etnias que sempre esteve presente no Brasil mas agora se escancara perante todos. Os indígenas não apenas resistem, eles persistem.

As eleições municipais em 2020 registraram aumento de 27% de representantes indígenas em relação a 2016, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). De um total de 1715 candidaturas em 2016 passou para 2212 em 2020: apenas 0,4% do total de 539 mil candidatos Brasil afora. Curiosamente a proporção é próxima ao percentual de indígenas na população brasileira: 0,42% ou 817.963 em um país com 190.755.799 de habitantes de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A APIB identificou a eleição no primeiro turno de 236 candidaturas de 71 povos indígenas em 127 cidades de 24 estados brasileiros. Para acompanhar as campanhas a APIB criou o endereço @campanhaindigena nas redes sociais. De acordo com a iniciativa, dos 236 eleitos, 215 são de indígenas eleitos para Câmaras Municipais, 10 para prefeituras e 11 vice-prefeitos. O resultado nas urnas é histórico e essencial uma vez que aumentaram os ataques aos direitos das populações nativas brasileiras.

O engajamento da população indígena é consequência de sua resistência. Em um Brasil tomado por fake news e perseguição aos povos nativos, negros, à mulher e aos LGBTQi, a fala de Ailton Krenak reforça a disposição dos indígenas em seguir lutando: “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir.”