Texto: Carla Andréa | Carolina Rampi Gimenes
Ilustração: SYUNOI (Sara Welter)
Cancelamento. Nos últimos anos a palavra ganhou força dentro da vida das pessoas e vem ultrapassando as barreiras digitais para chegar à vida real. Há quem acredite que estamos vivendo uma cultura do cancelamento. E embora o ato de boicotar uma pessoa ou personalidade por atos julgados como questionáveis ou errados exista desde sempre, a cultura do cancelamento foi popularizada em 2017 com o movimento #MeToo (‘Eu também’, em tradução livre). A hashtag se popularizou nas redes sociais com denúncias de assédio sexual em Hollywood. Um dos casos mais famosos foi o do produtor Harvey Weinstein que foi condenado, em março de 2020, a 23 anos de prisão por abuso sexual e estupro.
Desde então surgiram diversas denúncias e cada personalidade ligada a um caso era boicotada, ou seja, era cancelada. A partir de então o termo atingiu outras causas: homofobia, racismo e qualquer tipo de opressão. Algum comentário, reação ou opinião que foi exposta vira alvo dos internautas. E defender alguém que esteja sendo cancelado, alegando que o que ele disse ou fez não foi proposital, também pode ser motivo de boicote.
No Brasil, vários casos de cancelamento se tornaram notórios, da cantora Anitta até o escritor Monteiro Lobato. Raul Seixas também foi alvo de cancelamento depois do lançamento de uma biografia a seu respeito na qual o autor afirmava que o cantor havia entregado o parceiro Paulo Coelho às autoridades durante a ditadura militar. Apenas depois de quase um ano a Folha de S. Paulo divulgou um documento que contradiz a afirmação a partir de informações sobre a prisão do escritor, usado em uma tese sobre o cantor defendida na Universidade de São Paulo (USP).
Mas o que divide o mundo em aqueles que são os juízes e aqueles que são os réus? A cultura do cancelamento surgiu como um ato de intolerância às ações que não condizem com o mundo de hoje, como as diversas formas de preconceito. A pessoa cancelada passa a ser excluída por determinado grupo, não podendo seguir com a sua vida sem uma punição. Mas atualmente esse tipo de movimento não se restringe apenas a polêmicas. Opiniões contrárias a um movimento social, ou uma ação fora da conduta ética, podem dar margem para o cancelamento. E muitas vezes a repreensão vem junto com palavras de ódio, perseguições e ameaças.
Outro exemplo brasileiro que expôs a cultura do cancelamento ocorreu a partir do programa global Big Brother Brasil. Com o sucesso e repercussão da edição de 2020, os participantes desse ano, principalmente os famosos (a parcela chamada de ‘camarote’) pisam em ovos com medo de serem desmoralizados nas redes sociais e assim perderem contratos e a fama. A rapper Karol Conká foi a maior ‘vilã’ da edição: foi xenofóbica, excluía participantes e cometia abusos psicológicos aos outros confinados. Então coube ao ‘júri popular’ mostrar a ela que as atitudes que teve não foram aceitas, e a cantora saiu com a maior porcentagem da história do programa, 99,17% dos votos.
Porém Conká, apesar de ter sido rechaçada enquanto estava no programa, tornou-se tema de um documentário exibido na plataforma de streaming da Globo, o Globoplay. Ela usou o engajamento negativo para se autopromover e agora os que antes a haviam cancelado fazem memes e piadas com a participação da famosa na TV, esquecendo quais foram os motivos iniciais de seu linchamento.
A rapper conseguiu fugir da exclusão social, mas ela é um caso à parte, pois o cancelamento pode ameaçar o direito de defesa. Há casos em que o cancelado pode se desculpar publicamente e aprender com seus erros. Mas a cultura do cancelamento dá o seu veredito com tanta força que a mera atitude de pedir desculpas pode ser vista como hipocrisia, algo feito apenas para não perder fãs, status ou dinheiro.
Essa cultura pode ser vista como uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que serve para alertar situações polêmicas como de preconceito ou racismo, também pode calar discussões e inibir o debate de ideias e opiniões.
Quem cancela outras pessoas muitas vezes se coloca em uma posição de superioridade perante a sociedade, se apoiando no livre direito de liberdade de expressão. Mas quando se impossibilita o debate não há cenário de mudança. Além disso as consequências de um cancelamento podem ir desde a perda de um trabalho até danos psíquicos.
A cultura se perdeu no próprio movimento. O mundo digital – e muitas vezes o real – se transforma em um constante ‘vigiar e punir’. Os internautas estão em constante vigilância uns sob os outros e a punição vem em forma de cancelamento.
É preciso voltar os olhos para questões de grande importância, como foi o #MeToo e tantas outras pautas sociais. Mas o cancelamento pode enfraquecer uma luta e calar um debate, transformando todos em indivíduos acuados com medo de se posicionar perante qualquer coisa.