Os desafios que os agricultores familiares enfrentam para sobreviver em um estado comandado por latifundiários
Beatriz Rieger |Isabella Motta |Maria Eduarda Schindler

O Brasil é conhecido por seu enorme potencial agrícola. No ano passado, a área plantada no país totalizou 83,4 milhões de hectares, um aumento de 2,7% em relação a 2019, de acordo com dados divulgados em setembro deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dessa área, 38,5 milhões de hectares vem da soja e do milho, e Mato Grosso do Sul concentra seis municípios no ranking dos maiores produtores agrícolas. A Organização das Nações Unidas (ONU) avalia que 80% de toda a comida do planeta vem da produção familiar, que contrasta com as grandes produções do agronegócio que produzem enormes quantidades de um único tipo de alimento. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), cerca de 4,4 milhões de famílias exercem esse tipo de agricultura, que é responsável por trazer renda para 70% dos brasileiros no campo.
Na refeição do povo brasileiro estão presentes verduras, legumes e frutas que são provenientes da agricultura familiar. Para ser enquadrado como agrícola, existem alguns pré-requisitos, como ter uma propriedade de até quatro módulos fiscais, mais de 50% da força de trabalho vindo da família e por último, ter a maior parte da renda fruto da agricultura familiar. O último censo do IBGE mostrou que no estado de Mato Grosso do Sul, existem 70 mil agricultores familiares. E entre eles, está Vanderlei Azambuja, 51, que vive nesse meio desde criança e conta com o apoio da esposa e dos três filhos para encarar os desafios da produção.
Natural de Terenos, conheceu a companheira no interior do estado e se mudou para a capital em busca de uma melhor oportunidade de trabalho. Filho de agricultor, Azambuja começou a se ocupar com hortaliças depois do casamento. Em 2007, iniciou o trabalho com alimentos orgânicos, área pela qual se diz apaixonado e que o fez se tornar referência na região. Atualmente, é presidente da Cooperativa de Produtores Orgânicos da Agricultura Familiar de Campo Grande (Organocoop), entidade que está quase fechando as portas por falta de recursos e incentivos. “Falta ajuda do governo. Há alguns incentivos que não conseguimos alcançar, que ficam só no papel. Do município, recebemos o incentivo de local, eles arrumam barracas para podermos comercializar. Mas tirando isso é muito difícil ver alguma ajuda”.
Vanderlei é proprietário de nove hectares de terra que utiliza para produzir hortaliças. Antes da pandemia, frequentava as feiras para vender as mercadorias que eram geradas. Mas, precisou se readaptar para continuar tirando sustento para a família. “A pandemia atrapalhou. Antes, fazíamos feira todos os dias. Estávamos dentro dos shoppings e nos tribunais de justiça. Mas como esses locais tiveram que parar, nós tivemos que mudar a estratégia”. E assim, os agricultores familiares migraram para as plataformas digitais para continuar com as vendas, passando a realizar entregas em domicílio ou com a retirada dos produtos aos domingos nas igrejas. “Criamos um grupo no whatsapp e comercializamos por lá. Após o depósito, o cliente só passava para pegar os vegetais”.
Hoje em dia, os agricultores familiares possuem dois desafios: a produção e a venda dos alimentos. Em Mato Grosso do Sul, o órgão responsável pela agricultura familiar é a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer), que fornece suporte aos agricultores através de assistência técnica, cursos de capacitação e pesquisas. O órgão atua em parceria com outras entidades, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).
Todo ano, o governo federal destina recursos para o Plano Safra, que é um grande fomentador do desenvolvimento agropecuário e incentiva a modernização tecnológica. Para o biênio 2021/2022, foi liberado um total de R$ 251,22 bilhões de crédito rural. Desse total, R$ 39,34 bilhões foram alocados para a agricultura familiar. Em entrevista, o diretor-presidente da Agraer, André Nogueira destacou o quão importante é a agricultura familiar. “É essencial para o município, porque praticamente todo recurso que o agricultor consegue, ele gasta ali mesmo. Além de gerar alimento localmente, os recursos circulam no próprio município, e isso favorece muito a economia.”
Para incentivar e auxiliar os pequenos agricultores, a entidade atua em conjunto com a Secretaria de Agricultura Municipal e com a Central de Abastecimento de Mato Grosso do Sul (Ceasa/MS) no projeto Hortas Urbanas. São aproximadamente 110 hortas em que a Agraer fornece assistência técnica, mudas de hortaliças e compostos orgânicos. Um dos beneficiários do projeto é Valdeci Pereira Cabral, 53, que há cinco anos trabalha em uma área de 2,5 hectares disponibilizada pela Prefeitura e planta alface, rúcula, cebolinha, beterraba, cheiro verde, quiabo, abóbora e mandioca. A esposa cuida da parte administrativa, e os filhos ajudam a cuidar da horta.“Desde que nasci, meu pai já era da roça. Então, continuei até hoje. Um tempo atrás eu vim para a cidade e continuei até aqui, porque é mais viável e acaba sendo mais fácil colocar seu produto para vender. Eu participo de um trabalho da Agraer que trabalha muito com a doação e 20% do que a gente produz aqui, de cada safra, temos que doar”, conta Valdeci.
O projeto, organizado pela Agraer, doa mudas, adubo, ajuda na preparação da terra, bem como fornece auxílio técnico com agrônomos e técnicos agrícolas. O coordenador do projeto, José Luiz, 27, explicou que o intuito do programa é a social. Com 110 hortas ativas, o programa atende produtores, comunidades, centros de reabilitação, escolas urbanas e rurais que pertencem à capital. As atividades realizadas pelo projeto foram interrompidas com a pandemia, sendo reativadas somente no segundo semestre de 2021. “Quando começamos o projeto, não tínhamos nada. Hoje já conseguimos caminhar com as próprias pernas. Estamos com expectativa de fechar o ano com 200 hortas urbanas. Atendemos lá na Rede Solidária do Noroeste e do Dom Antônio também, e é tudo com objetivo 100% social”.
Quando indagado a respeito da importância desse projeto, o agricultor Valdeci, participante do Horta Solidária, foi enfático ao dizer que “representa dinheiro no bolso e comida na mesa”. Ele, que quando fala, seus olhos brilham de emoção e alegria pela profissão que leva, revela que seu objetivo é conseguir ajudar outras pessoas também por meio da agricultura. “Futuramente, meu projeto é abrir uma ONG ou um centro de recuperação, para eu pegar as pessoas que estão na rua e ajudá-las a tirar o sustento da agricultura, assim como eu faço”.
Dificuldades
Apesar dos governos – municipal, estadual e federal – fornecerem ajuda, os pequenos produtores encontram vários percalços na rotina da vida no campo. Valdeci conta que seu terreno não é nivelado, então, nos períodos de chuva tem toda sua produção levada pela água. Como a área é cedida pela prefeitura, ele não tem autorização para tornar o local mais adequado. Azambuja também diz enxergar pouco incentivo. Para ele, isso deveria ser diferente, uma vez que os pequenos produtores movimentam grande parte da economia local. O agricultor diz que o pouco incentivo é um dos fatores da baixa adesão da população a ingressar na área, e é isso é percebido quando vemos que em um município com 916.000 habitantes, apenas 6% têm sua fonte de renda oriunda da agricultura.
Azambuja relata, após anos no ramo, que “a clientela se torna fiel”, mostrando que mesmo com o pouco incentivo demandado ao núcleo familiar, as relações de confiança entre produtor e cliente são fortalecidas. O agricultor vê um longo caminho a ser percorrido para que a agricultura familiar possa se tornar mais forte em Campo Grande, “porque é tudo muito braçal e não conseguimos investir nas tecnologias. Elas facilitariam muito, mas são caras”, ressalta.

Ao contrário dos latifundiários que possuem estrutura financeira e tecnológica para administrar as propriedades de terras, muitos produtores de base familiar, como Valdeci e Vanderlei, relatam a dificuldade para conseguir acesso a tecnologia. Essa necessidade vem de uma realidade onde as atividades são realizadas a partir do trabalho braçal, desde o plantio até a venda. Por esforço além do necessário, ocasiona problemas na saúde dos produtores, constituído em sua maioria por idosos.
Linhas de financiamento
Atualmente, a linha de crédito mais utilizada pelos produtores agrícolas é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, mais conhecido como Pronaf, que viabiliza para o produtor um recurso para ele investir e pagar com o dinheiro da safra do ano seguinte. O presidente da Agraer explica que no ano passado, a agricultura familiar teve R$ 33 bilhões de reais disponíveis, e para este ano, o valor subiu para R$ 39 bilhões de reais liberados pelo Governo Federal. O trabalho do órgão é ajudar os agricultores a conseguirem acessar esses recursos disponíveis. “Uma das nossas funções é organizar os produtores para acessar essas políticas públicas. Para isso, primeiro, eles precisam estar regulares com a Declaração de Aptidão ao Pronaf (Dap) e com o documento da terra, pois sem essas documentações, o produtor não consegue acessar os recursos”, comenta André Nogueira.

Depois de estar em dia com os documentos e dar entrada no projeto no banco através de uma assistência técnica, que realiza o levantamento da documentação necessária que o produtor vai precisar, aconselha a como utilizar melhor o recurso que vai ser liberado e elabora o projeto de financiamento, a liberação do recurso depende do sistema bancário, que vai fazer a análise do projeto. Isso tudo varia de cliente para cliente. Nogueira revela que “quando tá tudo certo, o dinheiro pode sair em umas duas semanas. Agora, tem projetos que demoram seis meses, um ano ou, em alguns casos, que não saem. Varia muito”. Apesar disso, ele destaca que a Agraer tem convênio e um relacionamento muito bom com toda a rede bancária que trabalha com o Pronaf. Ele reconhece que uma das principais dificuldades do agricultor é o investimento na terra, pois não existem tantos financiamentos disponíveis.
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