Categorias
Opinião 94

Pandemia da ignorância

Texto: Nélida Navarro
Ilustrações: Gabriel Brito


– Boa tarde, senhor. 

– Opa, boa tarde. É Luiz Henrique, né?

– Sim 

– É para a Antônio José Freitas, 180, não é? 

– Isso mesmo. 

– Tem algum caminho que o senhor prefere?

– Não, não. Pode seguir o GPS mesmo.

– Tá ótimo, vamos lá.

Domingo com aquele sol escaldante da hora do almoço, que é bem característico dessa cidade morena. Lá vou eu. Almoço de família em plena pandemia global. Apesar das incontáveis vezes que eu repeti no grupo do WhatsApp: ‘’Vamos respeitar a quarentena, não dá pra ficar todo mundo junto assim.’’

– Ah, Luiz! Você vai fazer assim mesmo com mamãe? – disse meu irmão.

– Mas filho eu vou fazer o strogonoff de carne que você gosta, tem certeza que você não vai vir? Seu pai ia gostar tanto que você visse pra cá…

– Mãe, a senhora tem mais de 60 anos! Tem pressão alta, diabetes, arritmia, artrite, bronquite, não pode ficar dando bobeira assim.

– Ai, Luiz! Para de ser chato! Você sempre é o chato! Deus me livre! – disse minha irmã

– Filho, aqui tá todo mundo de máscara. A Lourdes fez aquelas de pano. E ontem eu comprei álcool gel de 1 litro, que estava na promoção no mercado. Pode vir sim.

Tentei mais um pouquinho, porém em vão. O encontro aconteceria de qualquer forma. Decidi ir porque alguém ali precisa raciocinar direito e evitar que todo mundo se contamine. E com certeza não serão meus irmãos que farão esse papel. Desde o começo da história desse vírus, comecei a conscientizar meus pais, que são idosos, e meus irmãos. Papai é mais tranquilo e aceita o que eu disse, já mamãe é mais teimosa e se recusa a ficar dentro de casa durante a pandemia. Sempre dá um jeito de encontrar a chave escondida, resultando em idas ao mercado e farmácia, já que esses são os únicos lugares abertos. 

– Olha que motoqueiro filho da mãe. Depois morre aí e a culpa é nossa.

– Perdão? Estava pensando aqui e não percebi.

– Ahhhh, aquele cara ali ó, quis entrar na faixa que eu já tava dando seta lá atrás e eu quase peguei ele. Esse povo depois se machuca e a culpa é nossa, tá vendo? O pessoal dessa cidade dirige muito mal, parece que comprou a carteira! 

– Ah, sim, o trânsito aqui é complicado mesmo.

– Sim, ainda mais agora. Se não morre no trânsito tem esse tal coronavírus esperando a gente – E soltou uma gargalhada altamente tragicômica.

Eu, sinceramente, não aguento mais ouvir sobre essa pandemia, mas essa é a minha profissão, escutar e cuidar das pessoas.  Então não faço o estilo mal-educado quando estou com pessoas estranhas. Dou abertura. Gosto de conversar e dou corda por questão de educação mesmo. E acabo me arrependendo ocasionalmente.

– Pois é.

– Então, o que que o senhor tá achando? 

– ’’…’’

– Hein?

– Pode falar.

– O que o senhor tá achando?

– Achando do que?

– Do coronavírus.

Ah não, vou ter que falar disso mesmo. Já não bastava o pessoal da clínica, do futebol, do hospital. Não. O Uber também teria que falar sobre isso. Eu não aguento mais. Essa pandemia já deu o que tinha que dar. Não é mais fácil a gente só ser higiênico, respeitar a quarentena e pronto? 

– Olha, eu acho que as pessoas estão com muito medo, mas isso é normal. Se trata de uma pandemia global, se tudo der certo, vai passar logo.

– Entendi.

E assim seguimos o caminho. Acho que ele também não estava lá muito a fim de conversar sobre isso, devo ter me enganado. Olhando para o lado de fora, ruas desertas, até que dá para ver algo de bom nisso tudo. Finalmente a cidade não está barulhenta. Agora eu consigo ouvir e ver algumas araras voando. São muito comuns aqui, porém é tão difícil percebê-las na correria do dia a dia… Às vezes a gente esquece que no mundo também existe paz, que existe…

– Então, sabe que eu penso a mesma coisa?

Hãn?

– O que o senhor falou, que as pessoas estão muito medrosas. O senhor acredita que eu também penso isso? As pessoas não param de falar sobre isso, cara. 

– Jura?

Se o Uber tivesse visto a minha cara, acho que ele teria cancelado a corrida naquele momento.

– Com certeza. Olha, pro senhor ver, minha vizinha trabalha em uma farmácia, né, e ela disse que toda vez que chega caixa de máscara lá e álcool, as pessoas levam tudo no mesmo dia. Isso é muito exagero, não acha?

– Pois é, acho sim. Outras pessoas precisam também… 

– Outro dia eu tava lá no mercado e a senhorinha que tava na minha frente espirrou. Mas ela espirrou porque era rinite, né, e aí o pessoal já olhou todo torto pra ela. Ela tava sem máscara. Mas lógico, como que ela ia ter uma se o pessoal compra tudo sem precisar?

– Como o senhor sabia que era rinite?

– Ah, porque é comum nessa época do ano, né! Rinite, gripe, todo mundo pega essas coisas agora.

Dessa vez não quis dar chance para o azar. Fiquei quieto, esperando que talvez ele tivesse dito tudo o que precisava. O lado bom é que minha casa não é tão longe da casa de minha mãe, e havíamos acabado de passar em frente ao parque. Faltava pouco agora.

– Mas assim, isso SE for verdade, né?

– Como assim ‘se for verdade’?

– Não sei se o senhor viu, mas tá rolando no zap aí um vídeo que fala que a China inventou o vírus, porque daí eles quebravam a economia mundial e ficavam mais ricos depois.

– Sério? 

Juro que eu quis me jogar da janela do carro quando ele voltou ao assunto.

– Ééé, eu não duvido disso não. Chinês é tudo louco, além de porco, né? Por isso que espalhou lá. Onde já se viu comer sopa de morcego? O que eles têm na cabeça? – Ele disse isso enquanto espirrava e colocava a mão no nariz

– Olha, eu não acredito nisso não. Acredito que várias pessoas estão morrendo no mundo justamente porque não estamos dando atenção que esse vírus merece. 

– É, talvez possa ser isso também.

Acho que ele ficou um pouco chateado, mas eu não poderia deixar de falar isso. As pessoas estão achando que isso é brincadeira, que não é sério, e que tem gente morrendo lá fora por conta de uma plano internacional para enriquecer um país!? O que eu falo para quem está morrendo então? Que o vírus é mentira? Não dá.

– É, mas uma coisa é certa. Esse vírus aí é bem mais fraco que o da gripe, viu?! Gripe mata muito mais.

– Não é por esse lado. Os dois serão letais. 

– É, mas o coronavírus só mata idoso e quem tem problema respiratório. Não pega quem é atleta.

– E quem disse isso?

– O Presidente, ué. Ele sabe o que está dizendo, tem acesso a informações, a um monte de coisa. Até parece que o presidente iria falar asneira.

– Entendi. Pode me deixar aqui mesmo.

– Ué, o senhor vai descer aqui mesmo? É mais uma quadra pra frente ainda. Tem certeza? 

– Vou descer, obrigado pela corrida. Toma aqui, pode ficar com o troco.

– Opa, obrigado, hein. Bom domingo pro senhor!

Bati a porta do carro. Desci confuso, entorpecido pela quantidade imensurável de informação que adquiri em uma simples viagem. Andei a esmo, sem pensar nas consequências. Estava fora de mim. Será possível que as pessoas realmente pensam desse jeito? Como a população pode estar a salvo, se o representante da nação diz que é um vírus que só mata idoso? Ou seria eu um alienado, covarde, com medo de um simples contato afetivo com outras pessoas? 

Enfim, cheguei. Toco o interfone enquanto ouço uma grande algazarra lá dentro. Aparentemente, toda a minha família por parte de mãe chegou antes e devem estar todos se contaminando lá dentro. Quem abre o portão para mim é minha irmã, que me recebe com um caloroso abraço de quem há muito não vê seu pirralho de anos de infância. Minha mãe me vê na sala, limpa as mãos no avental todo úmido de louça e coloca ambas em meu rosto, dando– me um beijo também caloroso, que só mãe sabe dar. Dentro da cozinha, outros parentes conversando em volta da mesa, pegando nas coisas e passando a mão no rosto. Não visualizo uma máscara sequer. Não fico nem cinco minutos. As horas de conversa, os longos áudios no WhatsApp falando sobre o perigo do vírus, nada disso fez efeito. Peço outra corrida. 

– Opa, seu Luiz? Tudo bom?

– Olá.

– Tá voltando para casa depois do almoço de família, é? 

– Nem sequer cheguei a almoçar.

– Ahhh, entendo. Esse coronavírus não tá fácil não, né? 

Juro por Deus, amanhã mesmo eu compro um carro!