Entregadores de aplicativos encaram mais trabalho, menos renda e riscos à saúde para garantir o isolamento social durante a pandemia
Texto: Raíssa Trelha | Ana Laura Menegat | Fernando de Carvalho
“Por aplicativo você trabalha e fica numa pressão psicológica. E eu só ficava pensando no bagulho da entrega, tá ligado? Eu estava estatelada no chão, e eu só ficava pensando ‘nossa, a pizza que tinha que entregar!”. Afinal, quem entrega é remunerado, e quem fica parado não ganha nada. Por isso, os 15 dias que Luciana Kasai, a Lucy, 27, ficou sem entregar em função desse acidente, causaram estragos não apenas na bicicleta que usa para trabalhar e em seu corpo, mas também no seu orçamento.

Além de estarem expostos à violência no trânsito, os entregadores também assumiram riscos desde o começo da pandemia da Covid-19 no Brasil, em março de 2020. Eles se mantiveram em circulação, sendo a coragem de quem ficou em casa. Durante períodos de lockdown e de toque de recolher, continuaram realizando entregas e se colocando em posições vulneráveis em relação ao novo coronavírus. Desta forma, enquanto o mundo se afastou fisicamente, os profissionais da entrega garantiram que determinadas conexões continuassem a existir.
O entregador e acadêmico de nutrição de Carapicuíba, São Paulo, Willian de Lia Bezerra, 32, o Will, define a profissão como criadora de ligações. “Nós somos conectores de projetos, ações e pessoas. Enquanto ciclista, eu me vejo fazendo uma série de revoluções. Além de me conectar por meio do meu deslocamento, conecto as pessoas também”. Membro do movimento Entregadores Antifascistas, ele defende que é preciso mostrar que são trabalhadores, pessoas comuns que também vivenciam opressões. “Não somos melhores ou piores que ninguém, mas queremos acrescentar em toda sociedade, pensando na lógica da cooperação, não da competição”, acrescenta.
O fenômeno da ‘uberização’ é uma nova faceta do trabalho informal, que passa a ser mediado por um aplicativo. As ‘empresas plataformas’ como Uber, iFood, 99 Pop, são projetadas no ambiente virtual, possuindo pouca ou nenhuma base física, de maneira que as relações entre chefe, empregado e cliente são alteradas. Isso torna os trabalhadores descartáveis, o que cria toda uma estrutura de desempregos.
Segundo o Monitoramento de Empreendedorismo Global (GEM) de 2019, realizado no Brasil pelo Sebrae e pelo Instituto Brasileiro de Qualidade de Produtividade (IBQP), 88,4% dos empreendedores ‘de primeira viagem’ criam um negócio por conta da escassez de empregos. Isso quer dizer que o mercado de trabalho tornou-se tão competitivo e excludente que as pessoas precisam buscar alternativas individuais e sem carteira assinada para conseguirem manter os gastos básicos de existência, como alimento e moradia. Dessa forma, as mazelas sociais tornam-se uma questão individual, como se o desemprego fosse uma falha do indivíduo, por não se adaptar ao sistema. Isso é mostrado no artigo “O empreendedorismo como ideologia neoliberal” escrito por quatro pesquisadores do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e publicado na revista científica Cadernos EBAPE.BR. E os entregadores e as entregadoras de ‘delivery’ estão inseridos neste ciclo de dominação trabalhista.
“Você recebe na exata medida que você oferece. Isso é traiçoeiro, pois parece que é justo. Se o negócio não der certo, a empresa transfere o risco para o trabalhador, que só vai ter renda se ele tiver o trabalho sem proteção alguma” – Marcílio Rodrigues Lucas
Com isso, estes profissionais ficam desprovidos de qualquer direito, apoio ou proteção. O professor de Sociologia na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Marcilio Rodrigues Lucas, 37, avalia o cenário como curioso e triste. “Você recebe na exata medida que você oferece. Isso é traiçoeiro, pois parece que é justo. Se o negócio não der certo, a empresa transfere o risco para o trabalhador, que só vai ter renda se ele tiver o trabalho sem proteção alguma”, pontua.
Mudança no trabalho e precarização
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que a taxa de desemprego recuou um ponto percentual e o número de desempregados caiu de 14,4 milhões para 14,1 milhões na comparação do terceiro trimestre de 2021 com o trimestre anterior. No entanto, a recuperação se dá com número recorde de trabalhadores informais, menos horas trabalhadas e rendimento menor.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, a taxa de desocupação no segundo trimestre de 2021 é de 13,7% e a taxa de subutilização é de 29,3%. De acordo com o IBGE, é considerado subutilizado todo aquele que está desempregado, que trabalha menos do que poderia, que não procurou emprego mas estava disponível para trabalhar ou que não procurou emprego mesmo estando disponível para trabalhar.
O aumento do desemprego indica que o mundo do trabalho está passando por grandes mudanças. Mostra que cada vez mais trabalhadores são demitidos de empregos formais e, portanto, induzidos a empregos informais para se manterem economicamente ativos.

Sentindo em primeira mão o que esses números indicam, Will entende que mudar a sociedade requer participação política e social: “Não temos escolhas. Quem tem escolha é a direita. A gente vai para a rua ou morre de fome. A gente reivindica uma necessidade de vida”, disse. Ele refere-se às necessidades do trabalho diário, mesmo de forma instável.
O Brasil tem um contingente expressivo de desempregados, ou seja, pessoas com idade para trabalhar (acima de 14 anos) que não estão trabalhando mas estão disponíveis e tentam encontrar trabalho. De acordo com dados do IBGE divulgados em 26 de fevereiro de 2021, o número de trabalhadores que ficaram sem remuneração na pandemia do coronavírus chegou a 9,7 milhões. Além disso, a taxa média de desemprego de 13,5% é o pior resultado da série, iniciada em 2012.
“Não temos escolhas. Quem tem escolha é a direita. A gente vai para a rua ou morre de fome. A gente reivindica uma necessidade de vida” – Will
Para criar união e mobilizar politicamente a classe, alguns profissionais se uniram no movimento dos Entregadores Antifascistas. Esta organização está presente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e no Distrito Federal. E luta principalmente por direitos trabalhistas, vínculos empregatícios e condições de segurança.

Lucy, que se classifica como anarquista e antifascista, possui quatro empregos, todos informais. Formada em gastronomia, atuou em cozinhas, de onde saiu por sentir-se explorada. Começou a trabalhar como entregadora por conta de necessidades financeiras e se uniu ao Movimento dos Entregadores Antifascistas. “Eu não tenho profissão, eu faço várias coisas que eu posso com o que eu tenho” diz ela, que dá aulas de inglês, vende brownies e também mantém um podcast, o Descolonyzah, “um projeto que oferece conversas sobre lidar com a sociedade que a gente vive e propõe como a gente pode mudar tudo isso na prática” como se apresenta no Open Spotify.
“Eu não tenho profissão, eu faço várias coisas que eu posso com o que eu tenho” – Lucy
No ramo das entregas, ela possui experiência vinculada a aplicativos e fora deles. Hoje optou por trabalhar apenas através de parcerias, ou seja, à margem dos apps. A maior diferença, na visão dela, são as relações que se estabelecem entre parceiros. “Eu acho que te tratam como gente. Ninguém vai chegar lá e esculachar você. A gente consegue trocar uma ideia, trocar outras coisas que não só o trampo. Não é só baseado nessa lógica da grana. É muito mais baseado na questão das relações humanas e desse cooperativismo, como a gente vai se ajudar”, explica.
Falta de segurança
Além do risco de contraírem o coronavírus exercendo sua profissão, os entregadores correm risco constante no trânsito. Mesmo com menos pessoas trafegando nas ruas devido ao isolamento social, o Brasil teve 71.344 internações de motociclistas acidentados no trânsito no período de janeiro a julho de 2021, de acordo com estudo da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego. Isso representa um aumento de cerca de 14% comparado com o mesmo período em 2020, que registrou 62.433 internações de motociclistas.
No estado de Mato Grosso do Sul, os números também são expressivos. Até julho deste ano, houve 2.005 internações de motociclistas, um aumento de 4% em relação ao mesmo período em 2020.
Ani Margareth Souza, 52, que é conhecida como Penélope Charmosa por se apresentar assim e estar sempre de rosa, é agente comunitária há nove anos, mas em dezembro de 2020 passou a realizar entregas por aplicativo em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, aos finais de semana, usando sua motocicleta. Apesar de gostar da profissão de entregadora, ela também destaca que a atividade é perigosa e humilhante em determinados momentos. E chama atenção para o machismo e os perigos das ruas. “Não me sinto segura nem no trânsito, nem nas entregas. Vou com medo mesmo”, desabafa.
“Antes de eu ser entregadora, eu não via a realidade deles. Hoje eu sofro na pele. Você vê aqueles meninos passando igual um ‘louco’, correndo, porque eles têm um tempo para entregar. Já vi muitos se acidentando, justamente por conta do prazo” – Ani
Inúmeros são os motivos para tamanha violência no trânsito, e um deles está relacionado aos aplicativos. As plataformas estabelecem um prazo para as entregas e um período de tempo que, se cumprido, pode dar ao trabalhador uma remuneração um pouco maior, fazendo com que, em uma tentativa de aumentar a renda – que já é baixa – os entregadores coloquem suas vidas em risco. “Antes de eu ser entregadora, eu não via a realidade deles. Hoje eu sofro na pele. Você vê aqueles meninos passando igual um ‘louco’, correndo, porque eles têm um tempo para entregar. Já vi muitos se acidentando, justamente por conta do prazo”, enfatiza Ani.
Embora veículos a combustão sejam o principal meio de transporte dos entregadores, a bicicleta vem ganhando cada vez mais adesão. Entretanto, pela falta de uniformidade na malha cicloviária, os ciclistas também sofrem no trânsito campo-grandense. O psicólogo Raphael Vicente da Rosa, 29, trabalha como entregador desde 2018 e explica que até o relevo interfere na escolha do local de atuação.
“Eu tenho alguns problemas de visão e isso me atrapalha trabalhar durante o dia. Eu mudei minha rota e tenho trabalhado perto de casa, na zona sul. Tem menos oferta de entrega, mas me dá alguma renda também. Eu fiz essa escolha por causa da segurança também. É uma área mais plana e um pouco mais segura, [porque] não tem muito movimento de carro”, conta.
Mas nem na cidade de São Paulo, que possui a maior malha de ciclovias do país – 684 quilômetros, de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego – os ciclistas estão seguros. Nos sete primeiros meses de 2021 ocorreram 22 mortes, de acordo com o Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran/SP). Will relata que já sofreu violência física no trânsito e que os carros buzinam para as bicicletas como se elas atrapalhassem o fluxo das vias. O entregador comentou que após a gestão de Fernando Haddad (PT), que foi prefeito entre 2013 e 2016, os ciclistas passaram a ser vistos como ‘pessoas de esquerda’, e sofrem violência por conta disso também. Segundo ele, essa associação se deve ao fato de que a gestão do prefeito petista construiu mais de 400 quilômetros de ciclovias em São Paulo.
Presença feminina
No livro “o feminismo é para todo mundo” a intelectual negra e teórica feminista estadunidense bell hooks, 69, aborda a relação entre o surgimento do feminismo e a presença das mulheres no mercado de trabalho. Ela explica que quando o movimento surge, ele se mostra focado nas demandas de mulheres brancas e ricas, de forma que a principal reivindicação delas era poderem trabalhar, e não apenas cuidarem do lar. Apesar desta demanda ser importante, ela não se estendia para todas as mulheres, porque negras e pobres sempre estiveram no mercado de trabalho, embora não tivessem sua libertação garantida. Assim, as mulheres brancas privilegiadas tiveram sua independência às custas das mulheres da classe trabalhadora, que assumiram as funções domésticas das companheiras ricas.
Nesse sentido, Lucy defende que a questão de gênero não é solta. Para ela, se reconhecer dentro de algum empreendimento depende das condições oferecidas para sua estadia ali. ”Eu quero me ver como entregadora e me enxergar dentro desta categoria a partir do momento em que eu estiver recebendo um salário justo, a partir do momento em que eu tiver condições. Porque a questão do entregador é a gente não ter lugar para fazer xixi, a gente não ter um lugar para comer, para carregar o celular. Então, dentro de um contexto mega capitalista de aplicativo, eu quero fugir mesmo! Eu não quero fazer parte desse rolê aí. Tem que ser o recorte social, racial. Nada a ver ir sozinho”, afirma.
“Teve um cliente, no começo, em que eu me atrasei. Ele foi atrás de mim e me esculhambou. Falou que eu deveria estar em casa lavando roupa. Saí devastada!” – Ani
Ani comenta que desde que começou a trabalhar como entregadora, conheceu apenas outras cinco mulheres nessa atividade. Ela percebe que os homens são muito unidos e sente falta disso entre as mulheres, uma vez que o machismo existe não só entre colegas, mas também entre os consumidores. “Teve um cliente, no começo, em que eu me atrasei. Ele foi atrás de mim e me esculhambou. Falou que eu deveria estar em casa lavando roupa. Saí devastada!”, relata.
Para Lucy, a luta precisa ser focada na questão trabalhista. “Antes de ser mulher, eu sou pobre. Quando é só o empoderamento feminino pelo empoderamento feminino, ele é raso e ainda é capitalista”, conclui.
Entregas e pandemia
De acordo com dados disponibilizados pela Mobills, um sistema de controle financeiro, os gastos nos aplicativos Rappi, iFood e Uber Eats cresceram 103% no primeiro semestre de 2020. Com mais pessoas solicitando a entrega de produtos, os entregadores ficaram mais tempo nas ruas, o que os deixou também mais expostos ao vírus.
Especialistas de quatro universidades brasileiras apontam, no artigo ‘Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19’, que 57,7% dos entregadores pesquisados afirmam não ter recebido nenhum apoio das empresas para evitar a contaminação do vírus. A falta de suporte dos aplicativos, principalmente em relação ao fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s), fizeram com que os entregadores organizassem, em 1º de julho de 2020, um protesto nacional. Além de requererem os EPI’s, os entregadores reivindicaram também reajuste do pagamento por quilômetro rodado.
No site institucional, o iFood informa que começou a distribuição de EPI’s em abril de 2021, e que entre o período de 1 de abril e 25 de junho foram distribuídos mais de 818 mil itens de proteção individual, incluindo máscaras reutilizáveis e álcool em gel aos entregadores. Segundo consta no site, para evitar aglomerações, o entregador recebia um convite no aplicativo, como se fosse um pedido, para a retirada dos equipamentos de proteção. O deslocamento até o ponto de retirada foi pago pelo aplicativo.
Participação coletiva
Lucy acredita que é preciso que o consumidor saiba que os entregadores estão sendo explorados. Para ela, essa é uma luta contra a forma na qual a sociedade foi fundamentada, e a favor da construção de um sentido comunitário mais amplo. “É toda uma cadeia que você tem que mexer, porque é uma estrutura construída com base nessa exploração e que não tem interesse nenhum em mudar, porque ela vai ganhar com isso. Então, não é a gente esperar deles. É a gente criar. Por mais que seja complicadíssimo”.

Para isso é preciso combater a lógica do individualismo e estimular a participação e a consciência coletiva, pois “à medida que o consumidor começa a cobrar de que as condições sejam melhores, o mercado tem que se adaptar. É o consumidor que faz o mercado”, defende Lucy. Ela também chama atenção para a necessidade de participação mais ampla nessa busca por mudança. “Enquanto a classe média não perceber que também é trabalhadora, ela vai continuar servindo os ricos”, sustenta.
A paulistana sugere modos dessa conscientização ocorrer. A alternativa mais enfatizada por ela é boicotar os aplicativos, fazendo os pedidos direto aos restaurantes. Quando isso não for possível – pontua – é importante conversar com a pessoa que está realizando a entrega, oferecer água e dar uma gorjeta. Em suma, valorizar mais o ser humano que está desempenhando um serviço do que os aplicativos.
As possibilidades se alteram de acordo com a cidade ou estado. Isso faz com que Raphael seja pessimista em relação à Campo Grande. “Eu acho que é mais uma questão ideológica. Não é algo que vai mudar da noite para o dia. Teve uma vez que eu passei na rua e o pessoal riu de mim. Então não é algo que as pessoas vão mudar”, reflete.
De acordo com o professor Marcilio, a politização do cliente pode ajudar a mudar as relações trabalhistas, mas possui limites. “A sociedade brasileira tende, até por heranças históricas desde a escravidão, a desprezar a dimensão humana deste trabalhador”, pontua o sociólogo ao referir-se àqueles que tem as condições de trabalho precarizadas. Assim, é preciso também um comprometimento da classe média e das elites para que seja possível uma mudança neste contexto.
Apesar da complexidade do cenário, Lucy se diz segura em relação ao seu papel transformador. “A perspectiva é de luta sempre, não dá para estar em outro lugar. É uma luta complicada contra gigantes, mas a gente tem feito pelos nossos”, ressalta a entregadora.