Um olhar através das mensagens que ecoam pelos muros da cidade e expressam a união e resistência dos artistas
Texto: Frederico Diegues e Lucas Caxito

Foto: Dukafotos
Andando pelas ruas da cidade, é possível encontrar diversos tipos de informação. Desde letreiros e cartazes, a intervenções artísticas conceituais e poéticas. Nem todas essas informações são absorvidas pelas pessoas que por ali transitam. Muitas acabam passando pelo mesmo local no ‘piloto automático’, sem perceber que existe um universo aberto de mensagens nos muros e paredes, que a arte de rua nos apresenta de maneira gratuita.
Dentro do conceito de Arte de Rua, podem ser englobadas todas as intervenções artísticas que acontecem ou são exibidas no espaço urbano. Grafite, pixo, “sticker art”, letreiros de poesia e lambe-lambe são algumas das várias modalidades existentes. Com surgimento na década de 70, esse vasto movimento artístico, de caráter efêmero, democratizou o contato de pessoas que vivem nos centros urbanos com a arte, até então restrita a museus ou galerias.
O lambe-lambe, em específico, consiste na colagem de uma figura feita de papel na parede e pode variar de tamanho e formato dependendo da intenção do artista. Devido ao seu custo mais acessível de produção, vem se tornando uma das mais populares e marcantes vertentes. Com raízes ligadas ao nascimento do cartaz publicitário no século 19 e também aos pôsteres de propaganda política da segunda Guerra Mundial, o lambe-lambe surge como uma alternativa de intervenção na qual os artistas se apropriam do caráter imediato e massivo das mídias impressas para transmitir suas mensagens.
Na atualidade os métodos de impressão possibilitam o uso de uma maior gama de cores, artes mais detalhadas e em escalas maiores. O custo da impressão também caiu e fez com que mais artistas tivessem acesso a esse movimento.
Aqueles que usam as ruas como galerias sempre estiveram à margem do circuito comercial das artes. Por isso, fez-se necessária a criação de suas próprias comunidades e redes de comunicação. Assim, o crescimento dos estilos urbanos de arte foi ainda mais fomentado.
A união entre artistas
Diferente do que ocorre em outras escolas artísticas, a formação de uma coletividade é essencial para a arte de rua. Para Leonardo Mareco, 22, um dos principais artistas do lambe em Campo Grande, a formação de uma comunidade é fundamental, pois, além de aumentar a segurança dos artistas que vão às ruas criar suas intervenções, a união ajuda nos estudos e na busca por informações. “Como o lambe é uma parada que está começando [em Campo Grande], é sempre bom manter a galera toda junta, unida, para ter mais força. E também é muito mais ‘da hora’ você ter meio que uma união assim, porque você pode trocar conhecimentos, estudos e informação. Tipo, onde a impressão sai mais barata, saber onde compensa mais colar”.
Além da arte presente nas ruas, o processo educativo também contribui para as pessoas se agregarem. O fotógrafo Higor Bandeira, 25, mais conhecido como “Kings Of Cool”, é iniciante no lambe-lambe. Ele conheceu a ONG Casa de Ensaio em uma oficina. “Foi lá que conheci o Leonardo Mareco, que foi quem me influenciou a utilizar minhas fotos como lambe-lambe para expandir meu trabalho através da plataforma da rua”. Segundo ele, a comunidade do lambe-lambe é importante para que possam ocorrer mais oficinas na cidade, difundindo essa arte de protesto rápida e visual.
A produção e disseminação de lambe-lambe pelas cidades comumente busca levar um pouco de reflexão – por meio da arte – para as pessoas que por ali circulam, explica a estudante de Artes Visuais Poppy, 22. “Primeiro, pensei em colar alguns poemas, não só meus, mas de outras pessoas. Depois, comecei a colar algumas artes e desenhos autorais. Quando estamos na cidade, as pessoas estão indo ou voltando do trabalho, dos estudos, no corre de cada dia, e queria que talvez vissem algo diferente, que entrassem em contato com a arte e a arte entrasse em contato com eles. Algo que pudesse aflorar emoções, e talvez mudar o dia daquela pessoa”.

Foto: Gabriel Martins
Poppy enxerga como fundamental a existência de uma comunidade do lambe-lambe em Campo Grande. Para ela, é a coletividade que “mantém o movimento em movimento” e lamenta o fato das pessoas estarem privadas de sair no momento – reflexo da pandemia da Covid-19 – pois isso impossibilita a reunião com outros artistas.
O início
Mesmo com diferentes motivações, o que é comum entre os artistas na hora de decidir intervir na rua é a concepção de necessidade ao passar uma mensagem para um público maior. Poppy desenha e cria desde pequena, essa é uma forma de comunicação pela qual ela pode se expressar: “a arte me vem como uma forma de expressão, foi algo que eu sempre fiz e sempre gostei. Colocar sentimentos, outras realidades, diferentes existências, minhas e de outras pessoas”. A artista conta que teve contato com o lambe-lambe por meio de uma amiga, durante os protestos contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Já Higor, diz que apesar da arte estar inserida em sua vida desde muito cedo, começou a produzir há cerca de dois anos. “Fotografia sempre foi algo que gostei muito e penso que é uma forma rápida de registrar a realidade na qual me encontro e que outros se encontram. Mas não me considero um artista e nem mesmo um fotógrafo. É simplesmente algo que faço por simples prazer de registrar a existência das pessoas”.
Álvaro Herculano, 25, assim como Higor, também é fotógrafo e começou a fazer suas intervenções com influências de Leonardo Mareco. Ele conta que a arte entrou na sua vida pela fotografia. De “hobbie” passou a ser atividade profissional e objeto de estudo. “A ideia de começar a fazer o lambe-lambe veio a partir de uma situação que eu me vi fotografando o Leonardo Mareco fazendo uma intervenção na rua. A partir dali eu comecei a sentir mais interesse, pois eu considero a arte do lambe-lambe como um braço direito para fotografia. Como eu fotografo bastante o cotidiano, através do lambe-lambe eu consigo devolver a arte para a cidade.”
Mareco teve contato com as artes no movimento Hip-Hop e no skate, quando conheceu o grafite e o pixo, sendo este último sua primeira experiência com a arte de rua. Com o tempo se aprofundou no grafite, até conhecer o lambe-lambe e assumir o estilo como sua identidade fixa.

Foto: Dukafotos
“Eu nunca tive essa prática de desenhar desde criança, mas sempre curti muito e comecei na pichação, treinando letra, caligrafia. Depois parti pro ‘bomb’ [letras mais gordas do grafite], aí fui treinando os ‘personas’ [personagens de grafite] até que eu fui detido pela polícia fazendo grafite na rua. Eu fiquei meio que traumatizado e parei um pouco. Só continuei mandando umas ‘tags’ e tal, até que eu conheci essa técnica do lambe-lambe, que é uma técnica muito mais rápida, sendo que eu posso também mostrar a mensagem do grafite no lambe e não correr tanto perigo assim”, conta Mareco.
Processo de criação
Assim como o sentimento de necessidade em transmitir uma mensagem ao público, a forma e a estética da obra também são de caráter bastante pessoal. Como o lambe-lambe pode ser feito de diferentes maneiras, a criação está diretamente ligada à mensagem que o artista pretende passar.
Mareco, por exemplo, adotou a aquarela para fazer seus desenhos. Ele explica que o papel utilizado nessa técnica é diferente do ‘comum’ no lambe-lambe. “Como eu não tenho muito essa prática de desenhar um ‘bagulho’ grande e diretamente no papel e como minha técnica é aquarela, na folha sulfite, que é a folha ideal do lambe, não daria pra eu desenhar, porque a aquarela requer um papel mais grosso”.
Após o processo de desenho na folha de aquarela, Mareco digitaliza a arte e a redimensiona no computador. Em seguida, divide o arquivo em várias folhas tamanho A3 para serem impressas, montadas como um ‘quebra-cabeças’ e, por fim, coladas na parede.
Por ser fotógrafo, Higor já adota uma abordagem diferente. Apesar da semelhança na intenção de provocar uma reflexão e uma crítica social, Higor utiliza suas fotografias como o próprio lambe-lambe, imprimindo-as no tamanho e papel desejados para colar na rua. Ele acredita que a fotografia pode expressar muito bem o funcionamento de uma cidade por meio de seus transeuntes.
“Sempre busco selecionar fotos que chamem mais atenção, pois dificilmente consigo criar uma foto temática para assuntos atuais. Porém faço o máximo que posso para tentar criar algo que faça uma crítica política/social, que fale sobre um tema atual. Faço uma série que mostra a relação das pessoas com o espaço ao redor delas, com seus celulares, e pretendo criar lambes que pautem esse assunto de uma forma que as pessoas passem a questionar a maneira que utilizam a ferramenta”, diz Higor.
O mesmo método é utilizado por Álvaro, que também fotografa o cotidiano urbano. “Primeiro eu vou para a rua e fotografo as pessoas. Geralmente procuro por pessoas que tenham algum detalhe interessante, alguma mensagem pra passar, seja ela por algum acessório que está usando ou pela feição da pessoa mesmo. Depois eu tento transformar isso em alguma interação, para o transeunte que está passando ter algum tipo de relação. Pode ser a mesma interpretação que eu tive ou diferente, isso que é legal”.
Poppy, por sua vez, utiliza uma terceira abordagem, também diferente do ‘padrão’. Com colagens digitais, expressa sua mensagem por meio da união de imagens produzidas pela própria artista ou retiradas da internet. Os temas variam desde gênero à natureza.
“Comecei a fazê-las no começo do curso de Artes Visuais, em 2016, e venho procurando algum jeito de mostrá-las em tamanhos maiores. Aí tem o processo de ampliar a imagem e dividi-la em vários pedaços, assim consigo imprimir em várias folhas, para depois juntar e formar uma imagem maior”. Na hora de colar na parede e finalizar a obra, Poppy também usa a montagem ‘quebra-cabeças’, assim como Mareco.
Relação com a comunidade
A partir da formação de uma coletividade no cenário do lambe-lambe em Campo Grande, é natural que os artistas ali envolvidos formem laços de amizade. À medida em que vão dialogando entre si, para conseguir informações e marcar encontros para se ajudarem na rua durante as intervenções, esse laço tende a ficar mais forte, e os artistas passam a se conhecer cada vez mais.
“Todo mundo sempre junto, todo mundo se conhece. Até por que são pouquíssimos aqui em Campo Grande, é uma cena nova. Já houveram outros artistas que experimentaram o lambe-lambe antigamente, tipo a velha geração, que geralmente eram grafiteiros que também faziam alguns lambes. Só que assumir o lambe como linguagem, tá pegando uma força agora”, explica Mareco.
Uma das preocupações de Álvaro é a relação com a população campo-grandense. O artista ressalta que a formação de uma comunidade ajuda na forma como as pessoas enxergam as intervenções. “O fortalecimento é muito importante por parte da população, para deixarem de pensar que o lambe-lambe é vandalismo e se encaixar como arte. Isso eu acho que aqui em Campo Grande precisa muito acontecer”.
Mesmo alguém que está inserido há pouco tempo no meio, acaba criando uma rede de contatos na qual pode consultar sobre os métodos de produção. Assim, pode criar mais familiaridade com o estilo, como é o caso de Higor, que tem mais proximidade com Mareco e Álvaro Herculano, ambos artistas de lambe-lambe.
Apesar da comunidade ser composta em sua maioria por homens, o cenário do lambe-lambe em Campo Grande também procura abrir espaço para mulheres e pessoas LGBT, como é o exemplo de Poppy, uma transsexual não-binária. Ela comenta que como o movimento está crescendo agora, essa questão vai ganhando mais atenção.
“De pessoas LGBT, tem eu, e meu amigo Frankie, também não-binário. Tem outras mulheres, amigas que ‘colam’ também, mas é mais de vez em quando, como forma de protesto. Acho que o movimento está crescendo agora, ele está levando mais atenção. Às vezes a atenção é um pouco mais direcionada pros homens cis, mas continuamos!”, afirma Poppy.
O Impacto da Quarentena
Com o isolamento social decretado pelas autoridades em reflexo da pandemia do novo coronavírus, o cotidiano do campo-grandense foi afetado em vários níveis, impactando desde o comércio até mesmo o lazer dos cidadãos, com o fechamento de lojas e parques. Como a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é ficar em casa, a comunidade dos artistas de rua foi diretamente afetada com essa situação, pois suas áreas de intervenção são justamente o território urbano.
Segundo Higor, foi inevitável a pandemia atingir o cenário artístico de Campo Grande. Mas ele ressalta a importância da arte em tempos de pandemia. “Espero que as pessoas busquem formas de produzir e consumir arte, pois estamos vivendo uma realidade em que os artistas independentes sofrem muito. Dependendo da área, passa a ser limitada a criação de conteúdo”.

Foto: Leonardo Mareco
Esse período exige dos artistas a elaboração de alternativas criativas, para afetar menos a produção. Mareco e Álvaro por exemplo, fizeram os chamados ‘pontos de higiene’. “Chegou um ponto em que observei que as pessoas não estavam levando a sério o isolamento social, e acredito que o trabalho do artista de rua sempre foi de fundamental importância para conscientização popular. Pensando nisso, resolvi sair de casa e produzir trabalhos de conscientização, como o ‘ponto de higiene’, onde instalo um mordomo a serviço da higienização e, junto a ele, um kit de limpeza com água e sabão, para dessa forma poder realmente acessar pessoas mais vulneráveis em situação de rua”, conta Mareco.
Para Poppy, esse é um momento de medo, afastamento e incertezas, e tudo isso fez com que sua produção ficasse um pouco parada nesse tempo de pandemia. Porém, assim como Higor, ela ressalta a importância da arte nesse período complicado: “O lambe-lambe permite uma comunicação direta com as pessoas, para sensibilizar, conscientizar e expressar. Talvez o lambe dê um momento diferente, um sentimento bom no meio de vários não tão bons”.