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Caderno Especial 102

Passando a bala de borracha

Texto: João Vitor Marques
Ilustração: Lívia Medina


21 de junho de 1968, “Sexta-Feira Sangrenta”. A avenida Rio Branco, na capital do Rio de Janeiro, foi palco de um dos maiores conflitos entre o movimento estudantil e as forças de segurança do governo militar. Estávamos no ápice da ditadura militar. Até hoje não se sabe quantos morreram na data, alguns contam três, outros 28. Não se podia confiar nas estatísticas oficiais do governo, mas havia pelo menos um consenso de que dezenas de manifestantes ficaram feridos. Naquela sexta-feira, os estudantes que protestavam pelo fim do regime foram confrontados pelos militares com bombas de gás lacrimogêneo e tiros de bala de borracha.

31 de março de 2024. A borracha volta a ser utilizada. O Ministério dos Direitos Humanos do atual governo brasileiro, que chegou a registrar em documentos o slogan “60 anos do golpe, sem memória não há futuro”, foi proibido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de realizar atos críticos à ditadura militar. Eventos oficiais relembrando a data histórica foram vetados em todas as pastas governamentais.

O governo não deseja neste momento aumentar os conflitos com os militares, que não gostam da lembrança da responsabilidade por um dos períodos mais cruéis da história brasileira, nem com a direita do país, que em grande maioria nega uma ditadura, e acredita em um regime que teria salvo o país da “ameaça comunista”.

Tal decisão, parece uma nova bala de borracha no passado. Uma bala, aliás, com alvo inatingível. É impossível apagar o passado. É impossível apagar as lembranças daqueles que sofreram com as atrocidades da ditadura militar ou dos que perderam entes queridos. É impossível apagar os atrasos que o regime deixou como legado para o Brasil em setores importantes, como da economia e cultura.

Além de um ultraje às vítimas, a proibição é um passo perigoso rumo ao apagamento (ou esquecimento). A história deixa claro que é necessário relembrar as barbáries do passado para que não se repitam no presente. E na ânsia de uma conciliação com os militares, Lula, acusado por muitos de temer as Forças Armadas, em sua maioria bolsonarista, censurou qualquer lembrança ao golpe militar em seu governo.

Se calar quanto aos 60 anos de um governo opressor que controlou com a força os ideais de liberdade é, no mínimo, contraditório para um governo que se elegeu com um discurso contrário ao autoritarismo, inclusive com discursos inflamados contra possíveis golpes. Segundo o próprio presidente, a maior preocupação neste momento são os ataques recentes, como o de 8 de janeiro de 2023, que devem ser execrados. Mas, como evitar que as gerações atuais desejem a volta de um regime militar, se não se lembram ou nem conhecem os horrores vividos entre 1964 e 1985?

O Brasil vive, desde as articulações para o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016, o que a pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Magali Cunha, chama de “amnésia social”. Militares, políticos e intelectuais alinhados à direita tentam, desde então, justificar e recontar a história da ditadura, alimentando discursos de uma intervenção militar no país. Os anos que se seguiram foram ainda piores. O extremismo político e a cultura de informações falsas parecem ter deturpado a memória de boa parte da população sobre o período. A direita, capitaneada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, tenta forjar uma versão mentirosa do período ditatorial para apagar o passado e jogá-lo para debaixo do tapete.

Com a remontagem do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) no governo Lula, imaginava-se que o repúdio à ditadura militar voltaria a ser algo frequente. Parece que não. Lula prefere se omitir quanto ao que realmente ocorreu, o que é fato e não achismo: foi um dos períodos mais violentos de nossa história – e só chegou ao fim há menos de 40 anos.

Muitos insistem em dizer que o brasileiro é um povo “sem memória”, mas como não esquecer se o passado não nos é mostrado? Assistimos ao próprio governo tratar da lembrança da ditadura como um simples ato de “remoer” o passado. Enfim, por aqui, seguimos torcendo para que a história brasileira se recuse a deitar-se com a mentira.