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Entrevista

“Por que eles estão se chamando de comunidade?”

O antropólogo Álvaro Banducci Junior aborda diferentes coletividades e aponta para um esvaziamento do termo comunidade na linguagem cotidiana

Texto: Adriana Costa | Débora Oliveira


Ilustração: Norberto Liberator

“Tá dando pra ouvir?”. Esta é uma das frases mais ouvidas durante a quarentena por quem precisa fazer vídeo chamada para trabalhar ou estudar. Não foi diferente nesta entrevista. Pouco mais de um mês depois da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) ter emitido a portaria nº 405, que substitui as aulas presenciais por estudos dirigidos, o Projétil enviou ao professor Álvaro Banducci Junior o link para se juntar ao nosso bate-papo via Skype. Depois de vários minutos, para ajustar áudio e vídeo, demos início à entrevista.

Banducci tem pós-doutorado em Antropologia pela Universidade de Campinas (Unicamp) e há 33 anos leciona nos cursos de Ciências Humanas da UFMS. Logo no início da conversa, ele esclarece que determinados conceitos escapam das mãos da antropologia, ou seja, ganham vida própria para além das teorias acadêmicas. “A palavra em si vai ganhando outros sentidos e vai sendo aplicada em outros contextos, que não o da ciência”, afirma. Esse fenômeno, conforme o antropólogo, acontece com a definição de comunidade.

Afinal, podemos chamar de comunidade grupos de jogos online, militantes de uma mesma causa, refugiados ou artistas de rua? Para Banducci, é preciso estar atento às intenções de quem se autodenomina dessa maneira – se é política, ideológica ou, simplesmente, uma forma de banalizar o termo. A base de sua análise está no conceito clássico, a partir do qual ele observa casos específicos e avalia as nuances de cada agrupamento.

Abordamos também o assunto que está na pauta de todos os jornais hoje em dia: a pandemia. O antropólogo não acredita que vamos sair desta situação uma sociedade melhor, com o senso comunitário renovado, mas é o primeiro passo para começarmos a repensar certas atitudes. Segundo ele, estamos no início de uma série de episódios dramáticos na história da humanidade que desafiam a lógica do capitalismo, como a própria Covid-19 e os efeitos do aquecimento global. “Como a gente vai agir, como coletividade?” é uma de suas indagações.

Projétil: O que é uma comunidade?

Álvaro Banducci Junior: O conceito clássico de comunidade é do Ferdinand Tönnies, um alemão que viveu no século 19 e início do 20. Ele propôs uma diferença entre comunidade e sociedade. […] A comunidade é formada por pessoas mais próximas que têm interesses pessoais em comum e compartilham de valores, propósitos que são coletivos e não individuais. […] Enquanto que a sociedade é um agrupamento mais atomizado, mais individualizado. Os interesses são divergentes, muitas vezes, de caráter pessoal e menos coletivo.

P: Pessoas de uma mesma região que vão se refugiar em outro país podem ser considerados uma comunidade?

A: […] Havia uma comunidade em mente do Tönnies quando ele faz essa diferenciação, que acaba se aproximando muito das sociedades com as quais a antropologia tem contato, […] sociedades indígenas, africanas, aborígenes australianos etc. São coletividades vistas e chamadas de comunidade porque são pequenos grupamentos, com interesses comuns com uma vivência muito mais igualitária que a nossa. […] Tem uma definição que é clássica e que, de certo modo, nos orienta como cientistas sociais a olhar para esses grupos que a gente estuda e dizer se estão próximos do que seria uma comunidade ou próximos do que seria uma sociedade. O conceito em si, a categoria em si, ela ganha vida própria […] vai ganhando outros sentidos e vai sendo aplicada em outros contextos, que não o da ciência, da sociologia e da antropologia. Eu estou querendo dizer isso porque você fala “Ah, eu tenho um exemplo de uma comunidade de imigrantes e tal”. Então tá. Vamos olhar para essa comunidade, onde ela está e se ela é comunidade. Se ela pode ser chamada de comunidade ou não.

P: Quais são as características necessárias para classificar um agrupamento como comunidade? Hoje podemos olhar para a nossa sociedade, no Brasil, e encontrar agrupamentos que se encaixam nessas características?

A: […] Eu acho um pouco difícil a gente encontrar esse tipo de agrupamento social hoje. Se eu pegar o termo clássico e tentar aplicar na realidade. Mesmo os próprios antropólogos que trabalham, hoje, com sociedades indígenas têm o cuidado de não chamar de ‘comunidade indígena’, porque existem conflitos internos nessas sociedades, contradições, famílias que estão ligadas com a chefia e outras não, interesses políticos que se confrontam e levam a atritos e rupturas. Então não há uma comunidade, no sentido tradicional e clássico. Mas pode ter coletividades que se aproximem dessa definição ou se distanciem. Ou mesmo, pode ter grupos que se autodenominam dessa maneira. E aí, tem que ver por que eles se autodenominam assim. […] A comunidade econômica europeia [por exemplo] eles se chamam de comunidade porque têm uma moeda em comum, planos econômicos e interesses comerciais que são comuns. […] Mas é muito artificial chamar aquilo de comunidade, porque há atritos e interesses conflitantes. Não é o bem da sociedade europeia que está sendo levado em consideração, mas são os interesses de grupos financeiros, grupos políticos e etc. Então o termo é utilizado de uma forma um tanto ideológica, porque ele tem o propósito de passar a ideia do comum. […] Você pode ter uma favela, por exemplo, se chamando (sic) de comunidade, mas mesmo aí existem diferentes visões e acepções. […] Não há uma comunidade no sentido clássico do termo, no sentido científico. Mas tem um uso, uma apropriação política, do termo que é válida. Porque quando eu me apresento – eu como marginalizado, um grupo que vive numa condição de inferioridade na sociedade, de não gozar de privilégios ou mesmo de não serem garantidas as necessidades básicas – como uma coletividade coesa [isso] é importante para eu enfrentar as adversidades políticas e sociais. Então para mim, como antropólogo, não me interessa se estão utilizando certo ou errado. Interessa saber em que sentido estão usando. Por que eles estão se chamando de comunidade?

O isolamento é um ato de solidariedade orientado pela ideia de comunidade, diz Álvaro
Foto: Tui Boaventura

P: Essa palavra pode ser usada no discurso de legitimação de alguns grupos marginalizados?

A: Acho que pode ser usado nesse sentido. Posso encontrar o uso do termo comunidade com uso político, mas também identificar o uso do termo [de modo] ideológico, como a comunidade econômica europeia para dizer que tem o interesse comum, o bem comum, quando não tem. Agora neste outro exemplo que eu dei pode ser importante para uma determinada comunidade se fortalecer mostrando que as demandas por atendimento, conquistas sociais e materiais são comuns e legítimas. Não estou dizendo que haja esse uso do termo comunidade, mas pode haver esse uso. Se eu conheço, eu posso ver legitimidade nele. Não acho seja ideológico nesse sentido. É um uso político dessa categoria. […] Você vai olhar a realidade e pipoca a ideia de comunidade em todo lugar. Eu tenho que estar atento para saber qual sentido da palavra que está aparecendo ali. É legítimo esse uso? Não é?

P: Na internet se usa muito a palavra comunidade. Como, por exemplo, para classificar jogadores de jogos online. O que você acha desse tipo de uso?

A: […] Vejo nesse aspecto um certo esvaziamento do sentido, uma banalização do uso de comunidade. […] São pessoas que gostam de determinado tipo de jogo e só. Aquilo não condiz com a ideia de comunidade tal como a gente entende, como uma existência coletiva. É uma ideia banalizada e rasa de comunidade. Mas não sou eu que vou lá dizer “vocês não podem se chamar de comunidade porque não tem a ver com o conceito”. Não. Está usando, está se apropriando de uma categoria, está banalizando o seu uso, mas esses grupos querem dizer que há algo em comum entre eles e só isso.

P: Qual é a importância da comunidade para formação do indivíduo?

A: Total. Porque o indivíduo é resultado do meio dele, do meio em que vive. Então se ele é criado em um meio comunitário ele é produto de uma comunidade, muito provavelmente vai pensar comunitariamente, segundo parâmetros e princípios do bem público, do interesse comum etc. Numa sociedade onde os interesses individuais prevalecem é mais difícil o indivíduo ser formado com o propósito ou com essa visão do coletivo, do todo. […] Eu entendo que a gente pode caminhar, e deve caminhar, para uma existência mais comunitária, talvez não no sentido de uma comunidade como uma comunidade primitiva, mas numa sociedade que olhe para o coletivo, para o interesse coletivo e que seja mais igualitária. Isso não significa que ela vai abortar ou vai suplantar as diferenças e as diversidades que existem. Não é isso. Mas que aceite e dialogue. […] Nesse sentido, acho que a comunidade ainda está colocada para nós – como conceito, como parâmetro teórico, conceitual e como parâmetro político – como utopia. É nesse sentido que eu vejo como esvaziamento chamar qualquer agrupamento de comunidade. Acho que esvazia um pouco esse sentido político mais forte que esse conceito tem.

P: Nesse cenário de pandemia, você acredita que o isolamento prejudica o nosso senso comunitário?

 A: Pelo contrário, acho vai nos fazer cada vez mais pensar no coletivo. Se a gente quer continuar vivendo como espécie, nós vamos depender cada vez mais um do outro. Eu ficar isolado é uma atitude extremamente solidária, porque eu posso sair na rua e contaminar um monte [de pessoas], então esse é um exercício comunitário no sentido de pensar no outro. […] O nosso isolamento é no sentido de propiciar a superação de uma fase para que a gente possa se encontrar novamente. E o que interessa é esse encontro. […] Eu acho que nesse sentido, a ideia de comunidade é importante para orientar esse tipo de ação. Não acho que o nosso isolamento depõe ou contraria a ideia do coletivo ou a ideia de comunidade. Ele é um hiato que está nos permitindo, no isolamento, exercitar esse interesse que é de todos nós. Estou preservando a mim e ao outro. E tem pessoas que não estão entendendo isso. Muitas pessoas. Inclusive pessoas importantes e muito importantes. Mas o que nos orienta? O que nos faz agir dessa maneira, ficar recluso? É essa ideia de que existe algo para além da gente que é sociedade, que é o coletivo, e que eu devo preservar e atuar em nome dele.

P: Você acredita que os laços vão se fortalecer depois desse trauma coletivo que estamos vivendo?

A: Eu não acredito muito nisso agora. Acho que essa experiência não vai resultar, de imediato, em uma convivência mais harmoniosa. Mas esses acontecimentos vão ser mais recorrentes e a tendência é que nos force a pensar dessa forma. Não acredito que isso vai resultar dessa experiência dramática que estamos vivendo agora. Essa pandemia é um alerta para que a gente prepare os indivíduos para o coletivo, mas não acho que vai ser suficiente, e sim um começo.

P: A sociedade capitalista barra essa noção dos valores comunitários?

A: A ideia de comunidade ela é contraditória em relação com o capitalismo. São duas noções que não podem andar juntas. A gente só vai conseguir ter uma sociedade preocupada e voltada para o coletivo quando essa ideia do indivíduo for superada. O capitalismo está todo assentado no indivíduo: a legislação, a questão ideológica do ‘self made man’ americana, a meritocracia, etc. […] Então a gente vive numa sociedade cujo princípio e a lógica é essa: eu tenho que formar o indivíduo para vencer, para ele ser melhor que o outro. Isso faz parte do capitalismo, porque ele quer um indivíduo que seja consumidor e produtor. Só vai ter uma outra ordem, outro estilo de vida, quando romper essa lógica.

P: E como rompe com uma lógica tão estrutural?

A: A história está aí para mostrar que tentativas já aconteceram. Várias. Frustradas. Porque o que se conseguiu foram modelos autoritários. […] Outros desafios estão sendo colocados para o capitalismo, que desafiam a lógica do capital. O coronavírus vem, nesse sentido, mostrar isso, [que] a lógica do capitalismo é produção, produção, produção, consumo, consumo, consumo. Mas a gente produz e consome com os recursos que o planeta tem, e os recursos são finitos.

P: O planeta já não tem mais recursos, praticamente, né?

A: [..] É. O sistema vai esgotar. Agora está no meio da pandemia – daqui uns meses a gente pode voltar a conversar – mas eu acho que não vai ser o suficiente para promover mudanças estruturais nem no nosso comportamento nem no nosso pensamento. Tem outras mudanças drásticas acontecendo em tempo mais lento e outras catástrofes ainda vão aparecer. Então a gente vai ser obrigado a repensar, não vai ter jeito. E aí o capitalismo esperneia. Os empresários saem e falam “o trabalhador tem que vir aqui [para o trabalho], senão eu quebro”. E quebra mesmo. Mas como a gente vai agir, como coletividade? Essas condições vão ser colocadas novamente com muita frequência. Acho que o capitalismo foi questionado de várias formas – política, científica etc. – e ele sobreviveu. E sobrevive. Mas acho que a esse questionamento que vem com a natureza, com o clima e com os recursos finitos, esse não vejo o capitalismo superando. Ele vai ter que mudar muito a lógica dele. E a lógica do capital é essa: produção, exploração da mão de obra e consumo. E aí? Produzir o quê? Se não tem recurso. Produzir para quem?