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Opinião 99

Por trás da muralha amarela

Douglas Nestor Jost Rebelato


Quando me mudei para Campo Grande em setembro de 2020, não tinha ideia de como minha vida seria em um novo estado. Na primeira vez que andei pelas ruas da capital, me animei ao descobrir o que era uma chipa. Ao visitar os grandes shoppings e parques que essa linda cidade possui, acabei nem dando bola para aquele grande muro amarelo que ocupava mais da metade da quadra onde moro.

Ilustração: Beare

Com a chegada do dia da Infância e da Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, no final do mês de agosto de 2022, me perguntei: ‘Quais instituições aqui de Campo Grande trabalham com esses grupos?’ A surpresa foi descobrir que aquela muralha amarela perto de casa acolhia ‘crianças’ com paralisia cerebral grave, agindo como uma creche para as que vivem em situação de extrema pobreza. Atrás da muralha está o Cotolengo Sul-Mato-Grossense. Decidi visitar o local, pensando que encontraria os pequenos atendidos pelo projeto. Não foi o que encontrei.

Ao chegar ao Cotolengo, segui o caminho até a secretaria, para descobrir um pouco mais sobre o local. À primeira vista, a organização me lembrou um colégio. Bem na frente da entrada vi uma grande construção amarela, era o pavilhão da comunidade, onde vários eventos são realizados com o trabalho voluntário de mais de 100 pessoas, em busca de doações.

A recepcionista que me atendeu me contou como a instituição, fundada por São Luís Orione, promove ajuda e tratamento para pessoas com deficiência em diversos países. Na Cidade Morena, foi inaugurada em 1996. Seu atual presidente, Padre Valdeci Marcolino, possui um lema que corre solto pelos corredores de acolhimento. “Aqui não tem religião ou raça, acolhemos todos”.

Visitei os diferentes espaços do Cotolengo, iniciando pelo pavilhão conhecido como ‘Ala Sol’. Fiquei espantado ao descobrir que a maioria das pessoas, que honestamente tinham estatura de adolescentes, eram adultos. Ao ver minha expressão, uma enfermeira me contou que a instituição considera todas as pessoas acolhidas ali como ‘crianças’, devido a sua altura e mentalidade, muitas delas com dificuldade de desenvolvimento por causa da paralisia cerebral grave, sem falar nas outras complicações.

Em uma sala próxima, macas estavam por todos os cantos, pacientes estavam sendo alimentados em cadeiras de rodas e entre eles, estava Tamire, de 22 anos. A enfermeira me contou um pouco sobre a garota. Tamire frequenta a instituição há exatamente uma década, sua condição melhorou a ponto de poder correr. Mas, a pandemia e a impossibilidade da instituição de continuar atender as pessoas durante esse período de tempo, fez com que esse progresso fosse infelizmente perdido.

Seguindo em frente, me vi na ala do Centro de Reabilitação, com uma estrutura quase impecável, aparentemente, mais recente. Nessa hora percebi como a televisão, a música, shows e desenhos são grandes aliados das enfermeiras na hora de entreter as crianças, que mesmo com suas peculiaridades, possuem gostos específicos e sabem bem o que querem ver e ouvir.

Um dos assistentes me levou a uma área mais reservada do Cotolengo, a Residência. Nela, 10 pessoas de diferentes idades vivem como se ali fosse seu próprio lar. Os muitos funcionários daquela seção são chamados carinhosamente de ‘pai’ e ‘mãe’. Ali conheci Maria José, uma ‘criança’ curiosa e de passos rápidos que veio até mim enquanto eu conversava com a nutricionista da residência. Me envergonhei quando a ‘criança’ disse que tinha gostado muito de mim. Próximo dali o mesmo assistente social observou a interação com um olhar de choque e ‘traição’, afinal Maria sempre afirmava que gostava dele. Maria José compartilhou sorridente um pouco de seu mundo comigo.” Encontrei um milhão de dólares embaixo do sofá”, me disse em palavras lentas. “Eu te vejo ganhando um carrão zero quilometro”. Respondi entre risos: “Que Deus te escute”.

Ao sair da organização, percebi algo que o mundo não é pequeno, ele é enorme, e há muita gente deixada de lado pela sociedade. É necessário promover a visibilidade de instituições como o Cotolengo, que não medem esforços para trazer o amparo a pessoas necessitadas que infelizmente não possuem condições de buscar os tratamentos essenciais para conter o avanço e complicações causadas pela paralisia cerebral grave.

Já do outro lado da muralha, todos os pensamentos e sensações que senti dominaram o meu corpo e mente, um sentimento estranho, uma mistura confusa de amor e carinho, com piedade e receio. Ultrapassar a muralha amarela me colocou em um lugar de quebra de expectativas, que me deixou sem palavras.