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Opinião 101

Princípios pela janela

Texto: Enzo Pereira | Fernanda Sá
Ilustrações: Pedro Henrique Oliveira


Noite de sexta-feira, 26 de março de 2010. Era possível ouvir gritos, fogos de artifício e toda a comemoração da plateia que se aglomerava nos arredores do palco principal no bairro de Santana, em São Paulo. Não se tratava, porém, de um show ou de um jogo. Apesar do roteiro com todas as cores de um espetáculo, um julgamento acontecia. Após a maratona de cinco dias de júri, o que foi visto como dramaturgia por muitos, teve seu desfecho: uma criança morta, dois réus condenados e uma multidão de espectadores em êxtase.

O documentário “Isabella: o Caso Nardoni”, dirigido por Cláudio Manoel e Micael Langer, lançado em 2023 com produção da Netflix, trouxe novamente aos holofotes midiáticos o julgamento do crime que comoveu o Brasil em março de 2008: o assassinato da menina Isabella Nardoni, de 5 anos. Foram analisadas seis mil páginas de processos, gravadas 118 horas de entrevistas e pesquisados cinco mil arquivos de acervos da família para rememorar um dos casos policiais de maior repercussão na história brasileira recente e que colocou em debate conceitos jurídicos como a presunção da inocência. Assim como o triste fim da vítima, este importante princípio constitucional foi – desta vez pela mídia – também “jogado pela janela”.

O caso aconteceu em 29 de março de 2008, quando o pai Alexandre Nardoni e a madrasta Anna Carolina Jatobá voltavam de um churrasco em família com suas três crianças, entre elas Isabella, para o condomínio de classe média em que viviam na capital paulista. Algum tempo depois de chegarem ao apartamento, a menina foi encontrada caída no pátio do prédio, “lutando para respirar”, como posteriormente relatou a mãe Ana Carolina de Oliveira à produção documental.

O documentário coloca ênfase no relato da perita criminal Rosângela Monteiro, que na época encomendou uma animação em 3D baseada nas investigações da perícia relativa a cada etapa do crime. Desde a chegada ao estacionamento do prédio até o momento em que Alexandre supostamente cortou a rede de proteção e arremessou a filha pela janela, passando pela possível agressão à Isabella cometida por Anna Jatobá ainda dentro carro, tudo foi detalhadamente roteirizado na animação que ocupou no imaginário popular o vácuo de certezas sobre o caso. Além de ter sido utilizado como prova durante o julgamento, o vídeo também teve um papel condenatório público sobre o pai e a madrasta ao ilustrar em detalhes a possível barbárie cometida contra a criança.

Midiatizado ao extremo, com veiculação 24 horas por dia pela imprensa, o caso rapidamente levou à comoção pública e colocou em questão o princípio da presunção da inocência. Segundo o artigo 5°, inciso 57, da Constituição Federal, ninguém deve ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sua sentença penal condenatória.

Com o distanciamento de mais de uma década da crueldade do crime, o documentário consegue apresentar justamente a inversão de papéis da mídia e da pressão popular na condenação pública precoce do pai e da madrasta. Não por acaso, o também midiático advogado de defesa Roberto Podval demonstrou na ocasião sua grande preocupação com a massificação prévia da condenação que ganhava corpo na opinião pública e que viria a influenciar o júri popular. Do outro lado, o promotor Francisco Cembranelli conseguiu seu lugar na lamentável fama do caso ao se manter como a principal fonte condenatória.

A pressão da mídia fez com que a justiça se apressasse com o caso. Durante o julgamento, centenas de pessoas aglomeraram-se na frente do Fórum e outras milhões diante de seus aparelhos televisores aguardando a comprovação do resultado: Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá culpados. Comovidos, muitos populares já haviam endereçado cartas de solidariedade à mãe de Isabella, que assumia o triste papel de celebridade instantânea.

No fim da festa midiática, a condenação dos réus mascarou um comportamento irresponsável da imprensa com a Constituição Federal e com seu próprio Código de Ética. A justiça tudo indica que foi feita, mas o jornalismo abriu mão de sua função de informar para assumir a posição de carrasco.

*resenha redigida como trabalho da disciplina “Legislação e Ética em Jornalismo”, semestre letivo 2023.2