Como ressocializar alguém que nunca foi socializado? Projeto de lei quer impedir um dos únicos meios de reinserir ex-detentos na sociedade
Texto: Mariana Pesquero | Julia Nogueira | Marcos Paulo Amaral
Fotos: Arthur Ayres
“Da última vez que eu saí da cadeia eu fui buscar emprego, pediram meu currículo e perguntaram se eu tinha passagem. Falei ‘tenho’. Perguntaram se já fui presa, falei ‘já’, aí me dispensaram”. Essa realidade da detenta Lucilene, de 50 anos, mostra que a passagem pelas grades se torna um estigma, um estereótipo que afeta a vida daqueles que buscam uma chance de voltar a viver em sociedade.
Relatos como o de Lucilene atestam que a reintegração social, na prática, é uma utopia e está longe de se tornar uma realidade. E, por pouco, não se tornou inalcançável. O Projeto de Lei (PL) 2.253/2022, proposto pelo senador Flávio Bolsonaro (PL) e aprovado pelo Senado Federal no dia 20 de março de 2024, previa a revogação total do benefício da saída temporária dos detentos, ‘a saidinha’. No dia 11 de abril do mesmo ano, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou parte desse projeto de lei, permitindo a saída dos presos que estudam, sejam cursos profissionalizantes ou ensino médio e superior. O veto parcial do presidente adicionou apenas uma reticências ao debate que não terá um ponto final tão cedo.
João Victor Cyrino, advogado atuante na área penal e criminal, enxerga a restrição na lei das saídas temporárias como uma grande decepção, um retrocesso. Na raíz do problema, a ideia da restrição total da saída temporária para os presos veio a tona com o assassinato do policial militar, Roger Dias da Cunha, em Minas Gerais, em janeiro de 2024, por um detento que estava em liberdade temporária, usufrindo exatamente do benefício da saidinha. Casos isolados, como este, são utilizados para propagar a ideia de que o benefício fornecido aos detentos em regime semi-aberto é um problema de segurança pública, quando, na verdade, ele nunca foi.

Cyrino explica que a Lei de Execução Penal (LEP) regula todos os dispositivos de cumprimento da sentença e propõe ser uma medida humanitária, pensando na pena como um caminho para a liberdade. Em seu primeiro artigo, a LEP estabelece como objetivo “efetivar as disposições da sentença criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, englobando tanto o período na cadeia, quanto o pós-cárcere e a reintegração social do detento. No entanto, nenhum desses dois objetivos são executados da maneira como deveriam. O sistema prisional brasileiro é falho.
Aqui, fica evidente que a falta de consciência social dificulta enxergarmos a realidade social das pessoas que estão dentro das prisões: a maior parte dos detentos não são formados no ensino fundamental. Cyrino acredita que os cursos profissionalizantes, por exemplo, oferecidos dentro dos presídios, não conseguem cumprir satisfatoriamente seu papel, pois a massa carcerária não tem base escolar suficiente para o aprendizado. “A quantidade de presos que têm condição de se matricular num curso técnico ou superior é ínfima. A nossa massa carcerária, não tem ensino fundamental completo”.
A professora do curso de Direito e mestra em Direitos Humanos, Marianny Alves, explica que essa situação ajuda a reforçar e perpetuar opressões sociais. “A pessoa pobre vai passar pelo sistema de justiça e vai continuar sendo uma pessoa pobre e vai aprender a ser uma pessoa pobre que faz as coisas dentro da licitude, porque você não pode ascender socialmente por meio de coisas ilícitas”.
“Como eu estou ensinando alguém a viver em sociedade excluindo-a da sociedade?”
Para Marianny, essa situação acaba marginalizando uma parcela específica da sociedade: pobres, moradores de periferia e que não conseguiram concluir os estudos. Quando o termo ressocialização é utilizado, ele implica o sentido de que a pessoa já foi socializada e, em algum momento, deixou de ser, sendo colocada novamente em um processo de ressocialização. Porém, a professora reforça que o termo por si só é duvidoso. Quem pode dizer o que caracteriza uma pessoa ressocializada? Ao afirmarmos que alguém está sendo ressocializado, pensamos que a pessoa não sabe viver em sociedade. “Como eu estou ensinando alguém a viver em sociedade excluindo-a da sociedade?”
Dentro dos muros das prisões, os detentos se deparam com celas superlotadas, falta de higiene, má alimentação e violência, de onde dificilmente sairão recuperados para retornar ao convívio social. Aqui fora, a realidade é diferente, e isso, afirma a professora, torna todo o processo prisional completamente contraditório. “Quanto mais a pessoa se adapta ao ambiente prisional, menos ela se adapta ao ambiente aqui fora”.
Bandido uma vez, bandido para sempre?
Detenta do presídio feminino de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Lucilene vive desde os 18 anos entre idas e vindas atrás das grades. Aos 50 anos, encontrou no projeto de reciclagem de lixo eletrônico, Recic.LE, uma maneira de sair do crime, e em 2024, ela já tem data marcada para assinar a sua condicional. “Eu não quero voltar para o mundo do crime mais. Não quero mais vender droga. Não quero fazer nada de errado do que eu fazia, porque eu perdi minha juventude toda na cadeia”. A ansiedade e a apreensão mostram a mistura de sentimentos sobre o que o futuro reserva, a felicidade de ter mais uma chance de recomeçar longe do crime, enquanto o medo de preconceito surge ao imaginar uma vida fora das grades.

O coordenador do projeto Recic.LE, na capital de MS há cinco anos, Edilson Paulon, acredita que para a ressocialização ser efetiva é necessário um programa de acompanhamento aos ex-detentos depois de soltos, que sirva como suporte para o retorno ao convívio social. “Eu acho que teria que ter alguma coisa no pós, algum projeto com o governo, que pudesse amparar”, opina.
O projeto de reciclagem atua em parceria com a Agência Estadual de Administração do Sistema Prisional (Agepen), empregando detentas do Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada de Campo Grande, e oferece um salário mínimo, vale alimentação, café da manhã e da tarde, almoço e diminuição de um dia de pena a cada três dias de serviços prestado. É onde Lucilene está presa. Este acordo, contudo, dura apenas enquanto as detentas estão no regime semiaberto. Edilson indica as meninas para outros empregos, mas o preconceito é fator decisivo na hora de contratar. “A gente tenta ajudar, mas não depende só da gente. Parece que não, mas a sociedade julga mesmo”.

Quando deixam a prisão, os/as ex-detentos/as se deparam com uma realidade onde a ideia de reinserção parece não ter lugar. Lucilene afirma que o problema do projeto é que quando os participantes terminam de cumprir a pena, sua participação não é mais permitida, e o caminho na busca por um trabalho é repleto de julgamentos. “[O projeto] É muito bom, a única coisa que não é boa é que depois que a gente sai da condicional, a gente não pode continuar trabalhando, então fica muito ruim para arrumar serviço, porque aí eu vou ter que arrumar serviço por mim mesma”, explica.
Apesar das dificuldades, o ex-detento do Centro Penal da Gameleira na capital Cláudio demonstra ter seguido adiante. Longe das grades há quase 15 anos, casado e com duas filhas, Cláudio, 49 anos, hoje segue sua vida como tapeceiro, uma habilidade que aprendeu com seu pai, mas que foi deixada de lado quando se envolveu com drogas ainda na adolescência. Enfrentando o vício, ele conta que, desde os 18 anos, quando foi preso pela primeira vez, passou por idas e vindas, totalizando cerca de 4 anos em regime fechado.
Quando conseguiu o benefício da saída temporária, escolheu se dedicar à sua profissão ao mesmo tempo que lutava para terminar os estudos. “Eu comecei a trabalhar e estudar, aí eu saía às quatro e meia da tarde da Gameleira e voltava somente à meia-noite. Eu era o primeiro a sair e o último a entrar”, relata.
Hoje, além de manter o trabalho como tapeceiro, Cláudio iniciou um projeto social para auxiliar famílias de detentos. O Instituto Barriguinha Cheia atende 630 famílias em vulnerabilidade socioeconômica em dez polos em Campo Grande. “Tem muita gente que precisa, muita criança passando fome, muita mãe solteira, muita idosa. Eu ajudo a família deles [detentos] aqui fora. A gente vai lá, atende com cestas de frutas, verduras e legumes, kit de mamãe bebê. A gente ajuda indiretamente cada preso dessa forma”. Mas o tapeceiro tem planos ainda maiores. “O meu sonho é trabalhar com presos quando saem do presídio, ter um local para dar um curso profissionalizante, um trabalho. Se existisse aqui em Campo Grande, diminuiria a marginalidade e aí sim teriam vários presos ressocializados”. Cláudio é exceção.
“Se você foi preso uma vez vai passar o resto da vida sendo visto por isso. Bandido uma vez, bandido pra sempre”
Muitos detentos não contam com uma rede de apoio quando são soltos, sendo esse um dos motivos para o retorno à criminalidade. “É reconhecido tanto na nossa legislação quanto em legislações internacionais que a convivência com a família é parte essencial do cumprimento da pena”, explica o advogado criminalista Cyrino. Lucilene relata que a maioria de suas colegas de projeto voltaram para esse caminho. “Dá para contar nos dedos [as que não voltaram pro crime], que eu sei mesmo é só uma até hoje, foi a única. O resto tá tudo lá de volta, lá no fechado”, conta. Segundo a professora de direito, Marianny, o que ocorre é uma transferência do problema de mesma raiz para outro lugar. “Se essa pessoa não tem família por aqui, ela acaba ficando na rua, deixando de ser alguém que está dentro do sistema prisional para ser alguém em situação de rua. E aí, na verdade, eu tô mudando o problema, não resolvendo”.

Cyrino afirma que restringir a lei das saidinhas serve apenas como um espantalho, uma máscara. “A gente tem aí um falso problema de segurança pública. Vende-se a ideia de que a saída temporária é um problema de segurança pública”. O problema real não está no benefício, e acreditar nessa ideia interfere diretamente no processo de reinserção dos ex-detentos na sociedade. “O benefício social da saída temporária é infinitamente maior que um eventual problema daquele um ou outro que não volta”, afirma o advogado.
Mas essa situação vem de um estigma ainda muito forte e presente na sociedade. “Se você foi preso uma vez vai passar o resto da vida sendo visto por isso. Bandido uma vez, bandido pra sempre”, desabafa Cláudio.
Índices de reincidência
O Brasil, com mais de 839 mil presos, possui a terceira maior população carcerária do mundo. Além disso, há um alto índice de reincidência criminal entre os egressos, estimado em cerca de 1/3. Essa realidade é explicada pela precariedade do sistema carcerário, condições socioeconômicas desfavoráveis e a falta de políticas públicas direcionadas aos ex-detentos. No Mato Grosso do Sul, 45,7% das pessoas com processo registrado, acabavam sendo reincidentes, dados da SISDEPEN.
“Todo mundo está sujeito a ser acusado de um crime. Isso não muda as pessoas, não as torna mais ou menos humanas, nem cria categorias de cidadãos melhores ou piores”
A professora de direito, Marianny, acredita que uma possível transformação nesse cenário de preconceito passa por mudar a mentalidade de que os ex-detentos são diferentes de nós, lidando com o crime de forma natural. Para ela, passar pelo sistema prisional não torna alguém menos humano ou sem direitos. “Todo mundo está sujeito a ser acusado de um crime. Isso não muda as pessoas, não as torna mais ou menos humanas, nem cria categorias de cidadãos melhores ou piores”, enfatiza.
Vigiar e punir

Para o advogado criminalista João Vitor Cyrino, a instituição da prisão nunca funcionou como deveria. O conceito de punição sempre existiu na história da sociedade e, comparando as penas de antigamente às penas atuais, o que houve foi uma humanização das punições, ou, pelo menos, uma tentativa disso. A prisão atual, segundo ele, segue a mesma lógica. “A prisão veio para tentar ser uma humanização da pena. Então em teoria a prisão passou a ser algo mais humano. Não mato mais a pessoa, eu vou prendê-la.”
“Já está mais que demonstrado que a prisão é um instituto que não salva ninguém, que não ressocializa ninguém. Ela nunca ressocializou ninguém em lugar nenhum do mundo”
Surge daí a ideia de tornar a prisão um ambiente de ressocialização onde os detentos, por meio da LEP, tornariam-se aptos a viver em sociedade novamente. Para Cyrino, a teoria não é realista, e a aplicação na prática é praticamente nula. “Já está mais que demonstrado que a prisão é um instituto que não salva ninguém, que não ressocializa ninguém. Ela nunca ressocializou ninguém em lugar nenhum do mundo”, afirma.
A professora Marianny Alves mantém a mesma linha de pensamento. Ela acredita que a forma como o sistema prisional funciona, no Brasil, é completamente avessa à ideia de sociabilidade. “Falar que existe ressocialização é mentira. Porque essa pessoa entra e vai ser capturada por facção criminosa, vai sair pior no sentido de revolta. Na verdade, é um sistema penitenciário caótico, que nasceu para isso”.
Cláudio, como ex-detento, reforça exatamente a mesma questão. “Eu nunca mais quero voltar para aquele inferno. A prisão não é um bom lugar, se a pessoa não estiver firme com o que ela quer pra vida dela, ela vai sair dez vezes pior. Falam que cadeia é castigo, não é castigo não, é martírio, e vai acabar com o psicológico e o sentimental de quem ‘tá’ ali”.



