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Protetores dos animais abandonados

As dificuldades enfrentadas por aqueles que dão acolhimento a cães e gatos rejeitados

Texto: Andrella Okata | Gabriel Gill | Rineva Dias


Levantamento realizado em setembro de 2020 pelo Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Saúde Animal e pela Comissão de Animais de Companhia, em parceria com o Instituto H2R de Pesquisa Avançada, estima que a população de animais domésticos no Brasil seja hoje de cerca de 84 milhões. Destes, mais de 54 milhões são cachorros e quase 30 milhões são gatos, de variadas raças.

Ilustração: Bianca Esquivel

Mas nem todos se encontram em boas condições. Uma apuração do Instituto Pet Brasil apontou que há 2,69 milhões de cães e 1,21 milhão de gatos em condição de vulnerabilidade. Os animais que fazem parte desse grupo são os que vivem em famílias que estão situadas abaixo da linha da pobreza ou os que estão abandonados.

O abandono de animais no Brasil é um problema que não se resume apenas à crise social e econômica na qual o país se encontra, pois sempre ocorreu a partir de uma variada gama de motivos. E, independente do que leva alguém a abandonar um animal, isso acaba gerando também riscos para a saúde pública. Dessa forma, há possibilidade de transmissão de doenças dos animais para o homem – o que comumente chamamos de zoonoses.

No Mato Grosso do Sul, o abandono habitual de animais domésticos contribuiu na instituição da Lei nº 5.666 de 2021, que tornou o dia 17 de Janeiro no ‘Dia dos Protetores dos Animais’ em Mato Grosso do Sul. A data foi escolhida porque é o Dia do Santo Antão, considerado protetor dos animais domésticos.

Protetores independentes de animais são pessoas que resgatam, socorrem e cuidam de cães e gatos, doando grande parte de seu tempo para isso. São cidadãos comuns que incluem em seus cotidianos a missão de trazer dignidade à vida de animais abandonados.
Em Campo Grande não existe nenhum censo estimando o número de protetores de animais na cidade, mas o Projétil foi atrás de algumas histórias inspiradoras.

Minha casa é o seu lar

A funcionária pública Evelize Valiente, 45, atua como protetora independente há 20 anos, e há três criou o coletivo Resgateiras, grupo no WhatsApp que reúne 216 protetores de cães e gatos. A ideia da criação de um grupo virtual veio de uma amiga e no início funcionava mais como um espaço de ‘descarte’, onde as pessoas mandavam fotos dos animais que não queriam mais, na busca por alguém que tivesse interesse em adotar.

Evelize conta que, por esse ou outros canais, muitas pessoas acabam entrando em contato com ela para deixar sob seus cuidados os animais abandonados que encontram. Mesmo arcando sozinha com os gastos – que incluem consultas veterinárias, castração e ração – ela os acolhe e sustenta.

No início do ano ela mudou-se da casa onde morava para um apartamento, e por isso passou a não ter mais condições de realizar resgates. Com sua mãe, ela mantinha na antiga casa 27 gatos. Com a mudança, teve que encontrar lares que os adotassem. “Consegui deixar os gatos na casa de duas amigas, mas sou eu que arco com tudo. Com a ração e materiais de higiene. Aqui no apartamento só estou com dois, os mais doentinhos”, relata.

Evelize conta que a pandemia interferiu de diversas maneiras nos resgates, já que a paralisação de alguns serviços não essenciais implicou na queda do rendimento de muitas famílias, o que aumentou ainda mais a taxa de abandono de animais domésticos.

Criadora do grupo Resgatadeiras, Evelize dá abrigo a muitos gatos – Foto: Giovana Bacarin

Esse reflexo da pandemia afetou também a cabeleireira e auxiliar veterinária Graziela Domingues, 35, membro do grupo Resgateiras. Graziela possui um salão de beleza em sua residência, o que permite um contato mais instantâneo e melhor acolhimento com os animais que cuida, já que fica mais tempo em casa.

Grazi – como prefere ser chamada – diz que por amor aos animais, desde pequena tinha dentro de si a vontade de resgatar aqueles que se encontravam em situação de rua. Em função disso, sempre que via um bichinho abandonado já o levava para sua casa. Há seis anos, com a independência financeira estabelecida, se viu com mais condições de arcar com os gastos e assim cuidar dos pets com mais dedicação.
Grazi mantém sob seus cuidados 119 animais, sendo cem gatos e 19 cachorros. “Os animais estão divididos em três casas. Na casa onde moro fica a menor parte. Na minha mãe fica a metade. E o restante dos animais ficam em outra casa que alugo há quatro anos. Mantenho as despesas com o fruto do meu trabalho, ajuda da minha mãe e amigos, venda de rifas e acessórios. E recebo algumas doações de conhecidos”, relata.

Carmen Maria Calderon, 53, trabalha com venda de cosméticos e também sempre gostou de animais. Porém começou a se envolver mais com o acolhimento quando passou a acompanhar uma página de resgate no Facebook, em 2016. A partir de então, ela transformou sua casa em lar temporário e começou a fazer resgates, sendo chamada de ‘protetora’ pelos vizinhos.

Carmen abriga 17 cães, entre adultos e filhotes, e quatro gatos. Para conseguir manter as despesas ela recebe ajuda de amigos e conhecidos, o que inclui doação de ração, materiais de higiene e apoio financeiro. Além disso, Calderon também vende rifas, faz almoços beneficentes em prol dos animais que cuida e pede ajuda em sua página no Facebook.

Fotos: Acervos de Carmen Calderon (direita e superior esquerda) e Graziela Domingues (inferior esquerda)

Dilemas e dificuldades

Evelize explica que considera errado deixar os animais procriarem continuamente. Para ela, isso gera uma grande demanda por adoção, bem como a cultura do descarte. Em função disso, diz que hoje procura investir na mudança de mentalidade das pessoas que entram no grupo [Resgateiras]. “Tento embutir nas pessoas a consciência do salvamento, de acabar com o sofrimento do animal, de dar um lar com amor e carinho para eles”, conta eufórica.

No grupo existe muita parceria e algumas dificuldades, conta Evelize. “No momento o mais difícil está sendo fazer os atendimentos que dependem de dinheiro, das doações. O que está mais difícil de receber é a ração. Casinhas a gente ganha. Castração de gato a gente ganha. Mas de cachorro, não”.

Além dos itens de cuidado essencial, como alimentação, ela precisa arcar com os serviços veterinários, que têm um alto custo, visto que o material é caro e não há subsídios, como nos atendimentos e medicamentos humanos. Assim, há problemas quando o animal necessita de uma cirurgia ortopédica, por exemplo, que segundo Evelize é uma das piores. Nesses casos a falta de verba implica na amputação de algum membro ou no sacrifício do animal. Algumas vezes os próprios participantes do grupo cobrem os gastos do procedimento, mas isso nem sempre é possível em função da necessidade contínua de tais procedimentos, explica ela.

Para Graziela a maior dificuldade é a irresponsabilidade da população. Ela resgata, castra e coloca para adoção, entretanto relata que já teve problemas com animais que acabaram morrendo depois da adoção e com pessoas que não gostam de dar satisfação do animal depois de adotá-lo.

Ela explica que a doação segue alguns critérios. Quem adota precisa assinar um termo de responsabilidade, mantendo o compromisso em cuidar com zelo do animal. E Grazi sempre procura saber como está o animal nos meses seguintes.

“Sou bem exigente para doação. Se for para sair da minha casa só se for pra um lugar igual ou melhor, que cuidem bem” – Graziela Domingues

Um dos maiores problemas para Carmen é o gasto com a ração. Com ela hoje estão 4 filhotes de grande porte, esperando para serem castrados e que, de acordo com ela, consomem muito.

Nenhuma das três recebe ajuda do poder público. Evelize não aceita nem conversar a respeito disso. “Eles têm quatro anos para ajudar mas só vem quando é ano de política. Então eu não tenho envolvimento nesse meio”. Já Grazi fez alguns cadastros na prefeitura e está aguardando para ver como funciona. Enquanto espera, realiza os procedimentos necessários em clínicas que praticam aquilo que é conhecido como ‘tarifa social’. “Existem clínicas que ajudam com alguns descontos em questões de castração, algumas cirurgias de emergência. Mas nada de apoio do poder público”, explica.

Os trabalhos são mais intensos, e a necessidade de apoio maior porque, segundo Grazi, os animais resgatados são encontrados em situações bastante problemáticas. “Quando a gente resgata de rua os animais estão em estado crítico, debilitados, às vezes com sarna, leishmaniose. Mas com amor e carinho eles ficam bem”, desabafa Grazi.

Fotos: Acervos de Graziela Domingues (esquerda e direita) e Carmen Calderon (centro)

Carmen diz que por diversas vezes já pensou em parar, mas que essa tristeza dura apenas alguns minutos. “Logo volto à realidade e lembro que tenho que fazer as coisas por eles”.

Evelize entende que ser uma protetora de animais é uma missão que surgiu em seu coração, e diz que apesar das dificuldades não pensa em parar. Já Grazi ressalta que de tanto amor pelos animais que resgata fez curso de Auxiliar Veterinário, o que lhe permite cuidar melhor dos bichos e gastar menos em clínicas. “Estou estagiando. Já tenho noções básicas de algumas coisas. Não preciso ficar indo em clínicas. Só não montei uma ONG ainda porque falta verba e pessoas envolvidas para isso”.

Apesar de todo o envolvimento com a ‘causa animal’, Carmen lembra que por trás do “ser protetor” existe uma vida, com rotinas de estudo, trabalho e outras atividades. Para ela, o que os diferencia é o sentimento de amor e dedicação pelos animais: “São pessoas que respeitam a vida, e não só a existência humana. Defendem os direitos dos animais, defendem uma vida mais digna, livre do sofrimento, de maus tratos, abandono, e contra a exploração animal”.