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Quando a liderança tem nome de mulher indígena

No Brasil, apesar de lenta, é crescente a presença de mulheres indígenas em posições de liderança


O cocar é um ornamento tradicional usado pelos povos indígenas. Cada cocar é uma obra única, que reflete a identidade, o status e a história de quem o usa. Não é apenas uma peça de vestuário ou decorativa, é uma expressão visual e simbólica da cultura e da sabedoria transmitida de geração em geração. A variedade de penas, cores e formatos carrega significados relacionados à força, à proteção espiritual e à conexão com os ancestrais.


Lourdes Marques Terena se apresenta como “cacique” da Associação Híutikóti e carrega esses símbolos. Aos 62 anos, traz no cocar e na própria trajetória a força das mulheres indígenas que lutam para existir, resistir e florescer, mesmo fora da aldeia. No Brasil, apesar do progresso ainda lento, observa-se um crescimento significativo da presença de mulheres indígenas em posições de liderança, o que fortalece as vozes originárias e contribui para a valorização das culturas e direitos indígenas. É o caso da ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara (PSOL), primeira ministra indígena do país, e de outras mulheres que também atuam na política, como Inaye Lopes, vereadora no município de Antônio João, pelo PSDB.

Cacique Lourdes se prepara para iniciar a reunião mensal da associação |Foto: Marianne Amorim

A associação liderada por Lourdes é formada por mulheres que vivem em Campo Grande. A líder representa não só sua comunidade, mas uma luta coletiva por respeito, visibilidade e preservação cultural. Nascida na capital de Mato Grosso do Sul (MS) e filha da Lídia Polidorio, indígena da aldeia Cachoeirinha, no município de Miranda, Lourdes cresceu entre dois mundos: o urbano e o da aldeia.
Desde pequena, acompanhava o trabalho da mãe com a cerâmica e nas visitas frequentes à comunidade Terena, onde aprendeu a falar a língua e a preservar os costumes. “Eu cresci vendo minha mãe lutar. Ela fazia cerâmica, trabalhava na casa dos outros e, ainda assim, nunca deixou de ajudar quem vinha da aldeia para vender na cidade. A casa da minha mãe sempre foi um porto seguro prá quem precisava”, relembra.

Na Associação Híutikóti, que em terena significa “flor”, Lourdes coordena cerca de 30 mulheres indígenas que vivem na cidade e buscam manter vivas suas tradições, enquanto enfrentam as dificuldades impostas pela vida urbana e o preconceito. O nome da associação vai além da delicadeza aparente. Representa todas as mulheres híutikóti em suas diversidades comportamentais e históricas. Rosas, letônias, girassóis, cada uma com suas características.
Durante as reuniões que acontecem mensalmente na casa de Lourdes, elas produzem artesanato, como bolsas e peças tradicionais, que, além de resgatar saberes ancestrais, geram renda extra. “Nós, mulheres, temos que ser fortes, enfrentar a realidade e não deixar que a maldade do mundo nos derrube. A nossa união é o que nos fortalece”. Lourdes conta que, mesmo depois das reuniões, não deixa de cumprir um gesto de acolhimento que aprendeu desde cedo. “Ninguém sai da minha casa com fome. É assim que aprendi com minha mãe. E é isso que eu faço até hoje.”

Nós, mulheres, temos que ser fortes, enfrentar a realidade e não deixar que a maldade do mundo nos derrube. A nossa união é o que nos fortalece

Em 2024, as mulheres da associação participaram da Marcha do Marco Temporal, em Brasília – um dos maiores atos em defesa dos territórios dos povos originários. Entre os cocares, as faixas e os cantos de resistência, Lourdes fazia ecoar não só sua voz, mas a de toda comunidade que luta diariamente pelo direito de existir. Para ela, estar nesses espaços não é apenas um ato simbólico, é uma missão. Sua presença reforça que a ocupação dos espaços de decisão, seja nas ruas, nas assembleias ou nos gabinetes, é também uma forma de proteger os territórios, as culturas e as futuras gerações.
Revela que foi acompanhando as idas e vindas de sua mãe que não apenas aprendeu a língua terena, mas também cultivou um profundo respeito e valorização pela aldeia e pelo seu povo. Foi com esses saberes ancestrais e esse amor pelas raízes que ela criou sua filha, que hoje cursa medicina.
A passagem de conhecimentos e valores de mãe para filha é uma tradição nas comunidades, o que fortalece a identidade cultural e preserva as raízes ancestrais. Assim, as mulheres carregam e renovam saberes que vão desde a língua materna até as práticas cotidianas, fortalecendo vínculos afetivos e sociais.
A trajetória de Lourdes mostra que, apesar dos muitos desafios, as mulheres indígenas têm ocupado mais espaços de protagonismo social, político e econômico. Constroem redes de apoio, preservam seus idiomas e reafirmam todos os dias que suas existências são atos de resistência.

Primeira ministra indígena busca mais diversidade

A crescente presença de mulheres indígenas em cargos de liderança no Brasil marca uma mudança histórica que desafia mais de 500 anos de marginalização. Esse movimento ganhou mais visibilidade com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, atualmente liderado por Sônia Guajajara, a primeira mulher indígena a assumir um ministério no país. Em entrevista via e-mail ao Projétil, a ministra Guajajara expôs o orgulho do cargo que ocupa. “Tenho muito orgulho de ser a primeira ministra indígena do Estado na história do Brasil. Além de estar neste espaço como representante da luta dos povos indígenas pelos seus direitos, também cheguei neste cargo conhecendo na pele os desafios das mulheres indígenas brasileiras.”

No dia 11 de janeiro de 2023, Sonia Guajajara tomou posse como a primeira ministra dos Povos Indígenas do Brasil | Foto: Matheus Alves

Para ela, esse avanço representa o início de um verdadeiro aldeamento da política nacional, uma forma de levar as vozes dos povos originários para o centro das decisões do Estado. Apesar das conquistas, ela destaca que ainda há muitos obstáculos. “São mais de 500 anos de marginalização nas decisões municipais, estaduais e nacionais. Sempre foi dito para nós, mulheres indígenas, que não poderíamos protagonizar nossa própria história.”

São mais de 500 anos de marginalização nas decisões municipais, estaduais e nacionais. Sempre foi dito para nós, mulheres indígenas, que não poderíamos protagonizar nossa própria história

Os dados refletem essa desigualdade. Atualmente, o Brasil conta com três deputadas federais indígenas, uma prefeita e 38 vereadoras. Pode parecer expressivo, mas, em 2024, foram eleitos mais de 58 mil vereadores no país, o que evidencia a sub-representação dos povos indígenas, especialmente das mulheres.
No Executivo federal, há sinais de mudança: as mulheres representam, em 2025, 55,7% dos vínculos ativos no Ministério dos Povos Indígenas, um número inédito e simbólico do avanço da presença feminina indígena na administração pública. É uma estrutura que levou mais de cinco séculos para ser consolidada, e não se transforma do dia para a noite. Por isso, são fundamentais iniciativas como as da vereadora Inaye Lopes e outras tantas lideranças que continuam na luta.
Desde que assumiu o Ministério, Guajajara tem implementado políticas para ampliar o protagonismo das mulheres indígenas. Entre elas, destacam-se a realização da primeira Conferência Nacional das Mulheres Indígenas; o edital Mulheres Indígenas: Tecendo o Bem Viver, voltado a projetos liderados por mulheres; o edital Karoá, com foco na gestão socioambiental de territórios no bioma Caatinga; e a criação da Casa da Mulher Indígena, em parceria com o Ministério das Mulheres, voltada à prevenção e ao enfrentamento da violência nos territórios indígenas. “É importante que as mulheres indígenas e não indígenas sejam vistas como fundamentais para a construção de um país e não apenas como número de cota eleitoral”, reforça a ministra.

É importante que as mulheres indígenas e não indígenas sejam vistas como fundamentais para a construção de um país e não apenas como número de cota eleitoral

A atuação de Sonia, Inaye e Lourdes mostra que o caminho está sendo traçado. E, ainda que a estrada seja longa, cada passo dado por essas mulheres é também um ato de reparação histórica e de afirmação política.

A ministra Sonia Guajajara participa da 20ª edição do Acampamento Terra Livre, que teve como slogan “Nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui”. Encontro que reúne lideranças indígenas para reivindicar direitos, discutir políticas públicas e denunciar casos de violência | Foto: Diogo Zacarias
Pilar social

Pilar, segundo o dicionário, é aquilo que sustenta ou serve de base para algo não material, como uma ideia, um movimento, uma instituição ou um valor. Em sentido figurado, representa aquilo ou aquele que dá suporte, estrutura e firmeza a uma construção coletiva. E quem, senão a mulher, poderia encarnar tão plenamente esse papel? Aquela que carrega a vida no ventre é também quem sustenta, organiza e transforma o mundo ao seu redor.
Entre os povos indígenas, essa força é ancestral. As mulheres indígenas sempre exerceram papéis centrais em suas comunidades, como guardiãs do saber, da terra, da saúde e da continuidade da vida. Para a professora e antropóloga Maria Raquel Duran, elas são verdadeiros pilares de suas sociedades. Segundo ela, como fazedoras de corpos, de gentes, elas têm um papel social evidente e relevante.
Os obstáculos que as mulheres indígenas enfrentam como liderança vêm da raiz de uma sociedade sexista e preconceituosa que tradicionalmente molda o pensar da sociedade. Quando falam de caciques, políticos ou líderes, a primeira imagem que vêm à mente é, quase sempre, a de um homem branco. “Historicamente, ao contactarmos povos indígenas requeremos deles uma representação política masculina, preferencialmente, devido ao modo ocidental de compreender a política como âmbito masculino”, explica Maria Raquel.
Reforça ainda a importância da criação do Ministério dos Povos Indígenas e o destaque que a ministra Sônia ganhou. “As lideranças indígenas (masculinas e femininas) sempre existiram, como disse, mas com ensejo atual elas têm aparecido para nós, que não tínhamos este olhar atento para elas. O peso dos nomes citados na pergunta, como a ministra Sonia Guarajara (PSOL) e a vereadora Inaye Lopes Kaiowá (PSDB), é significativo, porque descortina um futuro diferente do atual, tanto nas mentes das mulheres indígenas quanto nas mentes das mulheres e homens como um todo”, conta.
“Penso que por mais que tenhamos começado este caminho de mudança, ainda é um trilhar titubeante, sempre ameaçado por retrocessos, por perdas de direitos, por agendas não inclusivas”, completa a antropóloga. Seja na política, nas associações ou nas comunidades, as mulheres indígenas reafirmam sua força, resistência e compromisso com a cultura e a justiça social. As histórias dessas mulheres indígenas entrevistadas nesta reportagem exemplificam a importância de movimentos coletivos que quebram paradigmas e abrem caminhos para as futuras gerações.
Apesar dos desafios, a presença de Lourdes, Inaye e Sônia, e outras tantas mulheres na liderança, é um sinal poderoso de que a voz indígena, sobretudo feminina, está cada vez mais forte e presente na sociedade brasileira.

 

A pintura no rosto da Cacique é feita por sua sobrinha, Maria Luiza, uma das poucas pessoas que podem realizar a grafia tradicional | Foto: Juliana Menezes
Na política local

Campo Grande é uma das capitais com maior população indígena do país. Em Mato Grosso do Sul, mais de 115 mil indígenas vivem em 79 municípios, espalhados por mais de 350 km². Apesar dessa forte presença, a representatividade política ainda é mínima. Poucos indígenas ocupam cargos de liderança em prefeituras ou câmaras municipais. Essa ausência nos espaços de decisão evidencia uma exclusão histórica. Mas como ampliar vozes, visibilidade e relevância a um grupo social que sempre foi deixado de lado?
Inaye é uma palavra carregada de significados. Que dizer liderar, aquele ou aquela que se destaca e guia com coragem e força. Não por acaso, é o nome de Inaye Lopes Kaiowá (PSDB), vereadora da cidade de Antônio João, uma das regiões mais marcadas por conflitos entre povos indígenas e fazendeiros.
Educadora do povo Kaiowá, sua presença no poder rompe silêncios históricos e desafia estruturas excludentes. Ao lado de outras lideranças femininas, Inaye integra movimentos como o Guaçu Guarani Kaiowá e a Bancada do Cocar, reafirmando que a presença de mulheres na política não é apenas uma conquista individual, mas um avanço coletivo de todo um povo. “Nós só somos vistas porque tem representante”, define.

Como vereadora, conseguiu viabilizar políticas públicas essenciais como infraestrutura escolar, abastecimento de água e saúde. Mais do que ocupar cadeiras, Inaye constrói pontes entre o poder público e as aldeias, rompendo estereótipos e reafirmando a centralidade das mulheres indígenas na luta por justiça social.