Douglas Nestor Jost Rebelato
O que é, o que é? Não usa coroa, mas age como realeza, serena, mas detalhista, não ouve bem, mas conta grandes histórias? Essa adivinhação pede uma viagem entre memórias-chave de anos da vida de uma matriarca.
Ao virar as páginas do álbum de memórias, o ano de 1945 chega com uma informação [não mais] bombástica pelo rádio: o fim da segunda guerra mundial, que traz um grande alívio entre os familiares da menina de cinco anos, que não mais precisaria puxar sua irmã gêmea para baixo das camas quando um avião sobrevoasse a pequena residência no interior gaúcho.
Mais de dez anos se passaram e em setembro de 1956, tempo em que as garotas que acabaram de florescer deveriam buscar rapidamente um marido. A menina, agora moça com 16 anos, é convidada – junto da irmã gêmea – para uma matinê dançante.
Nesta festa, um cavalheiro charmoso de calça e camisa a convida para dançar. Ambos se divertem até a menina ser levada embora, pela orelha, por um de seus familiares. O relógio acabava de bater 16h30, trinta minutos a mais do horário de moças direitas voltarem para casa. Em um curto tempo, aquele cavalheiro encantou a dama e esse encontro gerou vários frutos após um matrimônio em 1960.
Em dezembro do mesmo ano, o choro de uma pequena guria ecoava no campão gaúcho, acordando o jovem casal. A moça, agora mulher, se levanta apressada para cuidar de sua primogênita. Uma rotina que se repetiu, sem pausas, durante as cinco gestações consecutivas. A vida de casada tinha seus altos e baixos, em uma época em que mulheres eram tratadas como objetos por seus maridos e orientadas, exclusivamente, à maternidade e à família.
A mulher de 30 anos, contudo, não abaixava a cabeça para ninguém, sua língua afiada foi a principal causa das brigas entre o casal. O esposo, não gostava que o pessoal da pequena vila falasse mal de sua esposa. Na mente do senhor, para defender “a honra” de sua esposa, deveria apertar os punhos e assumir controle da situação, decidindo por ser mais rígido e controlador com a mulher. A mulher, agora esposa e mãe, entristecia com o passar dos anos. O vai e vem das estações fazia seus filhos crescerem rapidamente diante de seus olhos, às vezes, até rápido demais…
Aos 46 anos de idade, a mulher se colocava a rezar. Em uma tarde de 1986, assistia seus filhos partirem com um olhar tristonho. Uma oportunidade muito esperada havia chegado: a promessa de terras e riquezas no estado de Mato Grosso, que há quase uma década, havia separado seu território em dois. Somente sua primogênita ficou no Rio Grande do Sul para lhe fazer companhia, o que lhe deu esperança de ver seus netos nascerem e crescerem.
A virada do século foi dura para a agora senhora. Em 1997 ela perdeu seu marido em uma árdua luta contra o câncer de boca. Junto com a tristeza, veio também uma sensação de algemas se abrindo, pois ela não mais seria aconselhada a se calar diante da pequena vila. Um mar de oportunidades despontava diante da jovem senhora de 57 anos. Suas palavras ganharam força, suas vontades viraram prioridade, a rotina de seus cinco filhos foi moldada para atender seus pedidos.
Durante os anos, aproveitou sua liberdade para viajar por alguns estados do Brasil, foi Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Goiás. Percorreu praias e pontos turísticos por onde passava, aproveitando até não poder mais. Ao acabar sua ambição, a idosa de 76 anos desejava viver mais próxima de seus filhos, com o espirito livre de sempre, fez as malas e seguiu viagem para Campo Novo do Parecis, já em Mato Grosso, onde lançou sua âncora ao mar e nunca mais recolheu.
Chegar aos 80 anos não foi uma tarefa fácil, sua visão e audição envelheciam com ela, mas sua língua continuava a mesma de seus tempos de adolescente. Reuniu todos os membros da família para uma grande celebração de aniversário no início da pandemia do Covid-19, uma comemoração árdua e complexa, que apesar dos pesares trouxe um baita sorriso ao rosto da idosa-realeza. Ver seus familiares em um só lugar depois de tanto tempo foi emocionante. Na segunda-feira seguinte, todos se despediram e a serena matriarca da família ficou com a memória da celebração gravada no coração.
Ao fechar o álbum de memórias, percebe-se como um livro familiar é capaz de revelar uma grande história, história que edifica a força do matriarcado. Um legado como esse, é muitas vezes perdido em um mar de possibilidades e esquecimento, se não procurar, não será encontrado. Por que deixar essa força ser esquecida no tempo?