Qual o papel do movimento sindicalista atualmente? Greve de docentes e servidores técnicos escancaram esvaziamento da luta sindical
Texto: Julia Nogueira| Marcos Paulo Amaral | Mariana Pesquero
Fotos: Arthur Ayres
Em um auditório cercado por discussões, votações e decisões iminentes, enquanto um cenário de incerteza se desenrola, professores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) se reúnem, durante o mês de maio de 2024, para mais uma Assembleia sobre a greve. Entre os docentes atentos, um chama a atenção. Há uma luz refletindo em seu rosto, ele parece concentrado no que está fazendo. Passa o dedo de um lado para o outro, um “Match” surge na tela, seguido de um “Oi” enviado em mensagem. Na tela do celular, um app de namoro.
O homem é um dos professores da universidade e é sindicalizado. Após navegar pelo aplicativo de relacionamento, o docente embarca no mundo dos jogos, avançando de fase em fase, assim como a assembleia avançava na discussão. No auditório esvaziado, algumas pessoas estão concentradas, mas não necessariamente no debate. Esse episódio, ainda que isolado, acaba revelando um sintoma contemporâneo que reflete em um movimento sindical atual disperso e enfraquecido.
O cientista social e coordenador do curso de Ciências Sociais da UFMS, Ricardo Luiz, explica que a força dos sindicatos anos atrás residia em sua capacidade de representar, congregar e mobilizar a classe trabalhadora. “Durante certo tempo da história do capitalismo moderno, o mundo do trabalho reunia as pessoas de maneira mais fixa, tanto nas fábricas, por exemplo, quanto através de vínculos trabalhistas mais estáveis”, explica. Essa situação está no documentário Chão de Fábrica, do diretor Renato Tapajós, lançado em 2018 e veiculado pelo Cine Greve, programação do curso de Audiovisual da UFMS. O documentário narra a história do Novo Sindicalismo Brasileiro, apresentando um panorama histórico sobre as lutas sindicais e políticas dos trabalhadores. A “grande greve dos trabalhadores do ABC Paulista” é um exemplo, visto que foi uma das maiores, se não a maior, greve do movimento trabalhista brasileiro. Não à toa, um dos maiores expoentes daquela greve vive, hoje, seu terceiro mandato como Presidente da República.
Uma mobilização que fez com que milhares de pessoas se dispusessem a lutar pelos seus direitos é algo grandioso e que não vemos no cenário atual brasileiro diante da greve das instituições federais de ensino, em 2024. Apesar de não ser a mesma classe que pauta a greve em questão, é possível fazer uma conexão entre aquela “grande greve dos trabalhadores do ABC Paulista” com a perda de força do movimento sindicalista nos dias de hoje.
“A greve é um grito de resistência à precarização e às tentativas de naturalizá-la”
Ricardo explica que a greve é o exercício de um direito, um meio para legitimar questões e objetivos, partindo dos mais variados interesses. É um instrumento de luta que atravessa o século e abrange todas as classes trabalhadoras. “A greve é um grito de resistência à precarização e às tentativas de naturalizá-la. Se trata de um esforço de luta por um salário digno e por condições dignas de trabalho. Dignidade não é privilégio, é parte do que nos define como humanos”, esclarece o professor. Num contexto que pode ser caracterizado como confuso e ambíguo, seu papel e sua relevância enquanto mecanismo de transformação social são colocados em debate. Tendo isso em vista, é importante o questionamento: qual o lugar da greve no Brasil atual?

Para Sheila Denize Barbosa, membra da diretoria executiva da Associação dos Docentes da UFMS (Adufms), a resposta é simples: a greve representa uma retomada da democracia. Com o histórico de governos autoritários e repressivos, a possibilidade de debate pela busca de direitos já é um avanço. “Só o espaço criado para debater, para falar sobre a importância, trazer argumentos favoráveis ou contrários, isso é importante, é a retomada da democracia. A gente estava vendo isso sendo sufocado pela sociedade de uma forma geral, criminalizado principalmente”, relata.
Sheila explica que é justamente essa pressão realizada pelo movimento grevista a responsável pela garantia de direitos nas universidades. Apesar disso, a escolha pela adesão ou não à paralisação é individual, e, historicamente, sempre dividiu opiniões entre os docentes. “A gente sempre teve uma adesão de alguns cursos paralisando e outros não, então fica muito mais a critério. A categoria deflagrou em assembleia com professores filiados ou não para participarem, e decidiu pela greve. Tem que ser uma decisão acatada pela categoria, mas isso historicamente não acontece. A greve não atinge 100% dos docentes”, explica. Dos 1790 docentes da UFMS, apenas 10% estavam presentes na assembleia para a discussão sobre a greve, de forma online ou presencial.
“Acham que o movimento sindical está ali para atrapalhar, pelo contrário, a gente está aqui para ajudar”
Segundo a diretora, isso ocorre pois a grande maioria dos professores da UFMS são recém concursados e, por isso, nunca participaram de um movimento grevista e não sabem como agir diante dele. Analisando um passado não tão distante, encontramos governos repressivos que descredibilizaram e, até mesmo, criminalizaram o sindicalismo, contribuindo para seu enfraquecimento nessa nova geração. “Grande parte das conquistas dos trabalhadores vem do movimento sindical e as pessoas não conseguem entender essas questões. Acham que o movimento sindical está ali para atrapalhar, pelo contrário, a gente está aqui para ajudar”, afirma Sheila. Essas questões contribuem para o sentimento de interrogação que assombra a comunidade acadêmica, além do comprometimento do período letivo.
Esse quadro de incerteza, diante da atual situação, reflete a conjuntura atual do sindicalismo: os sindicatos, em paralelo com as transformações sociais, passam por um momento de mudança, em que os indivíduos buscam se identificar e serem representados de maneiras mais diversas. “Os sujeitos contemporâneos se veem diante da difícil, porém necessária, tarefa de inventar formas de representação, organização e mobilização, capazes de congregar uma diversidade de experiências, com base numa abertura ao novo e à diferença em constante transformação”, afirma Ricardo Luiz.
Além da docência
Adriane Maier é técnica de enfermagem, trabalha na UFMS há 22 anos e aderiu à greve dos técnicos e servidores desde seu início. Ela explica que a escolha pela adesão vem da ideia de que o movimento é o único instrumento que os servidores dispõem para terem suas demandas atendidas. Na verdade, a greve é o último instrumento de reivindicação utilizado, quando todas as outras tentativas de diálogo com o governo não trouxeram resultado. “Quando estoura a greve é porque a gente já tentou um milhão de coisas antes e não conseguimos nada. A greve é o último recurso que a gente tem, o último recurso que a gente encontra como servidor, não é uma coisa que a gente queira fazer”, afirma Adriane.
Aliada ao sindicalismo desde o começo de sua carreira, a primeira coisa que Adriane fez ao assumir sua posse como técnica foi se filiar ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação Fundação UFMS (Sista) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (IFMS), órgão que, na sua opinião, a representa dentro da Universidade. Ela conta que, desde o início do movimento trabalhista, o sindicalismo em nível técnico sempre se mostrou mais forte do que o de docentes, o que justifica, muitas vezes, a baixa participação de professores nas assembléias e debates. “O professor não tem conhecimento de base para a questão sindical, ele tem conhecimento na área de trabalho dele, mas não tem formação sindical”, explica.

A imagem que vemos hoje é a de assembleias vazias e que não são levadas a sério, contribuindo para o enfraquecimento do movimento grevista e, consequentemente, para o movimento sindical como um todo. Lucivaldo Alves dos Santos, coordenador geral do Sista, entende que esse cenário é fruto de um problema: a difícil mobilização dos trabalhadores, advinda de uma dificuldade de comunicar a necessidade de fazer greve. “Agora nós chegamos naquele problema de como fazer a transmissão dessa necessidade, para que as pessoas entendam que o papel do sindicato é defendê-los”, conta.
Lucivaldo afirma com tranquilidade que os docentes das universidades têm grande responsabilidade pelo enfraquecimento do movimento grevista. “A falta de adesão dos professores sempre atrapalhou. A geração de docentes que está aí é na faixa dos 30, 35, 40 anos, faz com que eles não se mobilizem, não acreditem muito”. Os técnicos entraram em greve no dia 13 de março, já os professores, no dia 1º de maio.

Como dito por Sheila Denize, Lucivaldo reforça a noção de que os servidores atuais não experienciaram a vivência da greve, ainda mais levando em conta uma realidade onde grande parte deles trabalha de forma remota. Tendo em vista que os trabalhadores parecem ter perdido o engajamento nas questões sindicais, o coordenador do Sista vê a participação atual do movimento sob outra perspectiva, como uma conquista. “Diante do cenário que nós vivemos hoje, nós estamos conseguindo fazer assembleias com 200 pessoas. Nós estávamos fazendo assembleias antes da greve com 25, 30 pessoas. Então, apesar de todo mundo imaginar que é pequeno, para nós não é pequeno”.
“As pessoas precisam ocupar as ruas novamente sem medo de serem perseguidas”
Sheila ainda acredita que o próximo passo é continuar resistindo. “É preciso que os trabalhadores voltem a se organizar, voltem com as suas bases para fortalecer o movimento sindical, correr atrás dos direitos. As pessoas precisam ocupar as ruas novamente sem medo de serem perseguidas”, declara. A representante da Adufms explica que é preciso aproveitar o momento e ocupar o espaço que os docentes têm, por direito, para negociar. Assim, revertendo, de acordo com ela, o passado de repressão, entendendo que, mesmo não tendo grandes avanços, os docentes estão sendo recebidos para um diálogo.
A nova geração
O avanço da tecnologia fez com que a sociedade passasse a se posicionar sobre diversas pautas através de telas de celular ou computador. Mobilizações nas redes sociais, compartilhamentos de movimentos, discussões em comentários de vídeos, textos e fotos, parecem ter reduzido a vontade dessa nova geração de ir às ruas.
“O ser humano está muito individualista, prefere fazer a luta sozinho em vez de fazer a luta coletiva e se juntar, socializando forças”
Nessa onda de mudanças, a maneira como o indivíduo se relaciona com a sociedade e realiza seu papel como membro dela, também se transformou. A busca por direitos e representação tem ocupado cada vez mais a internet. Enquanto mobilizações são organizadas nas redes sociais, assembleias encontram-se esvaziadas e movimentos, na prática, têm pouca adesão. “Hoje eu não preciso me juntar com mais ninguém, eu preciso somente de um teclado, um monitor e eu vou para rede social me defender”, afirma Lucivaldo. Para ele, o que falta é pensar no coletivo. “O ser humano está muito individualista, prefere fazer a luta sozinho em vez de fazer a luta coletiva e se juntar, socializando forças”, opina.
A velha guarda, como é chamado o pequeno grupo de pessoas que administra os sindicatos atualmente, é considerada, por muitos, desatualizada, e sua força obsoleta. Por esse motivo, a busca por grupos mais representativos, como coletivos feministas e LGBTQIAPN+, tem aumentado, visto que estão mais ativos nas redes sociais e atingem com maior facilidade a comunidade acadêmica, o que chama a atenção da juventude sedenta por ir à luta.
A necessidade dos sindicatos atuais se reinventarem é real e urgente. A história já construída fez com que o movimento permanecesse vivo até hoje, mas não parece ser o suficiente para manter acesa a alma do sindicalismo contemporâneo. É o que Lucivaldo acredita. “Se o movimento não se reinventar, daqui a 10 anos ele entra em extinção por completo, e isso vai afetar a nossa busca por direitos”.
