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Reportagem 104

Rezei sua oração, até encontrar a minha

As diferentes religiões e suas influências na identidade pessoal de fiéis e praticantes


Entre sua fé e a busca pela religião que contemple suas crenças, ocorrem muitos questionamentos, certezas e incertezas, crenças e descrenças. Essas questões se intensificam quando você busca nessa religião um elemento de identificação pessoal, uma forma de pertencimento, um sentido para sua existência.

A construção de uma identidade religiosa é recheada de experiências individuais e complexas. Pode estar de acordo com tradições familiares, vivências culturais e até mesmo ser influenciada por pensamentos políticos. Muitas vezes, a sociedade impõe normas, como ser cristão, para que a crença pessoal de um indivíduo faça sentido no coletivo local, regional e nacional. Seguir ou não estas normas impostas, em muitos casos, pode ser uma decisão para toda vida. Identificar-se com símbolos religiosos ou até mesmo trilhar caminhos próprios de conexão com o divino está ligado à liberdade que muitos procuram para pertencer e se entender.

Muitas biografias de perfis como no Instagram costumam vir acompanhadas de “Cristã”, “Umbandista”, salmos bíblicos, entre outras maneiras de indicar a quem acessa, que aquela pessoa pertence a uma determinada religião.

Criado em um lar católico, Felipe Farias, 27 anos, chegou a atuar como coroinha durante a infância, seguindo à risca os rituais da Igreja. “Era quase um fanático”, conta. Por muito tempo, o catolicismo parecia parte indissociável de sua identidade, até que começaram a surgir dúvidas: primeiro silenciosas, depois inevitáveis. “Estar nos bastidores da igreja me fez perceber conflitos internos e contradições entre a pregação e a prática,” lembra.

A convivência com líderes religiosos e o contato direto com o cotidiano da igreja revelaram tensões interpessoais que o fizeram questionar não só os dogmas da religião, mas também o espaço que ele ocupava dentro dela. Ainda jovem, começou a perceber que a forma como queria buscar a Deus não encontrava mais eco nas tradições que o cercavam. O afastamento foi rápido, mas consciente. E não aconteceu sozinho: sua mãe, professora de crisma e presença constante no altar, também se sentia desconectada.

Juntos, mãe e filho deixaram o catolicismo sem saber ao certo para onde ir. “Paramos e pensamos: e agora?”. Apesar da formação cristã, ambos já haviam vivenciado fenômenos espirituais em casa, como ouvir e ver espíritos. Eram experiências naturais para eles, mas incompatíveis com os ensinamentos da Igreja Católica, que repreendia tais eventos sobrenaturais.

Aproximar-se da Umbanda foi, a princípio, uma jornada solitária para a mãe. Ela passou a frequentar giras e rapidamente foi convidada a integrar a corrente mediúnica. Ele, no entanto, ainda mantinha certa distância. “Eu tinha medo, mesmo sentindo curiosidade.”

O ponto de virada veio após assistir a uma gira. “Foi uma conexão imediata. Aquilo fazia sentido. Explicava o que eu sentia desde sempre. Foi um choque positivo.”

Com o tempo, o sentimento de pertencimento só aumentou. Em uma das giras, uma entidade o convidou a iniciar o desenvolvimento mediúnico, reforçando o elo com a mãe. “Filho de peixe, peixinho é”, disse o guia, ao selar o chamado que ele já sentia.

Ao contrário do que poderia imaginar, não enfrentou preconceito direto ao deixar o catolicismo. “As pessoas perguntavam, mas nunca falamos abertamente sobre a Umbanda. Só quem era próximo sabia.” Hoje, mais maduro e firme em sua fé, reconhece que a religião ainda é um forte marcador social. “Infelizmente, somos rotulados pela nossa fé. Se tivéssemos contado na época que adotamos a Umbanda, provavelmente pensariam que era um desvio de conduta.”

Felipe Farias segurando suas guias, colares que na Umbanda representam a conexão entre o médium e as entidades divinas chamadas de Orixás | Foto: Gabrielle Lima

Para ele, a mudança representou mais do que uma simples troca de crença. Foi o início de um reencontro consigo mesmo. “A Umbanda me ensinou a ser mais gentil, mais acolhedor. Passei a compreender por que via e ouvia coisas que outros não viam. Aquilo que era estranho aos olhos dos outros passou a fazer sentido.”

Hoje, acredita que sua fé está alinhada com sua identidade e também com sua profissão – que, como ele mesmo diz -, também tem como missão servir ao próximo. “A partir da Umbanda, minha vida passou a ter um sentido mais claro. Entendi que Deus não escreve nada errado.”

A crença de Felipe não teve o mesmo impacto como na vida de Bruno Otávio. O jovem de 18 anos veio de um lar com pessoas de diversas religiões. Aos 14 anos, a Umbanda chamou sua atenção, e logo entrou na corrente de um terreiro. De acordo com  o jovem, a religião o ajudou em múltiplos momentos . “Como entrei na adolescência/pré-adolescência, tive ajuda para organizar minhas emoções no geral, na depressão. Além de abrir minha cabeça, me ajudou a distinguir o que é bom e ruim para mim. Como se não fosse a religião em si me ajudando, mas a fé em mim mesmo, que a Umbanda me ajudou a construir”.

Durante a pandemia, a religião o ajudou a enxergar sua importância e qual o sentido de estar no mundo, sua autoestima e valorização pessoal.

Na adolescência, Bruno passou por muitos questionamentos. “Sempre tive muitos pensamentos agnósticos e dúvidas, mas por conta da criação e do mundo como ele é, sempre foquei mais na minha fé do que nesses ‘pensamentos intrusivos da fé’”.

Segundo o jovem, ele sempre foi muito racional. Mesmo estudando a Umbanda e outras religiões, gostava de entender, principalmente, a parte histórica e sempre via a religião como um “produto” de uma geopolítica bagunçada e questionável.

Aos 17 anos, deixou de ter fé no que cultuava antes. Não só da Umbanda, mas de qualquer religião que se apoie em divindades, entidades, santos, anjos ou demônios. Bruno se identificou ateu.

No ateísmo, se sentiu “no seu lugar”, pois não era pressionado a ter fé em algo maior. “Ao contar para as pessoas que me converti, houve uma pressão ainda maior para eu crer em algo, não de forma pessoal ou sentimental, mas como se a fé e crer em algo fossem obrigatórios, além de ter que explicar o motivo pelo qual me tornei ateu”.

As pessoas ainda tentam convertê-lo, fazendo com que “olhe com bons olhos” para outras religiões, em especial o cristianismo. “Sinto que a minha identidade pessoal apenas evolui. Buscar novas religiões me fez ver diferentes opiniões, o que me ajudou no meio social e aceitar outras formas de pensamento. “

Diferente de Bruno que passou por diferentes crenças e religiões, Letícia Campos Dias, 16 anos, nasceu e cresceu na fé católica. De início, ia à missa em alguns domingos e em outros não. Não entendia o que era o catolicismo e mal participava dos eventos da paróquia que frequentava. Certo dia, recebeu um convite para ir ao “Domingo Jovem”, evento promovido pela paróquia. “Foi aí que tudo mudou. Eu senti o Espírito Santo pela primeira vez e nunca mais fui a mesma. Desde então, venho me esforçando cada vez mais para estar em comunhão com Cristo e com a igreja.”

Letícia Campos ora em companhia de suas amigas aos domingos, e acredita poder encontrar força em Cristo | Foto: Gabrielle Lima

De acordo com a adolescente, o catolicismo influencia em tudo na sua vida. Desde roupas que decide usar até opiniões sobre assuntos delicados, como o aborto.

Letícia ressaltou que a religião a ensina a ter valores e a praticar atos de caridade. “Assim como o corpo sem a alma é morto, também a fé sem obras é morta (Tiago 2:26)”. “Acredito que nós começamos a enxergar o mundo como Cristo enxergou. Nosso dever é fazer sempre o que ele faria. Devemos ser o reflexo Dele e fazer o que está na Bíblia.”

Letícia percebe que na maioria dos locais que frequenta, sente que sua identificação religiosa é respeitada e que dificilmente escuta algum comentário ofensivo. Porém, já ouviu frases como: “vocês adoram imagens”. Nessas ocasiões, ela sempre tenta explicar o que sua religião prega.

A igreja organiza acampamentos com o objetivo de fortalecer a conexão entre os jovens e a religião | Foto: Gabrielle Lima

A visão de Letícia sobre o que é “certo e errado”, ”bem e mal” tem grande influência da sua religião. “Procuro seguir aquilo que Cristo nos deixou, em especial os 10 Mandamentos, e estar em comunhão com a doutrina da Igreja Católica. Isso seria o certo dentro do catolicismo. Ir contra o que citei anteriormente é errado. Em relação ao bem e ao mal, é algo muito ‘aberto’, e não temos autoridade de julgar algo ou alguém como do bem ou do mal, em meu ponto de vista,” ensina.

Assim como Letícia, Rafaela Teodoro, 24 anos, acredita em Deus como um ser poderoso e único. A jovem frequenta o culto de uma a três vezes por semana. Há 20 anos, se identifica como evangélica. E não foi influência familiar. Inicialmente, ia acompanhada de uma vizinha, e na adolescência, apenas ela possuía essa crença na família. Só mais tarde, sua mãe se converteu à religião evangélica.

Atualmente, a jovem faz parte do ministério de louvor, na parte musical da igreja e é professora de adolescentes na escola bíblica. Costuma manifestar sua religião até mesmo pelas redes sociais. No tiktok, posta algumas reflexões, interpretações de passagens bíblicas e louvores. “As postagens são algo sem compromisso, mas vejo como uma oportunidade de propagar a minha crença para quem tem interesse”.

Em geral, as vestimentas de pessoas evangélicas são mais longas. Rafaela disse não saber o quanto esse “costume” influenciou no seu modo de vestir. De acordo com ela, fica difícil identificar onde começa seu gosto pessoal e o que faz parte do seu princípio. “Nunca me senti bem com roupas que, de alguma forma, deixam meu corpo exposto, o que também é um princípio bíblico. Porém, não gosto de roupas longas ou neutras, o que vai na contramão do esperado, por influência”.

Desde criança, a religião passou a fazer parte da sua identidade. Rafaela destacou que, nessa fase, percebeu que sentia algo diferente quando estava na igreja, e que amava o Jesus que foi apresentado à ela, sempre querendo compartilhar essa experiência com seus amigos.

Desde criança, a religião passou a fazer parte da sua identidade. Rafaela destacou que, nessa fase, percebeu que sentia algo diferente quando estava na igreja, e que amava o Jesus que foi apresentado à ela, sempre querendo compartilhar essa experiência com seus amigos

Destaca que a religião em sua vida cotidiana e em sua história pessoal é algo fundamental, e que suas principais características, sua conduta e seu caráter estão sendo constantemente moldados pelo que aprende ao ler a bíblia. “Sou exatamente essa Rafaela de hoje por sempre pensar ‘O que Jesus faria nesse momento?’, ‘O que ele pensaria?’, ‘Como posso não envergonhá-lo nessa situação?’” A jovem considera o evangelho, não a religião ou igreja, como algo essencial em sua vida.

Em geral, os fiéis e praticantes de religiões distintas, ou mesmo entre aqueles cuja fé não é em um ser divino, nota-se pelo menos um ponto em comum: em algum momento, o impacto da crença é muito profundo. É como se a fé, a crença mais profunda das pessoas, atuasse como parte essencial da construção da sua identidade individual. Ela age desde a sensação de pertencimento à uma religião até a descoberta e a identificação com outra.

Relatos como de Bruno que passou por processo intenso para se reconhecer em sua própria fé; do ex-coroinha, Felipe, que experimentou diferentes fés e se encontrou na Umbanda; Rafaela, evangélica desde a infância; Letícia, cujas palavras apontam como a crença religiosa molda suas escolhas; mostram como a crença ou descrença impactam intensamente na nossa forma de agir, falar, pensar, se conectar, se posicionar e se reconhecer.

Essas narrativas são algumas  formas de enxergar como  as religiões – suas crenças, paradigmas, proposições, normas, exigências – se expandem e atravessam barreiras, sem se limitarem a orações, rezas ou espaços de culto. As crenças e princípios religiosos parecem ter uma enorme influência na construção e na percepção da própria identidade e existência no mundo. Muitas vezes, é na religião que os fiéis encontram as respostas que tanto procuram e fazem sanar as dúvidas da vida. Seja por meio da presença ativa ou no silêncio interior, a religiosidade molda comportamentos e consola diante das dificuldades.