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Entrevista

“Sem a escola, a universidade é um delírio”


Para entender melhor o contexto da educação pública no Brasil e o consequente apagão docente, o Projétil conversou com a cientista social e professora da USP Maria Ribeiro, que pesquisa a condição docente, especialmente de professoras. Ela é integrante do grupo executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas e do conselho do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos.

1 – Como você define “apagão docente” nas universidades federais brasileiras? Quais são os principais indicadores que caracterizam essa situação?

“Apagão” faz menção à crise de energia elétrica que nos acometeu, como território brasileiro, no início dos anos 2000. Evidente que, como sociedade, nada nos acomete, assim, simplesmente. Um raio nos acomete, mas nunca um “apagão”. Todos os nossos problemas sociais são de responsabilidade coletiva e, em especial, da gestão pública que é quem legisla, regulamenta e fiscaliza, institucionalmente, a coisa comum. Já “apagão docente” é a iminência de um colapso de outra ordem, ainda que com causas parecidas, e que põe em risco a figura da pessoa docente na cena do ensino-aprendizagem. Estão se apagando os corpos docentes porque a figura da pessoa professora têm sido, historicamente, pré-fabricada; é aquela que recebe e conclui a demanda de transmissão. Tudo dito, e somos ainda mal-remuneradas; desabastecidas de recursos para desenvolvimento das aulas; pouco reconhecidas pela comunidade escolar; assediadas por colegas, discentes, pela gestão escolar e pelas famílias, além de nossas carreiras terem sido tornadas sinônimos de uma vida cansada, empobrecida e isolada. Se a figura da pessoa professora é como eu desenho, quem haverá de se formar para dar aula nas universidades federais brasileiras? Se a docência é tornada um drama do qual devemos fugir, sem pessoas que nos possam assentar o caminho do conhecimento, de que maneira manteremos nutrido o hábito de formular perguntas diante do mundo? É a escola, em tese, quem nos ensina a perguntar. Sem a escola, a universidade é um delírio. Em relação aos indicadores, identificamos déficit de docentes nos ensinos público de níveis básico e médio; estudantes de licenciatura abandonando os cursos de ensino superior; além da cultura do assédio no ambiente acadêmico.

2 – Quais fatores influenciam a alta taxa de desistência (58%) dos alunos de licenciatura, conforme o Censo da Educação Superior de 2022?

Houve uma época quando o magistério — bem como o direito e a medicina, por exemplo — era considerado um cargo de alta desinência social. Com isso, quero dizer que diante da frase “minha filha é professora”, grande parte das pessoas tendia a reconhecer, naquela família, algum grau de distinção. Quando nós lemos Paulo Freire e bell hooks, para citar apenas dois nomes de docentes que me ajudam a organizar o pensamento, nós podemos compreender porque, um dia, a carreira docente foi considerada o ponto de culminância na biografia de alguém. Paulo Freire, já em 1977, escreveu assim. “Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a”. Ora. Hoje, em 2024, as ideias de “trabalho difícil” foram atualizadas. Um ‘‘trabalho difícil’’ é, em primeiro lugar, um trabalho extenuante que se estende por três ou quatro jornadas. Uma figura docente não pode se comprometer com uma postura crítica, sistemática porque sequer pode pensar seus pensamentos em voz alta, sobretudo, quando pensar pensamentos desorganizadores do status quo. Pense aí como iremos tratar do regime militar-ditatorial que manteve o Brasil em estado de exceção política no interior das escolas cívico-militares? Por que raios uma pessoa, no Brasil, em estado de escolha da sua carreira acadêmica, haverá de escolher se tornar uma professora mal-remunerada e mal-reconhecida? As “ideologias de dominação”, como escreve hooks em “Ensinando Comunidade”, não dormem. Elas se mantêm operantes exatamente ali onde estão instalados os nossos contra-dispositivos de enfrentamento das violências. Ameaçar o desejo de que pessoas se tornem professoras significa ameaçar o senso de comunidade; a ideia de solidariedade e a esperança.

3- O aumento das matrículas em cursos de licenciatura a distância (81% em 2022) tem sido uma solução para ampliar o acesso à educação, a qualidade desses cursos impacta o apagão docente?

Seria possível sustentar que, no Brasil, o aumento das matrículas em cursos de licenciatura à distância — que são dependentes de acesso à internet, de dispositivos eletrônicos, de fonte de energia — ampliam o acesso à educação? Então, para mim, a resposta é não. As pessoas que menos têm acesso são as que permanecem com menos acesso, apesar da educação à distância. O crescimento dos territórios cobertos pela tecnologia não erradicou o analfabetismo. E isso é importante que seja considerado na ocasião da avaliação dos nossos cronogramas para a liberdade, ainda que pareça uma afirmação definitiva ou drástica demais. Nem sempre o aumento estatístico de algo que nos parece “bom” é um aumento estatístico para “todas as pessoas”. Pessoas idosas, nordestinas, das cores preta ou parda são as menos alfabetizadas; e o fato do diagnóstico ser mais ou menos óbvio, dedutível, é que é o problema. Em grande parte das cenas, as coisas melhoram para pessoas brancas e para as pessoas de cor mais próximas das brancas. Tem isso ainda. O racismo. Homens brancos cisgêneros. O cissexismo, o capacitismo, a neurotipia, o etarismo etc. Em grande parte das cenas também, todos os piores índices socioeconômicos alcançam, primeiro, as pessoas que sempre são alcançadas primeiro. No Brasil, desde o século XVI. Daí, como nos poderiam ajudar as pessoas docentes? As pessoas docentes podem nos ajudar informando as pessoas alunas, que o mundo é uma organização discursiva e que toda pessoa pode se separar das suas designações de nascimento, seja de raça, gênero, credo ou qualquer uma.

4 – Como o assédio moral e a precarização das condições de trabalho contribuem para o afastamento de professores/as? Quais políticas ou intervenções são necessárias para combater esses problemas e melhorar a retenção de docentes?

“Assédio moral” e “precarização das condições de trabalho” não podem significar circunstâncias saudáveis ou desejosas. Se psiquicamente saudável, não desejo ser moralmente assediada nem ver meu trabalho precarizado. Então, vou responder de maneira figurada que é também um esforço poético para, como escreveu Michel Foucault, “tornar visível o visível”. O assédio é como ricochete. A arma está apontada na sua direção, a todo tempo, mas parece que desvia. E outro dia, você acorda e se prepara para o trabalho. A arma está apontada na sua direção, a todo tempo, e, outra vez, parece que desvia. Mas está lá. A arma. Apontada. Na sua direção. Parece que desvia, mas está lá, pendente, reluzente, tanto está que balança. Na direção da sua vagina, na direção do seu binder, na direção do seu território de moradia, na direção da ficção dermatológica anunciada pela sua epiderme. Eu, Maria, estava grávida e negra ou ao contrário, recém-doutora, quando a coordenadora do grupo de estudos do qual eu fazia parte sugeriu que eu fosse limpar bunda de menino, sim, que pesquisa não era tarefa para “comadres”. O termo entre aspas é dela. Eu estava organizando reuniões e fluxos quando uma jornalista branca decidiu que podia se reunir comigo do ônibus, toda vez e todo dia de reunião, porque a atenção que eu merecia só cabia na distância entre a catraca e o desembarque. Eu estava lúcida quando fizeram que eu me sentisse faltosa, pouco estudada, má oradora, despreparada, insegura. Estava endereçando uma crítica a uma pesquisa quando fui acusada de rispidez — para a gente negra, umas raivas são congênitas. Bem da verdade, quando umas gentes como eu simplesmente estão, isso é já coisa suficiente para autorizar gentes outras a, esparramando-se, manchar com sujeira racista e misógina a nossa roupa limpa. Isso tudo para dizer que não precisamos “reter docentes”. Precisamos cuidar para que as pessoas sejam exibidas à beleza dos atos de conhecimento. Para que as pessoas se vejam admiradas por tudo aquilo que pode uma experiência de ensino-aprendizagem; e que, no limite, transforma a professora; o aluno; a diretora; a família; o comércio; a governança pública; a assistência ao parto; à pessoa usuária de substâncias; a navegação pelas mídias sociais digitais; as práticas religiosas etc.