Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal, levanto-me despertado pelos raios de sol que passam pela janela de madeira e vidro, que se abre para dentro iluminando a colorida casa de tijolinhos. Um café passado no coador de pano e uma chipa recém-saída do forno, visto a calça de alfaiataria, sapatos de couro e camisa social com o clássico pequeno pente fino e uma caneta no bolso, compondo o traje de mais um ferroviário responsável pela conferência de bagagem no trem que une as terras alagáveis do oeste ao centro econômico brasileiro no estado de São Paulo. No rádio toca uma moda de viola das boas – penso ser Tião Carreiro, sempre é ele – que inspira um beijo na mulher que preparou o café e a chipa, e um afago nas crianças, que também já devem se levantar para o colégio. É hora da despedida rumo a mais um dia de trabalho na estação.
Pelo caminho, tantas outras casas coloridas, tantas outras janelas de madeira, tantos outros ferroviários saindo com o pente fino no bolso pelas ruas de paralelepípedos que levam à estação da ferrovia. Antes de chegar ao armazém, uma parada no escritório da Noroeste do Brasil para bater o ponto, encontrar os colegas, perguntar o resultado do jogo do Operário no dia anterior e comentar como o vento sul está trazendo o frio, e que por isso é melhor já botar o poncho no sol no dia seguinte. Antes mesmo que possa dirigir-me ao armazém de bagagens, já se escuta o apito distante que anuncia a chegada da Maria Fumaça.
São poucos metros entre estação e armazém, por onde se cruza de um tudo: viajantes bem trajados, vendedores ambulantes e bolivianos e paraguaios a conversar em outras línguas e dialetos. Dividem a via em certo nível de harmonia os automóveis, pedestres e até algumas charretes, num vaivém que dá ares de metrópole a essa capital tão nova. Olhando para trás, não se pode negar: foi o trem quem trouxe a modernidade para estas terras. E por falar no trem, lá vem ele…
Pela porta dos fundos do armazém entra o som cada vez mais alto. Os trilhos já começam a vibrar, assim como o público, que não espera a chegada da locomotiva somente pela sua utilidade – é quase que um evento, que já ganhou até música, pintura, fotografia, filmagens… Tudo mais que merecido! Assim como uma penca de colegas, inclino-me para observar a aproximação do trem que já passa pela rotunda, num tic-tac cada vez mais lento que anuncia o momento de pegar as malas que vão para o vagão de bagagens.
Encaixadas uma a uma, organizadas por destino, tamanho e peso, sempre deixam no ar uma indagação, de para onde vão, quais memórias carregam, que histórias há por trás de cada tralha. Não chego nem a ver os rostos da maioria dos proprietários, são só peças retangulares em couro, madeira e metal, identificadas por etiquetas. Bem, talvez não sejam só isso, quando colocadas no vagão do trem se tornam compartimentos que guardam pedaços da vida de cada viajante que atravessa o Pantanal.
Apita o trem, giram as rodas, rangem os trilhos, abanam as mãos pelas janelas, choram as mães na plataforma e correm as crianças a competir com a locomotiva que parte para mais uma viagem rumo a Bauru, bem em tempo do intervalo para almoço e quem sabe até uma sesta, já que é só mais uma semana tranquila e há muito pouco o que se fazer. Tranquila até demais talvez… Desde a divisão do estado já se nota a queda nas viagens, já são cada vez mais carros na rua, ônibus mais velozes, e vez ou outra um avião corta o céu – ouvi dizer até que quem antes observava a partida do trem agora vai pros lados da saída para Terenos, vê-los decolar e pousar.
Uma sesta, duas, três, todas as tardes, todos os dias, cada vez menos trabalho… Passam meses, anos e o tic-tac foi se apagando, sumindo no ar como a fumaça da Maria. A terra cobrindo os trilhos, o asfalto tomando conta, a rodoviária cresceu tanto que precisou mudar de lugar. Trem de bagagem, de passageiros, de turismo, virou trem de memória. Ponto de parada virou ponto de turismo, plataforma virou cultural, armazém virou cultural, profissão ferroviário virou lembrança. Hoje acordo da sesta e resta caminhar pelos trilhos, admirar a rotunda vazia, esperar o pôr do sol por trás da orla ferroviária. Mas juro de pé junto que, vez ou outra, ainda se escuta o apito, o tic-tac, a vibração e o coração batendo desigual, com a lembrança do que um dia foi o velho trem que cruzava o coração do Brasil, sobre todos os trilhos da terra.