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Entrevista

Somos nó-s?

Jovens e idosos destacam afinidades e discordâncias em temas como sexualidade, afetos e diversidade durante roda de conversa com a equipe do Projétil

Entrevista: Anna Luiza Petermann | Beatriz Brites | Lara Bellini | Luisa Santos


“A gente foi vocês, a gente sonhou como vocês”, conta a espoleta e bem-humorada Terezinha de Jesus Garcia, 73, e com menos altura do que o tamanho do nome [segundo ela] se identifica como fora da curva e reconhece que não consegue ser anônima, nunca conseguiu. Ocupar os espaços e gerenciá-los sempre fez parte da sua vida. Nasceu em 1948, na cidade de Bela Vista, em uma fazenda, e dividiu sua infância com mais quatro irmãs, todas mulheres, que estavam designadas, segundo os pais, a se casarem e terem filhos, condição que Terezinha não aceitava. Afinal, se enquadrar e seguir padrões não estava em seus planos.

Se o tema é se enquadrar, Afropaty entra em cena. A fluida e doce artista compartilha que os caminhos não foram fáceis até aqui, foram 18 anos existindo através do olhar da sua família, que é conservadora e cristã. Aos 22 anos, caminha fora da bolha, com sua autoria, sua coragem e suas multividas e afirma que não se encaixa em um rótulo, e que isso confunde as pessoas. “Tem gente que me chama de Afropaty, tem gente que me chama pelo meu nome de batismo, então é isso. Eu sou fluída. Sempre”, completa. A estudante de enfermagem, que também é dançarina, DJ e a há um ano e meio se monta, diz que a arte sempre foi visita constante e deseja que seja permanente. “A gente que é LGBT sempre tem que precisar de um outro lado, então ou a gente vai atrás de uma arte, ou a gente vai para os estudos, então a minha base sempre foi ir atrás dos estudos, mas nunca deixei a arte de lado”.

Terezinha, por algum motivo, seguiu trilhos pré determinados por outro alguém, anos depois, se casou, mudou para outro estado, teve quatro filhas e foi embora, quando a lei do divórcio foi aprovada, mesmo sob protesto da mãe.

A carioca Alessandra Coelho, 21, nasceu e foi criada na Cidade de Deus, e também teve discordâncias com a mãe, que é pastora e não aceitou sua sexualidade. Aos 17 anos foi expulsa de casa, quando disse que gostava de mulheres, e não esperou caber em uma caixa, a caixa dos outros, assim como Terezinha, e seguiu. Hoje, a jovem está no processo de publicação do seu primeiro livro, faz letras, é poetisa e também baterista de uma banda composta por mulheres. Cabendo na própria caixa e dona dela, Alessandra mora com Beca, sua namorada, e entende que vive um relacionamento saudável e feliz com a mulher da sua vida.

A caixa própria também caiu muito bem para Terezinha, que foi secretária executiva, uma das idealizadoras do SUS, e posteriormente funcionária pública de muito destaque, mas com o golpe de 1964, os caminhos mudaram. “Fui dedo duro da ditadura e por isso me demiti, com quatro filhas adolescentes para sustentar, não conseguia viver calada e poderia morrer, os caras matavam quem era contra”. Hoje, relembrando o passado, teve vez e voz em um tempo que a mulher não tinha nenhum dos dois.

O professor universitário aposentado, Rubem Oliveira, 67, nunca vai entender os percalços vividos por mulheres como Terezinha e Alessandra, mas já viu e experienciou coisas demais em seus 35 anos na educação e nos cargos que se propôs a ocupar. Seu sonho de garoto era ser contador de histórias como seu avô, ele então revela que foi um jovem que deu certo, se o quesito for sonhos, afinal encanta todos com seus conhecimentos e sua maneira reflexiva de olhar o mundo. “É sobre sociabilizar dúvidas, não temos respostas, não temos verdades absolutas.” Conta que venceu uma depressão e aprendeu muito quando estava internado, evidenciando que ser professor é muito mais do que uma profissão. “Quando estava internado, ajudei uma jovem na clínica, que estava lá por conta de não conseguir concluir seu TCC, eu disse, me traz tudo, vamos trabalhar”, relembra com graça. O filho de mãe uruguaia e neto de vô chinês revela que seu grande amor é sua filha.

Para Giovanni Cristaldo, as mudanças também são bem-vindas, ele redefine a fala de Rubem sobre dar certo. “Para mim é relativo dar certo, é muito mutável, é ter a liberdade de mudar o caminho a hora que eu quiser”. Gio é designer e a paixão por criar e se comunicar o acompanha desde muito novo. Aos 15 anos se reconheceu gay, e como Afropaty e Ale, sofreu com a ausência de aceitação por parte da família. O publicitário afirma que hoje se sente mais completo em relação à sua identidade. A questão sexual ficou visível muito cedo, mas houve um processo mais demorado em se reconhecer negro.

Cada história contada acima, lembra a lâmpada de um abajur com mal contato, ora liga, ora desliga, sem poder de controle de quem o tem, involuntariamente acontece. A vida de cada personagem é a lâmpada, os anos, as interferências, os locais que estão inseridos, são os fios e seus sistemas que se entrelaçam, se encontram, mas depois seguem seus rumos.

Terezinha, Afropaty, Alessandra, Rubem e Giovanni se encontraram e participaram de uma roda de conversa com a equipe do Projétil. Ali, discutiram três temas que permeiam suas gerações: as relações, a sexualidade e a diversidade.

Terezinha, Afropaty, Alessandra, Rubem e Giovanni se encontraram e participaram de uma roda de conversa com a equipe do Projétil. Ali, discutiram três temas que permeiam suas gerações: as relações, a sexualidade e a diversidade.

Fotos: Helder Carvalho (esquerda inferior, centro superior, centro inferior) e João Buchara (esquerda superior; direita) | Colagem: Janaina Araújo
RELAÇÕES afetivas

TEREZINHA: Eu não tenho relação profunda com ninguém, claro que eu assumo e tenho certeza de que a gente existe para viver em sociedade, mas que tem ficar sugando o outro? Eu vejo esse conceito [relações] como vampirismo, para sugar o outro, e vejo que hoje em dia vocês, jovens, não são assim. Eu me aposentei faz 14 anos e alugo espaço na casa de alguém, moro em um espaço coletivo, se eu caio, eu grito e sempre tem um vizinho pra me levantar, então a gente não existe pra viver sozinho, mas a gente não tem a obrigação de fechar um núcleo.

GIOVANNI: Eu acho que pelo menos os jovens LGBTs que tem pais conservadores, eles optam mais por laços afetivos do que sanguíneos. Eu fui esse caso, quem me salvou de uma depressão e de uma tentativa de suicídio foram os meus amigos, então desde o começo meus pais perguntavam “nossa, por que você dá tanto valor pra eles? Porque tem um laço tão forte com eles ?” E é porque quando eu precisei eles estavam lá, me conhecem e sabem quem realmente eu sou.

ALESSANDRA: Eu acho que as relações profundas que eu tenho hoje são muito mais com pessoas que eu escolhi, igual a dona Terezinha falou. A única relação sanguínea que eu tenho muito forte é com minha mãe, apenas, porque de resto eu optei por não conviver mais com eles. Tenho certeza que as que eu optei por me aproximar são muito mais saudáveis, na minha vida, do que as que eu fui obrigada a conviver por um tempo.

AFROPATY: Pra mim é metade, metade. Minha família sempre me apoiou e esteve sempre do meu lado, mesmo sendo bem conservadora. Às vezes eu penso que é por causa do medo do que as pessoas lá fora possam fazer comigo, então eles escolheram aceitar, e não me oprimir. Mas eu também tenho muito essa questão de amigos, de família, de ter vários pais e várias mães, não só a sanguínea.

RUBEM: Minha família é a minha filha, você vai na minha casa tem todas as coisas dela, tem o quarto dela ainda. Tem a nossa memória cultural. Com 11 anos eu falei pra ela ir pro sul, fazer a formação dela lá. Interessante que isso aproximou mais a gente, a distância aproxima mais. Eu nunca bati na minha filha, se eu levantasse a voz para ela, ela dizia “Pai, estou conversando, não estou brigando.” Ela sabia desarmar. Isso é importante. A leitura, a conversa, a não imposição, te faz um ser humano muito mais livre, mais solto. E é isso que eu vejo na minha filha.

RELAÇÕES intergeracionais

TEREZINHA: Sempre convivi com gente bem mais nova do que eu. Eu crio essa relação e acho isso legal. Tem 14 anos que eu estou morando nesse espaço coletivo e eu não fico na kitnet de ninguém e ninguém na minha, mas todo mundo que passa na minha janela me chama. Uma vez eu levei um hippie para morar comigo por seis meses. O cara é tão inteligente que não dá nem para conviver com a pobreza intelectual do mundo.

ALESSANDRA: Diariamente eu não convivo [com pessoas de outras idades]. A minha vozinha faleceu faz dois anos e pouco, mas era quem eu mais conversava sobre vários assuntos. Eu sentia muito, conversando com a minha avó o quanto as coisas eram possíveis. Porque ela fazia ser possível, ela mostrava na vida dela como existem possibilidades de viver sendo artista, por exemplo. Ela publicou um livro de poesias, quando estava viva. Espero juntar outros escritos dela para publicar outro [livro]. Acho que é necessário o diálogo entre pessoas de outras faixas etárias, para a gente ter esses olhares diferentes, sobre as possibilidades que a vida nos oferece.

GIOVANNI: Eu acredito que sim. Principalmente na minha empresa, as pessoas são de cargos mais altos e são mais velhos. Esse projeto de podcast que eu estou tocando, por exemplo… é muito engraçado, porque o meu primeiro convidado foi o fundador da empresa, ele tem 76 anos. Conversamos de igual para igual. E enriquece a gente, porque a gente não tem esse contato normalmente.

RELAÇÕES com passar do tempo e da idade

RUBEM: Em questão de relacionamento, eu acho que você fica mais exigente. Por exemplo, eu tive duas namoradas depois do meu divórcio e é interessante que eu usava o referencial da minha ex-esposa. Eu vi que você quer igual ou superior, mas nunca menos. Com o tempo, você não se submete mais a pessoas ignorantes.

TEREZINHA: Eu acho que quanto mais idade você tem, você se relaciona melhor. Toda a minha vida eu acreditei que todo ser humano quando sai na rua veste um personagem, na hora que você volta pra casa e põe um pijama e as pantufas nos pés, nem você se aguenta mais. Então eu acho que quando se é adulto as relações são mais falsas e quando você envelhece não se preocupa em perder mais tempo com o que não te acrescenta, gosta ou não gosta.

AFROPATY: Eu estava pensando em algo que é muito discutido pela minha geração que é o ciclo da modernidade líquida, então a gente vive muito o “nós em nós mesmos” e não conseguimos olhar para o lado, estamos focados em um ponto só. Então, a nossa geração não está tão presente com o próximo, estamos sempre com o celular na mão e raramente sentamos e conversamos, essa vivência para nós é mais rara, já para outras gerações não.

SEXUALIDADE em construção

GIOVANNI: Quando eu decidi me abrir, ser quem eu sou, foi um processo muito doloroso para mim. Foi muito difícil, porque eu tive que sair da igreja, me afastar de tudo aquilo que eu gostava muito, da convivência que eu tinha. E como minha sexualidade não é bem vista lá, então eu saí e vim viver esse mundo aqui fora, que me aceita muito melhor e que eu posso ser quem eu sou de verdade. A sexualidade para mim é uma autoconstrução. Cada um tem uma diferente construção do que é a sexualidade.

AFROPATY: Para mim, a minha sexualidade é muito fluida, hoje eu vou estar assim, amanhã de outra forma e ninguém vai entender nada. Mas eu vou entender. Então, para mim, é algo muito fluido, é a forma que eu consigo me apresentar para a sociedade. É algo meu, que nem eu sei explicar. A minha felicidade sempre esteve acima de tudo e de todos, então queria simplesmente ser feliz, independente de como eu fosse, nunca quis a aprovação de ninguém.

ALESSANDRA: Foi uma construção, demorada, difícil, que ainda não está 100% mas acho que já está sendo gerada ali dentro de mim. Já consigo entender que eu sou essa pessoa e não tem nada de errado com isso. Eu tive muita dificuldade para entender o que eu realmente sentia quando eu me relacionava com as pessoas, que me atraiam ou não. Já foi difícil entender isso. Ainda mais depois, para entender que não é errado, que não era anormal [gostar de alguém do mesmo sexo].

TERESINHA: Hoje eu tenho necessidade do afeto, do carinho, do relacionamento, da conversa, do bom papo. Eu não tenho nenhuma necessidade de relacionamento sexual. Mas é muito legal a naturalidade de vocês com esse assunto. Eu fico observando, é tão natural essa “opção” do homem se relacionar com outro homem, na geração de vocês. Mas isso porque teve muita gente que morreu, tiveram que colocar a cara, rolou sangue para terem o direito de serem vocês. Essas coisas a gente tem que valorizar.

DIVERSIDADE onde você habita

AFROPATY: A gente vive dentro de uma bolha social e querendo ou não a gente convive com semelhantes. Eu vejo que dentro da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul a gente vive com outros tipos de pessoas, então a gente consegue sair um pouco dessa bolha, mas querendo ou não a gente forma grupos e faz uma segregação de pessoas. A gente vive uma diversidade falsa, uma diversidade mentirosa.

RUBEM: Não está bem elaborada na minha cabeça essa ideia de diversidade. Eu sinto que convivo bem, tenho preconceitos, sim, com o fanatismo, seja político ou religioso. Não dá, essas pessoas não te ouvem, elas querem te doutrinar.

GIOVANNI: No meu círculo de amigos tem pessoas mais diversas, pessoas LGBTs, pessoas pretas, travestis, porque é onde eu me sinto bem, onde eu me localizo na sociedade. Porém quando eu vou pro lado profissional, eu enxergo pouquíssima diversidade na empresa, uma empresa que não contrata tantos LGBTs, os cargos de diretorias não têm pessoas pretas, só tem uma diretora mulher. A empresa tem uma cultura escrita no papel, mas na prática isso não é semeada.

ALESSANDRA: Eu acredito muito que depois de muita luta, de muitas pessoas, hoje a gente pode ser muito mais diverso dentro da sociedade e personalizar várias coisas, uma mesma pessoa, mil vidas em uma.