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Opinião 104

Sorria, você está sendo iludido

Texto e ilustração: Mileny Rodrigues


No espelho das redes sociais, cada um molda sua face não com o que é, mas com o que gostaria de ser. A identidade, antes fruto do encontro com o outro e da travessia no tempo, hoje se desenha com filtros e hashtags. Somos quem parecemos ser? E parecer ser feliz virou uma obrigação. Um compromisso inquestionável, ininterrupto, que consome tempo, energia e — talvez o mais valioso — nossa autenticidade.

Nas redes sociais, a imagem precede a essência. Antes de entendermos o que somos e como estamos nos sentindo, registramos, compartilhamos, nos moldamos a um formato de 15 segundos, com trilha sonora em alta e legenda inspiradora. Entre stories de manhãs produtivas e carrosséis sobre gratidão e realizações, uma identidade floresce: o “eu idealizado”. Aquele que acorda cedo, lê oito livros por mês, faz terapia, toma sol, corre dez quilômetros e nunca — nunca mesmo — fracassa.

Há uma coreografia invisível ditando o ritmo da subjetividade. O erro virou tabu. O fracasso, um desvio inaceitável. A tristeza, um sinal de desalinho com sua frequência ideal. A identidade real? Essa fica escondida nos bastidores — cansada, confusa, falha — com medo de não caber no feed.

Num mundo onde a lógica da visibilidade define o valor das coisas, não ser visto é quase o mesmo que não ser. Ser ignorado — ou, pior ainda, não ser relevante — equivale à inexistência. Daí a ânsia por performar. A identidade se tornou palco, e todos nós, atores mascarados em uma peça sem pausa, sem bastidores, sem quarta parede.

Há algo perversamente sedutor na promessa de que basta pensar positivo para vencer. Essa narrativa, vendida desde os manuais de Dale Carnegie até os vídeos de TikTok com trilha motivacional, gera identificação porque oferece sentido onde há transtorno. É simples. Reconfortante. E profundamente desonesta. Você falhou? É porque não acreditou o suficiente. Está triste? Meditou pouco. Não prosperou? Seu mindset está errado. O problema nunca está no sistema, nas estruturas, nas desigualdades históricas. Está só em você.

Não é apenas otimismo: é uma ideologia que culpabiliza o indivíduo por não se encaixar num modelo impossível de sucesso permanente e equilíbrio absoluto.

Performar faz você atuar como um ‘eu ideal’. Você não é mais alguém: é um perfil, um compartilhamento editado, um engajamento emocional contínuo. É como se estivéssemos todos na vitrine: sorrindo, acenando, tentando convencer os outros — e a nós mesmos — de que estamos bem. Porque estar bem dá likes. Estar bem engaja. Estar bem gera acolhimento e pertencimento. Nos likes há alguém que gosta de mim, que me aceita, que me respalda. Será? Mas o que acontece quando não estamos? Quando o mundo interno colapsa e não há filtro que disfarce?

Seguimos influenciadores como se fossem guias espirituais. Vestimos a roupa, copiamos a rotina, imitamos o tom de voz, compramos o suplemento. Cada escolha reforça a ilusão: de que podemos ser aquilo que admiramos, se formos bons o bastante. Mas ser bom o bastante nunca é suficiente. Porque o ideal se desloca — sempre um passo à frente. Sempre mais bonito, mais leve, mais produtivo. Um ideal que só existe na lógica da edição, do controle, da curadoria.

O resultado? Uma epidemia silenciosa de esgotamento emocional. Você se reconhece em quem você mostra ser? Se não, talvez seja hora de soltar a pose, desfazer a legenda e reaprender a ser. Ser sem roteiro. Sabendo que estar bem é também lidar com estar mal. Se a felicidade não é um ponto de chegada, estar bem e mal não são contradições.

A autenticidade, hoje, é um gesto político. Num mundo que lucra com a nossa insegurança, aceitar-se é um ato de resistência. Não se trata de romantizar o sofrimento, mas de humanizar a experiência. Entender que a dor também faz parte. Que o tédio também é legítimo. Que nem todo dia será épico. Que o erro é aprendizagem. E tudo bem. Existe potência na vulnerabilidade. E, nesse ato, oferecemos também um espelho mais honesto para quem assiste. Precisamos de espelhos que não deformam. Precisamos de reflexos que nos devolvam inteiros — mesmo quando estamos em pedaços.