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Opinião 97

Sozinho

Vitória Martins


Com certeza vocês já escutaram a frase ‘ser alguém na vida’. Me questionei durante um tempo. Acho que fui ninguém a maior parte da minha jornada. Desacreditado, o menino que foi encontrado na lata de lixo. Foram essas palavras que cresci ouvindo. Alguns enxergam heróis nos outros, naqueles que os salvam. No meu caso, tive que ser o meu próprio herói.

Não sei ao certo como foi meu processo de adoção. A única coisa que sei é que foi recém-nascido. Falavam que minha mãe biológica não me queria, por isso me entregou a uma mulher que pudesse me criar.

Perdi minha mãe adotiva aos 12 anos, mas lembro dela até hoje. Embora fosse rígida, era capaz de sentir seu amor por mim. Eu era o caçula, e minhas irmãs mais velhas tinham filhos de idades próximas a minha, então, fui criado junto a eles.

Nunca fui o melhor da turma na escola. Vira e mexe minhas irmãs recebiam reclamações dos professores por mau comportamento. ‘Bagunça e conversa demais’, era o que eles sempre falavam. Em casa eu não ficava, gostava mesmo era da rua. Adorava as brincadeiras de moleque e até caçava rã.

Quando adolescente vi que existia distinção entre eu e meus sobrinhos. O Pedro é um ano mais novo que eu. Usávamos roupas um do outro. Um certo dia minha irmã Sandra foi lavar roupa e achou um saquinho de maconha em um dos shorts. Não era minha, mas apanhei como se não houvesse amanhã. Mesmo negando, ela não acreditou em mim. Comecei a beber e fumar antes dos 15 anos, mas droga nenhuma me atraia.

Mesmo vivendo ali, me sentia sozinho.

Depois que minha mãe faleceu meu pai arranjou outra mulher. Era pedreiro e logo me chamou para fazer bicos de ajudante com ele. Aprendi a concretar, assentar tijolo e rebocar. Passei o final da adolescência ajudando a construir a casa dos outros.

Aos 18 anos conheci a Paula no pagode. Ficamos juntos e ela engravidou. Aí veio o choque: eu seria pai! Sem carteira assinada nem dinheiro. Como eu criaria uma criança? Decidimos morar juntos. Começamos em um quartinho no terreno da dona Juliana, mãe da Paula. Não ficamos muito tempo ali, logo nos mudamos para uma casa com dois cômodos em um terreno cedido pelo meu sogro.

Um pouco depois de nove meses, Nicole nasceu. Quando a peguei pela primeira vez senti algo sem explicação, era amor. Ali, todo meu medo passou e fui tomado pela certeza de que proporcionaria a ela o que não tive. Uma boa escola, oportunidades e um ombro amigo.

Passado um mês do nascimento da Nick, estava empregado com carteira assinada. Comecei recebendo duzentos e cinquenta reais por mês. Paula fazia chinelos de bordados e brincos para vender. Não dava muito, mas ajudava.

Morávamos em uma casa composta por um quarto e cozinha. No começo, usávamos o banheiro da vizinha. Quando chovia, pingava em tudo. Era triste chegar em casa após o trabalho e ver os poucos móveis que tínhamos úmidos e plásticos em cima das cobertas para não molhar a cama. Decidi que precisava trabalhar mais. Perdi as contas de quantas horas extras fiz, só sei que foram muitas. Arrumei o telhado. Uns cinco anos depois, consegui um dinheiro, fiz mais três cômodos. Uma sala, outro quarto e o banheiro. Foi mais de dois anos para conseguir terminar. Meu pai me ajudou no pouco tempo que tinha. E eu me desdobrava entre o serviço, as horas extras e a construção.

Fui crescendo no trabalho. Aos poucos consegui adquirir carro, pagar escola e dar um pouco mais de conforto para minha família.

u e Paula começamos a brigar. Quando Nicole tinha 15 anos já estávamos separados, mas ainda vivendo sob o mesmo teto. Até que chegou um dia em que ficou insuportável e precisei sair de casa. Não levei nada além das minhas roupas e o carro.

Me senti novamente sozinho. Aquela sensação da adolescência tinha retornado. A opção era voltar para a casa das minhas irmãs ou começar do zero. Decidi pela segunda alternativa. Reencontrei um conhecido e ele disse que alugava casas. O valor era bem abaixo do mercado, com duas peças. Não tinha luxo e nem conforto, mas foi suficiente para mim.

Muitas pessoas falavam pelas minhas costas, dizendo que eu ia me perder em bebida e mulher. Mas não foi isso que aconteceu. Isso só me fez ser mais determinado. Troquei o carro por um terreno. Pedi a conhecidos um empréstimo para começar a obra, já que meu nome estava sujo. Mas nem meu pai quis me ajudar. Ninguém acreditava em mim. Mesmo assim persisti e construí minha casa. Cheguei a não ter o que comer, a trabalhar oito horas por dia no serviço e dez horas na construção, sozinho. Eu e Deus.

Ainda estou no processo de adquirir bens, mas o mais importante eu já tenho. Uma casa, conquistada e feita por mim. Fico feliz porque eu me fiz ser diferente. Tenho novos sonhos e não tenho medo. Comecei sozinho do zero e faria de novo. Por minha filha, e principalmente por mim.