Desequilíbrio entre descanso e trabalho evidencia categorias de desigualdade nos momentos de lazer dos campo-grandenses
Texto: Ana Beatriz Leal | Raíssa Rojas
Fotos: Pietra Dorneles
“Semana passada eu estava na praia, essa semana estou aqui, semana que vem eu vou para um cruzeiro”. Em um projeto voluntário de yoga, onde algumas aulas são ministradas gratuitamente em uma manhã de domingo na capital do estado de Mato Grosso do Sul (MS), uma senhora chamou atenção pelos seus movimentos. Se esticava. Se sustentava e se equilibrava, principalmente. Elizabeth Asato, mulher asiática de 68 anos, é médica neurologista e acupunturista, formada pela Universidade de São Paulo (USP), e hoje vive sua aposentadoria da melhor forma possível (segundo grande maioria das pessoas), viajando e fazendo yoga.



Enquanto isso, Diego Albertino, homem preto de 20 anos, estudante de Sistemas de Informação na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ganha aproximadamente R$10,20 por hora em seu estágio e passa mais de três horas por dia no transporte público. Como o estágio é longe, ele se adianta para poder pegar a linha 070 e chegar a tempo nos compromissos de estudo e profissionais. O segundo ônibus vem no horário de pico, e ele precisa ir do trabalho até a universidade. Com o fim da aula, mais uma condução, com última parada, finalmente, em casa.


Lazer é o tempo que sobra do horário de trabalho e/ou do cumprimento de obrigações (sejam elas trabalhistas, religiosas, sociais ou qualquer outra), aproveitável para o exercício de atividades prazerosas, de acordo com Junior Vagner Silva, professor da disciplina de Estudos do Lazer no curso de Educação Física da UFMS. Mas quando sobra tempo para o lazer? Diego afirma que tenta abrir espaço para se distrair das obrigações. “Caso não tenha nenhuma atividade pendente da faculdade fico assistindo alguma série até o horário de ir para o estágio”, explica.
“Lazer é o tempo que sobra do horário de trabalho e/ou do cumprimento de obrigações”
O estudante sabe da importância de manter momentos de lazer como parte da rotina e, por mais que goste de práticas comuns para outras pessoas, como algumas atividades físicas, seu hobby favorito é jogar no computador ou celular. Diego afirma inclusive que separa uma porcentagem do seu salário para o lazer e que gostaria de montar um espaço para realizar suas partidas de jogos online, um setup gamer. Por enquanto este é um sonho distante comparado a outras prioridades.
No modo de produção capitalista, o tempo se tornou sinônimo de dinheiro, logo, perder tempo é perder dinheiro. A maneira como se encara essa realidade depende principalmente do contexto em que a pessoa está inserida. O professor Junior fundamenta que o lazer é dependente do poder aquisitivo, afinal, se você tem dinheiro, você tem mais opções de passatempo. Na sociedade moderna, a ideia de lazer se baseia em um conceito conservador e religioso, o sagrado purifica e o profano é condenado. Até hoje, alguém que usufrui do tempo disponível é frequentemente chamado de “vagabundo” ou “vadio”, explica o professor.
No modo de produção capitalista, o tempo se tornou sinônimo de dinheiro, logo, perder tempo é perder dinheiro.
Bater canela
Rotina é o hábito de fazer algo sempre do mesmo modo, de maneira automática. Às 5h toca o despertador, antes do dia amanhecer. O sono é precioso e cada minuto a mais na cama faz diferença. O tempo passa e já é hora de levantar. O café só se der tempo nessa correria que é a rotina. Esta costuma ser a manhã de Isabella Rodrigues, mulher preta de 24 anos, estudante de Geografia da UFMS, mãe e esposa. Já no fim de sua licença-maternidade, que durou seis meses, ela precisou retornar ao serviço de recreadora de uma creche. Isabella conta como seu dia começa muito cedo, muito agitado e com muito choro. “Acho que essa é a pior parte, conciliar criança com casa. É punk, você não sabe o que quer limpar primeiro, se é o filho, a casa ou você”.
“Queria trabalhar a questão da leitura, mas não consigo nem relaxar a mente. Isso é uma coisa que eu gostaria muito, tirar o olho do celular e ler”
Nessa jornada dupla (a reportagem “Quando a necessidade priva a liberdade”, na página 28 desta edição, trata deste assunto), a rotina é inimiga do lazer. A recreadora explica que seu hobby é na verdade ter um tempo de qualidade, ir na casa de uma amiga comer uma pipoca diferente ou tomar uma casquinha no shopping. “Eu gosto mesmo é de bater canela”, até brinca. “Gosto muito de viajar, mas se antes era difícil agora é três vezes pior”, conta. O tempo é um importante marcador, porém a parte financeira também a afasta de algumas metas, e o reflexo de todo esse cenário é uma cabeça ocupada e cansada. “Queria trabalhar a questão da leitura, mas não consigo nem relaxar a mente. Isso é uma coisa que eu gostaria muito, tirar o olho do celular e ler”, desabafa Isabella.
O contexto em que você está inserido pode dizer muito sobre seus valores e passatempos. Mas, e quando o meio que mais te influencia é o virtual? Isabella suspira ao responder sua rotina ideal. “Aquelas rotina de instagram, sabe…? acho que só acordando às 7h e tomando um chá em paz eu já ficaria feliz”. Além das barreiras econômicas para o lazer, ele também pode ser padronizado e idealizado. O estilo de vida perfeito é exposto nas redes sociais por jovens de classe média alta, em sua maioria pessoas brancas: café da manhã às 9h e cama arrumada para dormir às 21h. Nesse horário o dia de Isabella está longe de acabar, pois é quando termina a aula, e ela ainda tem que pegar o ônibus, com seu filho, para retornar à casa.







Isabella afirma que nunca teve rede de apoio e que desde o início da maternidade foi só ela e o esposo. “Na medida do possível, cada um faz sua parte”. Mas qual parte é responsabilidade apenas das mulheres? Na sociedade, é comum alguns tipos de trabalhos serem associados à função feminina, como o zelo pela casa e a criação dos filhos e, essa sobrecarga influencia diretamente no curto tempo de lazer existente para as mães. Se sobra algum intervalo é porque ainda está faltando algo para fazer. E se depois disso, ela conseguir algum tempo, seu lazer provavelmente será como uma figura materna, e não só como indivíduo.
Pontos de respiro
O lazer envolve intencionalidade e expressividade de acordo com o professor do curso de Artes Visuais da UFMS Paulo Antonini. Ele explica que geralmente acontece uma espécie de jogo lúdico, onde há uma relação de prazer. Logo, a partir do momento em que esse ato não é mais prazeroso, ele deixa de se configurar como lazer. Então, ao monetizar um hobby, por exemplo, é comum que a atividade perca a espontaneidade e aos poucos se torne uma obrigação. Há quem mesmo com disponibilidade de tempo ou dinheiro capitalize seu hobby. Clara Rodrigues, de 21 anos, é estudante de Arquitetura e Urbanismo e no início do ano se encontrou em uma nova atividade: o crochê.
A jovem conta que aprendeu a crochetar com a irmã. Agora, a prática já faz parte da sua rotina. “Geralmente, eu faço crochê depois do almoço, antes de ir pra academia, e também antes de dormir, sempre para relaxar”. Clara diz que foi bastante influenciada pelas redes sociais e conta que esse tipo de conteúdo cresceu muito nas plataformas digitais. “Meu pai sempre me chama de velhinha quando eu estou fazendo, mas quando eu posto no instagram todo mundo elogia”, brinca. Entre vários pontos, lãs e linhas, a crocheteira viu uma oportunidade de empreender com a prática, não por necessidade, mas para aproveitar o resultado final. Ela e a irmã já pensaram em montar uma loja online. Quando questionada se não tem receio de ‘estragar’ seu hobby por comercializá-lo, ela logo responde. “Até tenho, mas aí é só parar”.


É comum associar a produção e o consumo como momentos de lazer. Mas para o professor Paulo, o lazer não pressupõe gasto, compromisso com a qualidade ou até mesmo frequência na prática. Ele explica as barreiras e domínios para se compreender esse tempo. “Acima de tudo, o lazer depende da atitude do sujeito, que pode ser inclusive de não fazer nada”, adverte.
Saúde em movimento
“Não é lazer, é saúde mental. É saúde física!”, exclama a professora do projeto Yoga para todos, Ana Paula Ferreira, mulher branca de 45 anos, e ainda disserta sobre o idealismo contemporâneo de uma sociedade saudável. Conceituar o tempo de lazer como um hobby não é desvalorizar nem menosprezar a ação. O projeto é motivado pela teimosia e amor das professoras envolvidas e tem como objetivo oferecer aulas de forma gratuita para a população, em escolas, parques entre outros.
Conceituar o tempo de lazer como um hobby não é desvalorizar nem menosprezar a ação.
No último domingo de cada mês, às 8h, é realizado um aulão de yoga no Parque das Nações Indígenas, que reúne mais de 80 pessoas. E a atividade não se limita ao famoso parque. A partir desta ideia de descentralização urbana para acesso ao lazer, o projeto conta com uma versão itinerante, uma espécie de rodízio de locais para os encontros com o intuito de tentar democratizar o acesso à prática, que trabalha tanto a saúde física quanto a mental.
É função do governo garantir ambientes adequados que auxiliam a prática do lazer, independente do local. A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Campo Grande (MS) administra 32 praças e a Fundação Municipal de Esportes (Funesp) coordena 34 praças e parques. Sem bancos, lixeiras, sanitários ou bebedouros, várias delas precisam de reparos, como a Praça do Jacy e a Praça Dom Antônio Barbosa, de acordo com o documento Diagnóstico das Praças Oficiais de Campo Grande (MS), publicado em 2021 pela Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano. Cabe aos órgãos da prefeitura a manutenção desses espaços, que são uma das únicas opções para a comunidade ao seu redor.
Carlos Alberto Rocha, homem branco de 61 anos, militar aposentado, mora em uma área nobre da cidade, perto do Parque das Nações Indígenas. O idoso acorda cedo nas terças e quintas e, às vezes, até no final de semana para realizar seu exercício aeróbico, correndo ao redor do parque. Além disso, também pratica hipismo e tem seu próprio cavalo. Há uma inveja idealizada da vida de um aposentado, por assumir que em sua rotina não existem obrigações, liberando-o para os prazeres do lazer. Essa pode até ser a vivência de quem consegue usufruir dos benefícios de uma previdência, de uma herança ou de outra realidade aquisitiva. Caso contrário, a perspectiva é trabalhar e levar uma vida de postergação do tempo de qualidade.

A famosa frase atribuída ao filósofo chinês, Confúcio, “Escolha um trabalho que você ama e você nunca terá que trabalhar um dia sequer na vida”, traz uma reflexão sobre qual o limite entre desejo e necessidade quando se trata da escolha da profissão. Ao nos enxergarmos em uma sociedade que comercializa a felicidade engarrafada e vende uma vida perfeita, é fácil cair em armadilhas genéricas sobre o que nos faz ou pode nos fazer bem, ainda mais quando não há outra escolha.
“O lazer é inato, mas para algumas pessoas ele é reprimido”, reforça o professor Junior. Equilibrar o tempo de qualidade entre as obrigações é uma função injusta, cruel e ao mesmo tempo extremamente importante. É costume ansiar pelo dia do pagamento, pelas férias no fim do ano, pelo fim da semana, fim do mês e fim do ano. Uma vida que quer sempre antecipar os dias, em algum momento chega na única certeza inevitável, o fim.
Lazer é saúde
Quando falamos de saúde mental, a maioria das pessoas defende que um momento de pausa é essencial, tanto das atividades produtivas, laborais, quanto também das atividades básicas para a manutenção da nossa própria vida. Para Thaize de Souza Reis, psicóloga e professora do curso de Psicologia da UFMS, desvalorizar o tempo dedicado ao lazer pode fazer mal para a saúde mental. Ela afirma que somos seres sociais e que esses momentos possibilitam a vivência da sensação de pertencimento.
A psicóloga explica que o lazer é importante tanto para o coletivo, em relação a vida social, como para a individualidade, e indica que devemos pensar nesses momentos como ferramentas para a produção de hormônios e neurotransmissores. “Os nossos problemas de saúde mental estão totalmente relacionados a esse modo de produção da vida”, Thaize afirma que há uma exploração de alguns grupos sociais, considerando classe, gênero e raça. “A solução passa por uma revisão da nossa forma de existir, de produzir e de reproduzir a vida como sociedade”, conclui.