Categorias
Reportagem 98

Trabalhe, lute, viva e POSE

A busca por pertencimento e representatividade da comunidade LGBTQIA+ em meio ao conservadorismo sul-mato-grossense

Texto: Biel Gill | Emilly Mira | Letícia Dantas


Fotos: Emilly Mira | Colagem: Morris Fabiana

“Aqui no estado é muito difícil a gente ser trans, ser travesti. Na verdade, no Brasil todo, estamos no país que mais mata corpos trans no mundo, então ainda é muito difícil”, diz Luara Maria, que se reivindica como travesti. Ela retrata as dificuldades de ser LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Interssexuais e Assexuais*) em Mato Grosso do Sul; com o preconceito que se inicia desde um olhar de canto de olho, passa por falta de vagas no mercado de trabalho e chega ao extremo da violência.

Nessa reportagem, tentando entender a identidade e a importância do movimento LGBTQIA+ no estado, conversamos com representantes da Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT, da Casa Satine, das Houses Of Quimera e Hand’s Up MS e com o sócio proprietário do Jurema Bar, para que possamos melhor compreender a vivência da comunidade na capital sul-mato-grossense.

A categoria é… Políticas Públicas

Na região Centro-Oeste, de acordo com o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB) de 2021, o estado de MS, proporcionalmente à população, ocupa a segunda posição entre os que mais matam pessoas LGBTQIA+, ficando acima da média nacional. De acordo com a Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT de MS, foram registrados, de julho de 2019 a dezembro de 2021, mais de 45 casos de homotransfobia.
Apesar desses dados, ainda há uma grande falta de informações aprofundadas sobre a comunidade.

A esse respeito, Karla Melo, coordenadora do Centro Estadual de Cidadania LGBTQIA+, vinculado a Secretária de Estado de Cidadania e Cultura do Governo de Mato Grosso do Sul e coordenado pela Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT, afirma que desde a criação do órgão, em 2020, percebe-se que a falta dessas estatísticas é prejudicial para a tentativa de entender o tipo de violência que acontece, onde e quais são as pessoas afetadas. A coordenadora complementa que o grupo consegue ter um panorama dessa realidade apenas por meio de movimentos sociais que trazem dados informais.

Karla Melo, coordenadora do Centro Estadual de Cidadania LGBT, explica as atividades realizadas pela Subsecretária – Foto: Emilly Mira

Karla afirma que o objetivo do centro, em sua fundação, era receber denúncias e combater o preconceito e a homofobia. Atualmente, a Subsecretaria colabora para a produção de mais pesquisas oficiais. “Fomos entendendo que existe uma necessidade maior de trazer dados em relação à violência e às questões que abarcam o preconceito, para que a gente possa incidir com mais eficácia em relação à pauta, porque temos a obrigação dentro do estado de pensar em política pública”, diz a cientista social.

A coordenadora também compõe o grupo gestor da Casa Satine – República de Acolhimento, Clínica Social e Espaço Cultural para pessoas LGBTQIA+ a partir dos 18 anos – em Campo Grande. Inicialmente, a ideia desta Organização Não Governamental (ONG) era de que houvesse um espaço físico para receber as pessoas que estivessem em situação de extrema vulnerabilidade, respeitando suas características e individualidades e promovendo a liberdade econômica e emocional. Mas, devido à falta de recursos e amparo, não foi possível concretizar o planejamento. Outras alternativas de auxílio foram elaboradas, como espaços de sarau e de manifestação. Karla reforça que a arte-educação é uma das formas que mais agrega à discussão e livre-expressão, fatores que contribuem para a quebra de preconceitos.

A ONG também fornece cestas básicas para integrantes da comunidade queer que se encontram em situação de vulnerabilidade. “Durante a pandemia, surgiu uma nova necessidade, que era a segurança alimentar; muitas pessoas ficaram sem nenhum tipo de renda – principalmente as mulheres trans que trabalham na noite com a prostituição”, diz Karla. O responsável pelo atendimento social, Jonatan Espíndola, informa que desde 2020 foram ajudadas mais de 80 pessoas, e entregue uma média de 200 cestas básicas.

Além do suporte socioeconômico, a associação oferece apoio psicológico e psiquiátrico. A acadêmica de psicologia Bianca Amorim coordena a Clínica Social da Casa Satine e comenta sobre a grande procura pelo acompanhamento psicossocial. “Na psicologia, temos o maior número de voluntários”, diz ela, “mas ainda não é suficiente porque há uma grande demanda. Todo dia chegam formulários de pessoas solicitando atendimento”. O grupo conta com 33 psicólogos que atendem em torno de 60 pacientes por semana.

Representantes da Subsecretária de Políticas Públicas LGBT divulgando a campanha ‘Diga não ao preconceito e à violência’ – Foto: Emilly Mira
A categoria é… Vivência TRAVESTI

A luta LGBTQIA+ está também no mercado de trabalho. Segundo Luara Maria, as vagas de emprego são limitadas e estereotipadas. “Eles colocam a gente em lugares que já são da gente. Você encontra manas trans em loja de maquiagem, salão de beleza e lojas de roupa. É pouca mana trans que está num espaço como shopping ou órgão público. Temos que ocupar esses lugares, porque se não estivermos lá dentro, não vamos conseguir mudar nada”, relata.

Luara Maria, Mother da House of Quimera, compartilha sua vivência como travesti em Campo Grande – Foto: Isa Procópio

Luara é mother da House of Quimera, casa que surgiu em novembro do ano passado, durante a pandemia. O termo “House”, como é conhecido atualmente, teve origem nos Estados Unidos, em 1980, período marcado pelos primeiros casos e complicações do vírus HIV. Com baixo conhecimento da doença na época, diversos jovens LGBTQIA+ acabaram sendo expulsos de suas casas e, na busca por um lar, formaram os coletivos.

Antes da fundação da House of Quimera, Luara fazia parte da House of Hand’s Up, lugar onde aprendeu muitas coisas, entre elas, a percepção de uma necessidade de cuidar e acolher. Neste momento ela decidiu criar a sua própria casa. “Eu fui muito bem acolhida na Hand’s Up, os meninos sempre me trataram super bem, só que eu sempre tive um instinto materno, sempre quis ter alguém para direcionar, para cuidar, para eu poder passar um pouco do que eu sei, e, também, aprender com eles”.

Luara Maria e Daniel Felipe, integrante da House of Quimera – Foto: Emilly Mira

O surgimento das Houses no Brasil, trouxe com elas atividades características – ainda que não as mais importantes – como as danças Vogue, Catwalk e Face and Body. Luara conta que para fazer parte do grupo, a pessoa precisa ter um vínculo estabelecido na convivência e não apenas o do saber dançar. Para ela, a House é um local de apoio, aprendizado e troca de experiências. Ainda que não possuam uma sede/casa própria, o coletivo vai além do espaço físico e se estabelece, em grande medida, por meio do acolhimento e da sensação de pertencimento.

Ensaio da House of Quimera nas quadras da UFMS – Foto: Emilly Mira
“Eles colocam a gente em lugares que já são da gente. Você encontra manas trans em loja de maquiagem, salão de beleza e lojas de roupa” – Luara Maria
A categoria é… Mãos livres

Criada em 2017, a House Of Hand’s Up é fortificada na dança, mas também trabalha o desenvolvimento pessoal de cada integrante, por meio da integração, acolhimento, apoio, aceitação e incentivo. Roger Pacheco, mother da casa, informou que antes do coletivo Hand’s Up, o grupo chamava Hand’s Crew e a alteração do nome veio depois de um workshop, no qual Eduarda Kona Zion, ativista e fomentadora da cultura preta-latina-trans-periférica LGBTQIA+, filiou o coletivo como uma extensão do Hand’s Up de Brasília.

Roger Pacheco, mother da House of Hand’s Up, conta sobre o grupo – Foto: Isa Procópio

Antes da filiação, Roger fazia parte do grupo de dança “Companhia Dança Urbana”. Neste grupo, algumas coreografias produzidas pelas mulheres eram só para as mulheres, e os homens não podiam dançar, foi a partir daí que Roger sentiu a necessidade de criar o Hand’s Crew, para que ele e seus amigos pudessem performar o que queriam, com mais feminilidade e liberdade. “Você pode ser gay, mas em cena você precisa dançar que nem homem hétero. A gente vestia um personagem, não era aquilo que queríamos fazer, queríamos ser nós mesmos. Depois disso montamos uma coreografia só de gay, só de viado, bem mais feminina”.

Com a vinda de Kona Zion à Campo Grande, o grupo de Roger começou a ter treinos diários com a ativista, montaram coreografias e iniciaram o aprendizado da técnica Vogue. O grupo foi se especializando, apresentando workshops, levando pessoas para participarem de treinos abertos ao público e criando performances apenas com Vogue. Segundo Roger, com essa “brincadeira” surgiu a ideia de expandir o grupo Hand’s Up MS para a House.

A dança é parte fundamental da House of Hand’s Up – Foto: Isa Procópio

Atualmente, a House ainda tem muita ligação com a dança e é, inclusive, ganhadora de três prêmios na área, sendo eles: Big Field Camp, em 2017, o Prêmio Onça Pintada, em 2018, e o Festival Canindé, em 2019. Esses prêmios podem ser vistos como consequência do esforço e união dos integrantes do grupo. O dançarino Greydson Clink fala sobre o que a House representa em sua vida. “A Hand’s me completa, praticamente. Antes da Hand’s Up eu estava em um processo de aceitação comigo mesmo, tanto de sexualidade quanto de corpo, mentalidade e autoestima, então quando eu entrei, era aquela pecinha que faltava para eu me encaixar”, confessa.

Greydson Clink integrante da casa Hand’s Up – Foto: Isa Procópio

A casa foi a pioneira no estado. Tarso Fernandez, um dos integrantes, afirma que por ser a primeira no Mato Grosso do Sul, a Hand’s Up pôde abrir caminhos e servir como espelho para cidadãos LGBTQIA+. “Mesmo sendo capital, mesmo sendo a cidade mais desenvolvida do estado, Campo Grande ainda tem a questão do preconceito, do machismo, da transfobia e homofobia, então o fato da House ser pioneira e ter um nome muito forte dentro do estado, abre caminhos para que outras pessoas se espelhem e se imponham contra essas questões”, relata. Tarso afirma que fazer parte do coletivo é poder ser – e se expor – como ele é. É onde ele consegue se expressar, expressar sua arte, amar seu corpo e se amar, além de se sentir mais seguro na própria dança.

A categoria é… Diversão e acolhimento
Espaço interno do bar Jurema – Foto: Biel Gill

Fundado em março de 2019 e localizado na região central de Campo Grande, em frente à Praça dos Imigrantes, o Jurema Bar é um local voltado para a comunidade LGBTQIA+ da cidade. Fábio Jara é sócio proprietário do ambiente e conta que o bar surgiu da necessidade de ter um espaço queer na cidade. “Eu estou há mais de 10 anos na cena, atuando como DJ e produtor de festa. Nunca tinha visto ou vivenciado aqui em Campo Grande uma experiência como o Jurema.” explica.

A essência do bar foi inspirada no Nordeste, região do Brasil conhecida pela sua hospitalidade. Fábio conta que lá é muito comum transformar uma casa em um local de encontro. Ele viu a oportunidade de trazer esse conceito nordestino ao ambiente campo-grandense, ao ver uma casa para alugar em frente a um sarau que frequentava, semanalmente, na Praça dos Imigrantes. Com isso em mente, criou o Jurema, nome escolhido em homenagem a sua avó.

Fábio Jara, sócio-empresário do Bar Jurema fala sobre a fundação do local de acolhimento – Foto: Isa Procópio

Pelo fato de o estado ainda ser visto, social e politicamente, como conservador, é comum o sentimento de deslocamento e falta de pertencimento por parte do público LGBTQIA+ campo-grandense. A atmosfera receptiva produzida pelo Jurema foi um fator determinante para a incorporação do bar na cidade, com forte presença da música pop, estilo muito consumido pela comunidade queer, além de possuir elementos representantes de religiões de matrizes africanas e decoração com a temática LGBTQIA+, com bandeiras e outros componentes que representam a comunidade. A casa-bar também investe na segurança do local, que é pensada de maneira a proteger e ao mesmo tempo deixar o público à vontade, por isso, Jara contratou Silvana, que presta o serviço de vigilância. Segundo Fábio, o gênero de Silvana interferiu na contratação, já que o público se sente mais confortável com a vigilância feita por uma mulher.

O bar optou por contratar Silvana para manter a segurança do local – Foto: Emilly Mira

O proprietário afirma que episódios de violência nunca aconteceram no Jurema. “Em todo esse tempo que estamos aqui, nunca tivemos casos de assédio, de briga e de desentendimento. As pessoas respeitam, acolhem muito bem. Temos orgulho de falar porque acabou se tornando realmente um local seguro. Todes são bem-vindes”.


Glossário

Criado com bases no NEDGS/UFGD (Núcleo de Estudos de Diversidade de Gênero e Sexual) e com o auxílio do professor Tiago Duque (FACH/UFMS), esse glossário busca situar os termos da reportagem, podendo variar de acordo com fatores sócio-históricos e, como parte de construções culturais, estão sempre em transformação.

Identidade de gênero: Gênero que a pessoa se identifica.

Orientação Sexual: Atração afetiva e/ou sexual por outra pessoa.

Lésbicas: Orientação sexual. Mulheres que sentem atração afetiva e/ou sexual por outras mulheres.

Gays: Orientação sexual. Homens que sentem atração afetiva e/ou sexual por outros homens.

Bissexuais: Orientação sexual. Homens e mulheres que sentem atração afetiva e/ou sexual tanto por homens quanto por mulheres.

Transgeneridade: Identidade de gênero. Pessoas que não se identificam com o gênero que foi atribuído no nascimento.

Travestis: Identidade de gênero. Pessoa que não se identifica com o sexo masculino atribuído no nascimento, se reconhece numa identidade feminina. Não necessariamente se consideram mulheres.

Queers: Termo utilizado por membros da comunidade LGBTQIA+ que não se enquadram na cisheteronormatividade.

Intersexuais: Identidade de gênero. Variação nas características sexuais biológicas que identificam cada gênero.

Assexuais: Orientação sexual. Indivíduo que não sente atração sexual.

Não-binário: Identidade de gênero. Pessoa que não se identifica com nenhum gênero ou transita entre o gênero feminino e masculino.

Cisgênero: Identidade de gênero. Pessoa que se identifica com o sexo atribuído ao nascimento.

Cisheteronormatividade: Imposição social para ser ou se comportar de acordo com os papéis impostos socialmente a cada gênero, como se fossem naturais.

Vogue: Estilo de dança com poses e “carões” inspirados nas capas da revista Vogue.

Ballroom: Salão de baile. Local onde acontecem as disputas de dança.

Catwalk: Caminhada de gato. Categoria do estilo de dança Vogue.

Face and Body: Rosto e corpo. Expressões faciais da dança Vogue.

Mother: Mãe. Líder das houses. O título não segue binariedade.