“O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo.” É com esta frase que se encerra o filme Madalena (2021) do diretor Madiano Marcheti, chamando atenção para a importância em se falar sobre este tema que acaba sendo deixado de lado nas discussões sobre gênero no país. O longa-metragem de uma hora e 25 minutos, que passou a integrar o catálogo da plataforma de streaming Netflix em dezembro de 2021, trata da morte de Madalena, uma mulher transexual que aparece misteriosamente morta em uma plantação de soja no Centro-Oeste do Brasil. A partir daí, passamos a acompanhar a vida de outros três personagens que, apesar de viverem na mesma cidade, não se conhecem. A única coisa que eles têm em comum é o fato de terem suas vidas impactadas, de alguma forma, pela morte de Madalena.

A produção brasileira, que já ganhou diversos prêmios internacionais, foge do eixo Rio-São Paulo e chama atenção pelas paisagens características da região central do país. A última conquista foi a seleção para o Tiger Competition, principal competição do Festival de Cinema de Roterdã (2021) na Holanda. Apesar de não ficar claro em que cidade a trama se passa, as gravações do filme foram feitas nas cidades de Dourados, Campo Grande e Bonito, no Mato Grosso do Sul. Grande parte dos atores também é do estado, como uma das protagonistas, a atriz Pamella Yule de Campo Grande (MS).
Do ponto de vista audiovisual, a estética ultrarrealista da obra, por vezes, faz lembrar um documentário. Os vastos campos de soja e o maquinário agrícola dominam a paisagem e remetem aos impactos do agronegócio. O filme explora o uso de cenas extensas e alguns espaços de silêncio que convidam o espectador à reflexão. A obra é permeada por uma aura de pessimismo, exceto pelo final, que traz um certo alívio ao cenário quase sombrio. O contraste entre a vida luxuosa e soberana das famílias donas das terras, que muitas vezes possuem envolvimento político e o restante dos habitantes da pequena cidade, a grande maioria de trabalhadores braçais, pobres e vulneráveis, é mostrado para revelar a desigualdade presente na região.
O diretor, que é nascido e criado em Cuiabá, no outro Mato Grosso, declarou em suas redes sociais que buscou enfatizar os impactos do agronegócio na região, não apenas do ponto de vista ambiental, mas também na disseminação de uma cultura machista que afeta diretamente a comunidade LGBTQIA+ e, sobretudo, a vida de pessoas transexuais. A reação das pessoas, ou a falta dela, sobre o assassinato de Madalena é o gancho que remete à principal crítica: a invisibilização sistemática de pessoas trans. Ainda segundo o diretor, o filme evidencia o fato dessas pessoas serem tratadas, muitas vezes, como descartáveis, e terem o seu papel na sociedade negligenciado. Fato que se dá de maneira ainda mais intensa nas regiões mais conservadoras do país.
Pamella Yule interpreta uma personagem que tem sua vida afetada pela morte de Madalena. Ela é uma mulher trans que possui uma vida relativamente padrão: possui um trabalho tradicional, um noivo, relações sociais cotidianas e até perspectivas para um futuro melhor. Após a tragédia, ela se vê revisitando antigos traumas e traz à tona uma reflexão sobre o lugar das pessoas transexuais na sociedade. Será possível uma mulher transexual levar uma vida “padrão”? Pamella acredita que a obra tem o importante papel de promover visibilidade para a causa da transfobia. “A intenção do filme é fazer com que enxerguem que somos pessoas que sonham, que choram, que trabalham e que buscam quietude para viverem suas vidas sem precisarem atravessar questões de preconceito.”
O longa-metragem propõe reflexões relevantes, mas está longe de abordar o tema transfobia de maneira óbvia e, muito menos, direta. A obra explora diversos artifícios, até mesmo o sobrenatural, e dá margem para que sejam trilhados diversos caminhos de interpretação. Tudo vai depender da vivência de cada um e a familiaridade do espectador com os temas abordados. A mensagem principal, que é transmitida ao longo das cenas de maneira sutil, fica muito clara ao fim do filme. “O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo.”