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Reportagem 94

Um desafio coletivo

Em tempos de pandemia, pessoas comuns encaram o desafio de pensar coletivamente e se propõem a ajudar o próximo de diferentes formas

Texto: Alíria Aristides, Glória Maria Pinho e Ludmila Rodrigues


Foto: Acervo de Izabel Arruda

Quarentena, circulação restrita, rotina modificada, isolamento social, colapso dos sistemas de saúde, economia em suspenso. O cenário descrito se propagou em uma velocidade aterradora assim como sua origem: a Covid-19. A doença que colocou o mundo todo em estado de alerta é causada por um novo tipo de coronavírus descoberto em dezembro de 2019. O vírus, que não faz distinção entre etnias, credos ou status social, mostrou-se capaz de revelar diversas facetas humanas, do individualismo à solidariedade.

A combinação de fatores como a vulnerabilidade social, a ameaça da doença, a imprevisibilidade do futuro e o distanciamento físico potencializam o surgimento de problemas em diferentes esferas da sociedade. Em meio ao turbilhão de sentimentos, medos e dificuldades, surge a necessidade de agir para amenizar dificuldades sociais, psicológicas e financeiras que se tornam ainda mais evidentes em tempos de pandemia.

É perceptível que as incertezas e a falta de respostas foram capazes de mostrar a importância do apoio por meio de laços comunitários já que, entre os possíveis caminhos a serem tomados, o da união e solidariedade se mostra a melhor saída. As ações podem se manifestar de diversas formas e em diferentes escalas: campanhas de arrecadação são organizadas, pessoas se oferecem para ajudar quem está no grupo de risco, vizinhos se reúnem para cantar na sacada de prédios e espantar a solidão, redes de apoio psicológico são criadas, entre outras atitudes.

Tempos de crise revelam que a vida é coletiva e que os desafios precisam ser enfrentados em conjunto. Os exemplos trazidos nesta reportagem ilustram ações promovidas por pessoas comuns que buscaram agir visando o próximo apesar das mudanças impostas pela realidade atual.

Desde 11 de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente estado de pandemia, a população mundial acompanha atônita o avanço da doença. Em pouco tempo a Covid-19 alterou o modo de viver em escala global, obrigando a sociedade a lidar com mudanças profundas na normalidade a que estava acostumada. No Brasil, a nova realidade imposta pelo coronavírus é assimilada – no momento em que a matéria é escrita – ainda em ritmo lento, à medida que o número de casos aumenta e a ameaça passa a residir na proximidade.

Para evitar o colapso dos sistemas de saúde, devido à alta demanda de hospitalização, diversos governos municipais e estaduais decidiram fechar escolas, universidades, igrejas e estabelecimentos comerciais. Uma parcela dos trabalhadores passou a realizar suas atividades remotamente, a partir de suas casas. Famílias, que antes se reuniam apenas em parte do dia, foram obrigadas ao convívio em tempo integral. A internet se tornou aliada e ferramenta para aproximar o que se encontra distante fisicamente. Outros indivíduos, no entanto, impossibilitados de aderir à quarentena, arriscam-se diariamente para garantir o sustento do mês.

O distanciamento social, uma das principais medidas para frear a disseminação do vírus, corrobora também para o isolamento dos indivíduos. Tais circunstâncias nos fazem enxergar e refletir a respeito de fatos que, por vezes, eram deixados às margens: a importância de saber estar só; o poder estar em casa, e ter o essencial para isto; o papel das lideranças em coerência com suas funções; e o comportamento da população.

Surge também a oportunidade para repensar as relações entre membros de uma mesma comunidade, já que iniciativas que envolvem a coletividade têm se mostrado essenciais para amenizar dificuldades que se acentuam durante a pandemia.

Apoio

Os cuidados necessários durante a pandemia vão além de não sair de casa e lavar bem as mãos. O estado de isolamento e a tensão deste momento podem também acarretar outras consequências. A psicóloga Marina Paludo, 27, relata que a experiência de isolamento pode trazer à tona sentimentos que antes eram mascarados pela rotina. “A principal consequência da situação de isolamento é a obrigação de estar conosco, no sentido de ter que lidar com nós mesmos. E isso pode ser bom ou ruim, dependendo de como anda a nossa saúde mental”, explica.

Diante das novas necessidades, Marina adapta seu trabalho para a plataforma digital
Foto: Acervo de Marina Paludo

Formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e atuante na área de saúde mental há cinco anos, ela ressalta a importância de trabalhos que beneficiem a sociedade, não apenas por ter se graduado com recursos públicos, mas por acreditar no compromisso da própria profissão. “Para Freud, toda psicologia é uma psicologia social. Porque não existe indivíduo isolado, sem contato com um contexto social”, diz. Ela ainda acrescenta que em função disso os profissionais dessa área precisam se adaptar à demanda atual.

Seguindo esses pensamentos, Marina, e outras três psicólogas – Aline Cantini, Daniele Xavier e Raquel Wahl – deram vida ao projeto Escuta Aberta, que visa acolher pessoas que tenham se sentido psicologicamente afetadas pelas mudanças radicais e sem precedentes. “Nós estamos realizando de maneira voluntária, para quem tiver necessidade. Porque sabemos que os atendimentos presenciais estão restritos, impossibilitados, e nem todo mundo tem condições ou dispõe dos meios para receber algum auxílio psicológico agora”, conta [fonte].

O Escuta Aberta, apesar de não se tratar de um programa de atendimento psicoterápico, propõe uma escuta qualificada, que se difere daquela que ocorre entre amigos e familiares, pois além de ser reconhecida pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP), acontece sem juízo de valor, de forma sigilosa e embasada no conhecimento construído ao longo da carreira profissional. “Passar por isso, sem o devido apoio, pode ser uma experiência realmente difícil para muitas pessoas. Cada um de nós tem a nossa vida, a nossa história, o nosso modo de reagir diante das situações”, aponta a psicóloga Marina.

A modalidade de atendimento online, via Skype, já existia antes da situação pandêmica, porém ficou mais popular ao se tornar a principal alternativa para os psicólogos enfrentarem esta realidade. Os encontros do Escuta Aberta são agendados previamente e podem se repetir, de acordo com a avaliação profissional sobre as necessidades e particularidades de cada indivíduo.

O projeto defende que, neste momento, pensar coletivamente é sinônimo de vida. “Todos nós estamos inseridos numa sociedade, numa cultura, numa época. Então tentar viver de forma alheia a isso, é uma ignorância. Uma ignorância no sentido de não saber, realmente. E de uma alienação que pode se tornar letal”, conclui Paludo.

Ação

Crises como a atual podem aprofundar ainda mais vulnerabilidades sociais já existentes. No Brasil, grande parcela da população vive em situação socioeconômica precária, sem acesso à itens básicos como água encanada, ligação à rede de esgoto, alimentação e moradia adequadas, situações que – mesmo indiretamente – favorecem a disseminação do vírus. Nas campanhas de prevenção contra a Covid-19, ações como distanciamento social e higienização são as mais enfatizadas.

Entretanto, medidas de proteção básicas se tornam inviáveis para indivíduos que não possuem sequer as condições mínimas de sobrevivência. A preocupação com quem vive à margem da sociedade tem sido uma das molas propulsoras a mobilizar pessoas que decidiram agir visando minimizar as dificuldades do próximo. Em Campo Grande, um dos movimentos criados com essa finalidade é o Quarentena Solidária que, financiado por meio de vaquinha online, realizou a distribuição de cestas básicas nas comunidades mais necessitadas da cidade.

“Acho que todos precisam se conscientizar de que não adianta ficar em casa esperando passar, pois enquanto essas comunidades carentes estiverem em situação de risco, todos nós estamos. O que me fez agir foi justamente essa consciência de que para chegar do outro lado nós precisamos nos ajudar, não dá para ficar isolado”. A frase dita pela tradutora Izabel Arruda, 30, uma das organizadoras da campanha Quarentena Solidária, demonstra a importância do fortalecimento do senso de coletividade. 

Ao perceberem a necessidade dessa parcela da população na capital, um grupo formado por oito amigos de longa data foi responsável por criar a campanha que arrecadou R$12.630. Encerrada oficialmente no começo de abril, a ação realizada no período de duas semanas superou a meta inicial proposta pelo grupo, que era de R$7.500. Com o valor, foram adquiridas cestas que beneficiaram 182 famílias carentes de Campo Grande.

Em Mato Grosso do Sul, 3% da população entrou na classificação de extrema pobreza em 2018, com renda mensal inferior a R$ 145, sendo ao todo 73.470 mil pessoas. Os dados fazem parte da pesquisa de Síntese de Indicadores Sociais (SIS) divulgados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Essas pessoas têm muito pouco poder de escolha e por vezes sequer informação da gravidade da situação, sobre como se proteger e a importância delas nesse cenário”, explica Izabel. Para a tradutora, o atual cenário é uma oportunidade para refletir sobre a necessidade de pensar como comunidade. “Não adianta você ter uma parcela da sociedade que está bem, que tem condições de saúde, higiene e comida e a outra parcela não ter, porque estamos todos dentro desse mesmo ecossistema, todos seremos afetados”, analisa.

Moradoras da Comunidade do Mandela recebem cestas basicas
Foto: Acervo de Izabel Arruda

Os amigos, espalhados por diversas cidades do Brasil e do exterior, utilizaram a internet e os telefones como ferramentas para mover a ação. “Metade do grupo está fora, metade mora em Campo Grande. Têm pessoas em São Paulo, tem um amigo na Alemanha, uma amiga que está no Espírito Santo. Então a gente fez essa ação praticamente toda virtual, ligando para as pessoas. Fizemos tudo respeitando a quarentena”, conta. 

Para concretizar a ação, foi necessária uma verdadeira rede de solidariedade: o Quarentena Solidária contou com o auxílio de quem contribuiu com doações de dinheiro para a arrecadação online, com a divulgação feita por veículos de comunicação locais, além da mediação de assistentes sociais e organizações, que indicaram os lares com necessidade de auxílio e ajudaram na distribuição. Para evitar aglomerações ou contaminação durante a entrega, os voluntários fizeram a distribuição das cestas aos poucos e seguiram as recomendações de higiene.

Apesar do encerramento da campanha do grupo, Izabel afirma que pretende continuar buscando formas de ajudar. “É importante que as pessoas tomem consciência que existirão mais famílias passando por dificuldades, passando fome, sem ter sabonete para lavar as mãos, e que isso afeta a todos”, ressalta. A tradutora comenta que como a ação conseguiu encontrar uma forma de aplacar a própria ansiedade ocasionada pelo momento. “Isso certamente acalma os ânimos, deixa a gente se sentindo útil, com mais esperança também. Mesmo que você reduza o impacto só para uma pessoa, é uma vida, é válido. E existem aí infinitas formas de fazer alguma coisa para ajudar, não dá para continuar olhando só para a gente”, conclui.

Ligação

Na crise causada pelo coronavírus, há uma parte da população que precisa de atenção redobrada. A simples saída ao mercado se torna arriscada para idosos, pessoas com doenças crônicas, mulheres grávidas e todos que são mais vulneráveis às complicações causadas pela Covid-19. Para evitar a contaminação, a restrição do contato social para esse grupo deve ser seguida ao máximo, o que pode impossibilitar simples ações do cotidiano. Nesse contexto, é possível perceber a multiplicação de apoio dado por pessoas que oferecem seu tempo, seu veículo e sua disponibilidade para ajudar os mais vulneráveis.

O bombeiro civil Jean Lescano, 20, é uma dessas pessoas. Morador de Campo Grande, ele tem dedicado parte dos seus dias a oferecer serviços para quem precisa permanecer em casa. Foi a vontade de ajudar que levou o jovem a publicar em suas redes sociais que estava disposto a ajudar pessoas dos grupos de risco e, desde então, Jean não parou. “Eu busco umas compras aqui, entrego um alimento ali e assim vai. Tem pessoas que eu consigo ajudar muito, tem outras que eu consigo ajudar só um pouco. As ações são diversas, mas eu acho que o trabalho de formiguinha pode ajudar muito”, conta.

Foto: Lidiane Antunes

De acordo com Lescano, a ligação com a própria família é um dos fatores que inspiram a dedicação ao próximo. Convivendo com seus avós, Jean passou a se preocupar com outros idosos se expondo ao risco para realizar atividades necessárias do cotidiano. “Pensei nas pessoas que não tem alguém jovem por perto pra ajudar, um amigo, um vizinho. Aqui em casa faço tudo por eles porque os idosos já precisam de ajuda. Agora ir no banco, lotérica, mercados passou a ser muito perigoso para quem está no grupo de risco”, explica. Desde que se voluntariou nas redes sociais, todos os dias Lescano vai em supermercados, farmácias, lotéricas a pedidos de pessoas que entram em contato. Também resolveu organizar arrecadação de alimentos para famílias que estão passando por dificuldades financeiras.

Além da disposição atual para prestar ajuda, Jean já participava de outros trabalhos voluntários anteriormente, como em campanhas promovidas pela Cruz Vermelha. “Eu me sinto muito mais ligado à comunidade. Às vezes eu não consigo ajudar quem eu quero porque não tenho condições, mas sei que a minha rede de amigos pode ajudar. Esse laço que eu tenho com a comunidade me deixa mais forte”, afirma. Para ele, prestar serviços a quem precisa ficar em casa durante a epidemia é uma forma de se blindar contra a tristeza. “É como se eu não deixasse meu coração esfriar no meio dessa situação. Depois que você começa não consegue parar. Você entende que o seu pouco é muito para o outro”, completa.