Esta reportagem foi construída a partir da experiência imersiva das quatro repórteres que, depois de verificarem que ficam mais de nove horas por dia na tela do celular, resolveram que seriam suas próprias fontes personagens. O resultado você acompanha aqui
Texto: Ariane Vilharva | Gabrielly Pedra | Ingrid Protásio | Sarah Neres

Seria um domingo qualquer de um começo de abril tranquilo e chuvoso se não fosse pelo desafio, passar 24 horas sem o celular. A partir da meia-noite o uso foi totalmente restrito. O primeiro pensamento ao nos depararmos com o início da experiência foi o arrependimento e, principalmente, como faríamos o tempo passar mais rápido.
Ingrid, 20, foi a primeira a começar, antes do horário, e cumpriu além do tempo estabelecido, foram quase 26 horas sem seu smartphone. Às 22h40 do sábado, desligou o aparelho e o jogou embaixo da cama. É como se escondesse aquele objeto que nas próximas 24 horas se propôs a abandonar. Seu principal receio era não conseguir se desconectar à meia noite. Em outra casa, às 23h, Ariane, 20, bloqueou o aparelho. Diferente de Ingrid, seu próximo passo foi ligar o computador para assistir um filme pelo Discord, uma espécie de troca, para manter-se fora do ócio. Enquanto isso, Sarah, 19, aproveitou a última hora da noite em um bar, comemorando o aniversário de uma amiga. E Gabrielly, 22, sofreu, ansiosa pelo próximo dia, se colocou em uma videochamada até meia noite para amenizar o desafio adiante.
00h00 – O início
A luz se manteve acesa para três delas. Gabrielly desligou o celular e o manteve fora do quarto. Sem sono, optou por ler. Ariane também fugia do tédio no notebook. E burlando o sistema, Sarah continuava na festa com o celular, apenas em circunstâncias necessárias, justifica ela.
A experiência para Sarah teve início às 00h58, quando chegou em casa e usou o celular pela última vez para informar ao seu pai que estaria off nas próximas horas. Colocou o aparelho para carregar e foi assistir a corrida de Fórmula 1. A madrugada seria longa, mas levada pelo sono e com a corrida de F1 paralisada por um acidente na pista, acabou adormecendo, em especial, por não poder interagir nas redes sociais sobre o programa que assistia.
O dia amanheceu, e com a ausência do despertador, a percepção de tempo mudou. Sem saber a hora exata, acordaram quando o corpo pediu. O primeiro pensamento de Ingrid, foi “Cadê meu celular?”, seguida da sensação de “irritação”, por não seguir a rotina diária de acesso imediato. Na casa de Sarah, a luz do sol batia na janela, era um sinal que o desafio realmente começava. Surpreendentemente, a manhã foi tranquila, como tinha tarefas a cumprir não pensou no telefone. Sentiu falta da música, e até pensou em usar o antigo rádio de sua avó, mas procurar uma estação que gostasse, demandaria tempo. Isso a fez refletir sobre a facilidade de poder escolher o que ouvir no celular.
Ariane acordou quase na hora do almoço, seu primeiro impulso foi ver as notificações no celular. Tinha bastante, Gmail, Whatsapp, Tiktok e Twitter, todos na tela do aparelho a chamando para o desbloquear. Ela resistiu à vontade, levantou e foi curtir o resto de sua manhã.
Gabrielly acordou atordoada. Já havia se preparado mentalmente para o fato de levantar sem despertador, mas não saber o horário a fez pensar que não tinha outro relógio em casa. Ficou deitada por mais um tempo, receosa de levantar ainda muito cedo. Com a pouca coragem que juntou, decidiu reagir, tomou banho, se arrumou e aproveitou para tomar café com a mãe.
Meio dia
As horas se passaram e com isso a abstinência deu sinais. Na casa de Ariane, só estavam ela e sua mãe, e para aproveitar, do jeito que as duas gostam, o dia foi baseado em assistir filmes, um atrás do outro. Se o que ela fazia era apenas uma substituição de telas, nem se questionou. No horário do almoço, Ariane teve seu maior incômodo até então. Acostumada a almoçar com o celular, sentiu falta do aparelho ao seu lado e teve dificuldade para comer. A partir deste momento, o desconforto se intensificou. Para não quebrar o desafio, de hora em hora ia ao quarto e verificava as notificações do celular sem desbloqueá-lo.
Gabrielly almoçou com a família. Na mesa, todos estavam com seus celulares, sua tia jogava ao seu lado e seus primos rolavam a tela das redes sociais. Começou a se sentir deslocada, suas mãos pareciam procurar pelo aparelho, mas resistiu. Decidiu contar que estava sem celular por um dia e logo vieram as condolências dos mais novos e críticas dos mais velhos a esta “geração conectada”. Sua avó aproveitou para contar dos vários meses que passava sem notícias do marido, enquanto seus tios falavam que não sentiam falta alguma. Agora, a discussão corria em volta deste tema, e a jornalista apenas observava, sem saber o que fazer com as mãos inquietas.
Em torno de 16h, Ingrid encarou o desafio de uma forma mais intensa. Na av. Afonso Pena, em um barzinho, lá estavam alguns jovens, amigos de sua prima que a convidou para assistir a um jogo de futebol. Assim que se sentou, todos os jovens começaram a conversar, Ingrid era única estranha entre eles, sua sensação era de deslocamento, sua mente nesse momento só pensava em pegar o celular e utilizá-lo como um refúgio. Percebeu que sua escapatória em um ambiente não familiar era, obviamente, o aparelho, mas naquele momento estava proibida. Assim, a ansiedade se apresentou e seu único desejo naquele momento era que o tempo passasse.
Ariane conseguiu se distrair por umas horas com a final do Paulistão. Os momentos em que viu filmes e um jogo de futebol foram os que menos pensou no celular. Já Sarah tentou arrumar mais coisas para fazer e, na tentativa de se distrair com canais ao vivo por uma plataforma de streaming, vivenciava a programação dada, sem controle sobre ela. As distrações e a soneca pela tarde fizeram o tempo passar rápido. Acordada, apertava o sensor de botão do celular, uma sensação de alívio vinha ao ver o tempo passando, mas ainda muito devagar.
Desistências
17h12 – Uma briga moral se estabeleceu. Gabrielly precisava pedir um carro de aplicativo e se preparou horas antes para o momento que iria recorrer ao celular. Disse repetidas vezes para si “não é para olhar as mensagens, nem responder as pessoas”. Com o celular já perto, começou a ficar ansiosa e perguntava de minuto em minuto para a mãe o horário. Os questionamentos do que acontecia no mundo, se alguém queria falar com ela e ainda mais, o desejo de responder mensagens, a desestabilizaram. O coração começou a bater mais rápido, como se quisesse sair. Andava de um lado para o outro e o ar parecia difícil de respirar. Não pensou, só ligou o celular de volta, respondeu às notificações e entrou no carro que havia pedido pelo aplicativo. Sentiu o amargo gosto do fracasso envolto na preocupação de admitir que precisava de limites.

22h – Ariane não conseguiu mais, aquelas notificações pareciam a convocar “Já se passou tanto tempo, por quê não usar o celular só uns minutos?” O que seria só por uns instantes, interrompeu em definitivo a experiência. Se sentindo culpada por ter falhado, escreveu sua última anotação.
“Não aguentei e usei o celular, cai na tentação mesmo, já estava agoniada e me sentia numa prisão. Após poder usar, foi como se eu estivesse livre”

Resistências
Sarah começou a sentir irritação. O celular estava tão perto que chegou a pensar em usá-lo, mas resistiu. As horas passavam e se aproximava do fim, “o quase” era a pior parte. A sensação de tédio levava o seu olhar diretamente para o smartphone. Sentia vontade de fazer tantas coisas, mas para todas precisaria do celular: assistir tutoriais, ler livros online, ver redes sociais. As anotações em seu caderno expressam o desespero “NÃO AGUENTO MAIS”. Para aliviar começou a andar pela casa, de um cômodo para o outro.

Na casa de Ingrid as emoções se intensificaram, os minutos se tornaram uma eternidade, o tempo se recusava a passar, sua ansiedade aumentava e apesar da vontade de adiantar o uso, respirou e continuou no propósito. Aproximadamente 23h Ingrid foi ao quarto, pegou o celular embaixo da cama e o colocou para carregar, nesse instante só pensava na chegada da meia noite e em uma carga de 100% para usá-lo ao máximo assim que permitido. Quando o relógio marcou 23h50 ela o ligou, como em uma contagem regressiva. Quando o celular marcou meia noite uma sensação de liberdade e alívio se fez presente.
00h00- Estamos ON
O relógio declara encerrado o martírio. Imediatamente, as repórteres que seguiram com o desafio até o horário proposto abriram as mensagens com uma grande adrenalina para compartilhar as experiências com as/os colegas.
– Eu não aguentava mais! – Sarah encaminhou no grupo.
– Eu falhei, gente! – respondeu Gabrielly.
– Que agonia. Eu apertava o botão para ver se tinha notificação – comentou Ariane.
– Um terror! – respondeu Ingrid. – Eu desliguei a bomba e escondi, não tenho esse controle todo.
– Meu Deus! Acho que vou limitar meu tempo de uso nas redes sociais. – Finalizou Sarah, depois de uma autoanálise.
Conexão com especialistas
De acordo com a pesquisa Tecnologia da informação e Comunicação (TIC) Domicílios, de 2023, feita pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, no Brasil, quase 27 milhões de jovens entre 16 e 24 anos acessam a internet todos os dias. E além da faixa etária, as repórteres também se incluem em outro dado, do Relatório Digital Global, de 2024, realizado pela “We are social’ e a “Meltwater”, que mostra que o Brasil ocupa a segunda posição nos países com o maior tempo de tela: uma média diária de 9h13min.

A necessidade de conexão vem de um estímulo que é caracterizado por qualquer agente que provoque uma reação motriz, ou seja, uma força que impulsiona, que faz prender o usuário na internet. A dependência não química e a química são baseadas no estímulo, no sistema de recompensa, o psiquiatra Iago Davanço afirma que é isso que nos faz continuar a consumir aquilo.
A falta de consciência em relação ao tempo gasto, é o principal reflexo da dependência. Por fazerem parte do cotidiano, a princípio, as redes sociais não parecem nocivas. Porém, a psicóloga Mariana Baroni, destaca que a utilização excessiva pode acarretar em depressão e ansiedade. “Vai criando um nível de depressão na pessoa, porque ela tá vendo a vida passar, mas ela não consegue sair dali, não consegue deixar as telas justamente por conta dessa dependência”.
Os algoritmos se baseiam na análise de dados e selecionam informações de nosso interesse, o que causa um ciclo vicioso. O professor visitante na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), pesquisador e mestre em Análises de Meios de Comunicação, Carlos Busón explica a dependência fisiológica do vício. “Quando você tá tão feliz dentro do sistema, você não quer sair dele. Então o que fazem estes sistemas, é com que a gente fique com a dopamina em elo com a informação”.
A dopamina é um neurotransmissor que, dentre suas principais funções, atua como mensageira na estimulação do cérebro na criação do prazer e da motivação. O problema é que as redes sociais interferem na quantidade liberada de dopamina, se usadas por muito tempo. O psiquiatra Iago Davanço conta que o excesso de estímulo afeta a mudança de comportamento, pode gerar maior irritabilidade e ansiedade, assim como interferir na concentração e no esquecimento.
Apesar disso, na psiquiatria não se diagnostica a dependência tecnológica como doença, pois além de ser uma análise muito individual, existe uma dificuldade da percepção desses casos. Davanço ainda explica que não há medicamentos específicos para isso. “Olha, isso aqui é para dependência do Instagram, isso aqui é de joguinhos. Não tem, mas têm medicações para ajudar na questão do impulso”. Alguns medicamentos e antidepressivos, podem ajudar, por exemplo, a aumentar o tempo entre o pensar no uso e o uso de fato.
Apesar dos pesares, as redes sociais também têm muitos pontos positivos na vida de jovens e adolescentes, é ali que eles podem se comunicar e se expressar, criar um senso de pertencimento e até mesmo colaborar para a auto expressão e a auto estima. Ainda, é importante ressaltar que de modo algum às repórteres buscaram o auto diagnóstico, o exercício foi apenas uma maneira de refletir sobre até que ponto somos livres ou reféns da tecnologia. Por enquanto, estamos presas!.
