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Opinião 101

Uma crônica sobre crônica

Texto: Maria Luiza Massulo*
Ilustrações: Gabriella Couto


Escrevo aqui como quem anda se equilibrando no meio fio. Um pouco lá, um pouco cá. Um pouco de jornalismo, um pouco de literatura. Muito de mim e muito de todas as outras pessoas e histórias que cruzaram o meu caminho nesses últimos dias. Assim, as palavras vão se encontrando e se tecendo em papel, sem qualquer outro objetivo senão o de dissecar as minúcias da vida.

A crônica é texto anfíbio, que passeia entre o real e o que nasce em mim a partir dele, e o prazer de escrevê-la está justamente na sua despretensão de ser. É conto, carta, prosa ou só um desabafo do autor? Eu mesma não saberia dizer, ainda que tenha devorado tudo que Rachel de Queiroz, Fernando Sabino e Caio Fernando Abreu já escreveram. Hora na água, onde flui a imaginação, hora com os pés firmes no chão, a crônica se encontra na encruzilhada, onde o jornalista continua no seu papel de intérprete dos acontecimentos recentes, mas também pode ser um pouquinho gente nesse mundo agridoce, com seus próprios achismos, dores e emoções.

Me atrevo a dizer que todo cronista é também um sofredor crônico. Ao assumir esse papel, é importante que o autor se reduz ao essencial e observe o mundo com o mesmo estranhamento e curiosidade que uma criança. Para ser testemunha das coisas banais e esmiuçar a vida, é preciso dar lugar aos sentimentos e permitir que eles se alojem na carne, feito ferida. Nada é tão pequeno ou insignificante que não possa ser escrito, e o que transforma o comum em algo extraordinário é o quanto aquilo é capaz de nos gerar afetos.

Desde o século XVIII as crônicas se fazem populares nos jornais brasileiros e grandes nomes se eternizaram em suas páginas amareladas, escrevendo semanalmente sobre a vida que os atravessava. Fernando Sabino escreveu sobre a fome e a morte, Clarice Lispector sobre não ser cronista, Rubem Braga sobre sair para tomar uma cafezinho no meio do expediente. Nesse meu caminho ainda curto no jornalismo, me encontrei nas crônicas e, constantemente, me perguntava o que era preciso para que eu ocupasse o mesmo espaço que os autores e autoras que eu tanto admiro um dia ocuparam.

Há um ano cruzei com Zélia e ser um meio para contar a sua história fez de mim um pouco mais cronista. Era uma tarde de quinta feira quando bati na porta e me deparei com uma pilha de cartas sobre a mesa. A senhora, com seus 89 anos, diagnosticada com Alzheimer, se mantinha escrevendo, ainda que fosse para um primo ou uma tia, todos já falecidos.

Lembro de escrever “Do Tempo, para Zélia” como quem enrola para arrancar o band aid. Passei semanas remoendo as palavras que li em suas cartas, vi de perto suas dores e suas alegrias e me deixei imersa nessas emoções até que o transbordar fosse inevitável. Tinha dias que parágrafos inteiros eram praticamente cuspidos de dentro de mim às pressas, em outros encarava a tela do computador durante horas tentando transformar em texto escrito aquele sentimento ainda desconhecido que há tempos se apossava de mim.

A crônica me presenteou não só com uma premiação, mas me fez entender que essa mesma vida, que me emociona, me intriga e me irrita, precisa urgentemente ser escrita, para que histórias como a de Zélia, que dá lugar e representa a trajetória de tantas outra senhoras também com Alzheimer, não se percam entre assuntos “mais relevantes”.

(*)Maria Luiza Massulo é aluna do curso de Jornalismo da UFMS e foi premiada na 29a edição da Exposição de Pesquisa e Produção Experimental em Comunicação (Prêmio Expocom 2023), mostra competitiva promovida pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), na categoria de Jornalismo “JO 14 Produção em Jornalismo de Opinião”, com a crônica “Do tempo, para Zélia”, que fechou a 99a edição do Jornal Laboratório Projétil, na editoria de Opinião.