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Opinião 99

Uma eleitora entre nós

Ana Carolina Gonçalves


Quando eu nasci, a democracia brasileira tinha recém completado 16 anos. Os períodos realmente democráticos na história do Brasil parecem não ser a regra da política nacional. Por esse motivo, percebo que o país legado à minha geração é um Brasil muito diferente daquele herdado pelos meus pais e avós. Minha geração não lutou para restabelecer o estado democrático de direito, assim como não se sentiu obrigada, por aqueles que haviam lutado durante duas décadas contra o autoritário e violento Regime Militar, a se mobilizar politicamente.

Ilustração: João Lucas

Olhar para um passado recente me permite enxergar um país diferente, um Brasil do qual eu apenas ouvi falar. Esse Brasil viveu sob um período de considerável estabilidade e colheu os frutos por se tornar a sexta maior economia do mundo. Um Brasil reconhecido internacionalmente por sua diversidade cultural e hospitalidade. Um Brasil que realizou mudanças na educação para possibilitar a entrada de pessoas pobres, pretas, pardas e indígenas no ensino superior. Um país que buscou expandir o leque de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Me parecia um Brasil que caminhava para ser melhor. Mas que não conseguiu.

Motivados por um reajuste de vinte centavos na tarifa do transporte público, em junho de 2013, a juventude brasileira saiu às ruas para protestar contra o governo que, supostamente, tinha tentado garantir um pouco mais de dignidade à população. Impulsionados por outros movimentos sociais liderados por jovens ao redor do mundo, como o Occupy Wall Street e a Primavera Árabe, as ruas das maiores cidades do país foram tomadas por uma juventude que se fez ser ouvida.

Não foi só pelos vinte centavos. Concordo com quem diz que as Jornadas de Junho foram o início do colapso daquele Brasil que nunca tinha nadado com tanto empenho, mas que, como sempre, acabou morrendo na praia. Tivemos que sair de cena. O movimento de 2013 tão logo começou, foi cooptado por grupos civis e políticos que se beneficiam e enriquecem com as desigualdades da nossa história. Esta caminhada, que está longe de ser solitária, foi e, ao que tudo indica, sempre será realizada pelos “subalternos” que defendem o seu direito de serem menos explorados do que os demais.

Não sei se, realmente, vivemos o nosso próprio “milagre brasileiro” naquele passado recente, ou se o ímpeto da juventude nos fez acreditar que podíamos tudo. Até mesmo acreditar na existência de um Brasil melhor. Hoje sei que subestimamos o poder de reação das gerações dos meus pais e avós. Vivemos por muito tempo submersos em uma realidade que não condizia com a história do Brasil. Nos esquecemos, ou até mesmo nem sequer sabíamos, que o menor dos lampejos de igualdade seria suficiente para fazer acordar o gigante. O gigantesco passado reacionário de um país que se vê como a eterna colônia de Orleans e Bragança.

Se 2018 foi mesmo o golpe mortal contra a ideia de um Brasil diferente do que realmente é, esse ano também foi o despertar político de uma geração que se viu, pela primeira vez, como cidadã brasileira. Fomos às urnas e perdemos. Vimos, em primeira mão, a ingenuidade e a grandeza da democracia: ela permite que até pessoas antidemocráticas sejam eleitas.

Existem muitos paralelos entre eu e a nossa “democracia em vertigem”. Ela sempre precisou lutar para ser consolidada, e nunca esteve imune aos ataques, questionamentos e desmontes. E eu, que sempre pensei em deixar o país, nunca me senti uma brasileira tão necessária quanto agora para defender a nossa democracia. A melhor notícia é que há muitos jovens brasileiros que se sentem iguais a mim. Nunca antes o número de jovens entre 16 e 17 anos que tiraram o título de eleitor cresceu tanto. Quando eu nasci, a democracia brasileira completou 16 anos. Ela já tinha idade para votar. Existe uma eleitora entre nós.