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Opinião 99

Uma luta compartilhada

Maria Luiza Massulo


Laura e eu nos conhecemos aos cinco anos na escola. As duas medrosas choravam ao entrar na sala de aula, e assim, por meio da identificação, nos tornamos amigas daquele tipo: inseparáveis. Combinávamos de vestir as mesmas roupas, comprávamos brinquedos parecidos e éramos uma só, até entendermos que essa fusão em uma mesma pessoa não era possível, não só porque inevitavelmente somos duas pessoas, com gostos, criação e desejos distintos, mas porque a cor da nossa pele, também, nos torna diferentes. Ainda que compartilhássemos de uma existência muito parecida e passássemos juntas pelas mesmas situações, eu sou branca e Laura é uma mulher preta.

Ilustração: Sara Ariel Wong

Quando completamos 13, decidimos, juntas, abrir mão da chapinha e da progressiva e enquanto o meu cabelo ondulado era elogiado como sinônimo de uma mulher decidida, que começava a se aceitar, Laura ouvia das formas mais sutis, até as mais agressivas, como o seus fios eram muito mais hidratados e bonitos quando alisados. Vira e mexe no banheiro, sem permissão alguma, seu cabelo era alvo de mãos curiosas, que a tratavam como um ser exótico. Aos 15, me ligou chateada porque o garoto por quem estava apaixonada não assumia meninas como ela para os amigos. Aos 16, enquanto eu, encantada, me envolvia em lutas contra a desigualdade de gênero, Laura não conseguia se sentir representada pelos movimentos feministas e constantemente se queixava por estar lutando pelo direito das outras, mas nunca pelos dela. “Os problemas de uma mulher preta ainda não estão em pauta”, reclamou uma vez, inconformada.

Na minha ignorância, não entendia que as minhas experiências e as consequências dos meus comportamentos não se aplicavam à minha melhor amiga. O privilégio da pele branca, durante muito tempo, me fez enxergar as minhas vivências como universais, afinal era tudo o que eu via na televisão, nas revistas e nas redes sociais. Descobrimos o mundo juntas, passamos juntas pela transição capilar, entramos juntas para movimentos feministas e a forma como lidamos com tudo isso nos fez enxergar que poderíamos até tentar, mas todos os nossos esforços para fazer com que essa ponte que nos separava se tornasse menor, pareciam em vão. Mesmo que as nossas causas carregassem o mesmo nome, precisávamos lutar a partir de perspectivas bem diferentes.

Sendo vergonhosamente sincera, mesmo estando com Laura em vários dos seus momentos difíceis, demorei para entender que muitas das dores que a afligiam não eram uma exclusividade dela. O racismo é um problema social e foi no começo da juventude que eu descobri que não ser racista é muito pouco e não é suficiente. No Brasil em que vivemos, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2019, a cada dez mulheres vítimas de feminicídio, seis delas são negras. Um jovem preto têm 2,5 mais chances de morrer por homicídio e representa 75% dos mortos por intercorrências policiais. Encarar esses fatos como números talvez doa muito menos, mas são pessoas, famílias e crianças e, vira e mexe, eu penso que poderia ser Laura, reduzida a uma estatística.

Meus pais nunca precisaram me ensinar como me portar em uma revista policial. Minha inteligência e capacidade nunca foram questionadas por causa da minha cor. Em brincadeiras infantis, nunca fui limitada a papéis como os de babá e empregada. Nunca tive meu cabelo tocado por outras mulheres em banheiros de escola e baladas, como se comigo o consentimento pudesse ser descartado. Nunca fui seguida por seguranças em mercados, nunca me trataram como alguém, naturalmente, agressiva, nunca me negaram vaga de emprego por conta da cor da minha pele. Estar alheio a essa realidade é o que eu chamo de privilégio branco, acrescido de uma total falta de consciência social.

Como estudante de jornalismo, escrevo sobre o mundo que vivo e sobre aqueles que não tenho acesso direto, mas que eu observo e me contam. Não sou a protagonista dessa história, muito menos uma heroína que luta contra o inimigo e salva os menos favorecidos. O branco é o grande responsável por permitir que o racismo se mantenha na sociedade. A minha grande dica, caso você também queira contribuir de alguma forma, é: destine um pouco da sua atenção e assista, escute, leia, valorize e conviva respeitosamente com pessoas de todas as raças, especialmente as diferentes da sua.