A cultura sertaneja e a música entrelaçando famílias distintas, o gosto musical e os legados como ponte para uma comunidade.
Texto: Denize Rocha e Nathália Alcântara

Foto: Grasiele Roldan
Com identidades únicas de costumes e valores, as músicas sertanejas permeiam os churrascos em família, as rodas de viola, o deitar de um peão, o ensinar da lida no campo, e mesmo com as peculiaridades de cada pessoa ou grupo, contribuem para forjar os elos que unem comunidades pelo interior do país. A música cria uma ligação entre pessoas, que não precisam estar juntos fisicamente, mas que partilham das mesmas ações e vivências e esse partilhar conecta uma pessoa à outra.
Ao cantar a vida no campo e a força das pessoas que nele trabalham a música sertaneja, e mais especificamente aquilo que é chamado de ‘sertanejo raíz’ retrata essas lidas e o sentimento pela união que vem de gerações e tradições. E nesse sentido, ela é muito diferente do sertanejo universitário, que prioriza a modernidade e o amor.
Mato Grosso do Sul e o sertanejo
Mato Grosso do Sul é rico em aspectos da cultura sertaneja, seja pelo fato de grandes nomes dos vieses raiz e universitário terem nascido ou viverem no estado ou em função do histórico de atividades ligadas à pecuária e agricultura. Os valores da música caipira aqui se enraizaram, e isso influenciou na trajetória das famílias.
“A cumplicidade e o amor que as famílias têm pelas histórias das gerações anteriores é para mim o que forma o elo dessa cultura, porque esse amor ele é perpetuado. Ele nos ensina e é o que faz manter tudo isso”, diz a estudante de Medicina Veterinária Rafaela Straliotto Weis, 20, natural de Nioaque, que cresceu na lida do campo dentro da fazenda São Sebastião, juntamente com sua família.

Ela conta que desde a infância os pais e avós costumavam se reunir para ouvir as músicas sertanejas em encontros, e churrascos. “A gente é acostumada a ouvir música. Meu pai gosta muito dessas músicas sertanejas. Fica ouvindo e lembrando como foi a infância dele. É algo que desde pequena esteve muito presente, a música raiz”.
Mesmo tendo deixado a vida no campo para se dedicar à sua formação, no dia-a-dia sempre recorda de onde veio, de como ama e considera boa a vida na fazenda, e quando pode sempre volta. E não abre mão de participar das reuniões em família, com muita música, comida e dança. “Pois sempre que eu estou lá parece que minhas forças são renovadas para continuar a vida aqui”.
A estudante relata que ficar longe da família e da vida no campo é muito difícil. “A adaptação foi um pouco difícil, mas eu já me acostumei. Sinto falta da vida no campo, lá a vida é muito saudável. E eu sinto falta dos meus pais”.
Saudade de casa
A saudade de casa é um sentimento de muitos jovens que como Rafaela, saem do campo para morar na cidade. Essa mesma vivência é compartilhada pela estudante de Direito, Eduarda de Paula, 21. A moda de viola, o arroz carreteiro e o acordeão do avô são para ela lembranças importantes que carrega consigo mesmo depois de ter saído da roça. Por isso não abre mão de participar das reuniões em família que, assim como no caso de Rafaela, são acompanhadas de cantorias, pratos típicos e festa, comuns nas famílias.
Ela diz que desde pequena o contato com os avós maternos foi de grande valia para sua paixão com a música. “Desde que me conheço por gente, meu avô nunca foi de cantar, mas ele sempre escutou muita música sertaneja, então eu sempre acompanhei”. Aos seis anos de idade ela ganhou um violão e relembra que mesmo sendo muito nova, colocava um DVD e ficava em frente à TV tocando e ‘bagunçando’.
“Meus pais começaram a ver que eu tinha talento. Eles me pediam pra cantar e tocar, me apoiando e me ensinando algo que faltava, porque eu não tinha muita experiência. Esse é o momento que me marca, o apoio. E eu nunca mais parei de tocar”.
Hoje, Eduarda toca em festas onde seus familiares estão reunidos, na beira do rio, ou em suas pescas. Conta também que, além da música, a culinária que aprendeu com sua família é algo que lhe marca. “Quando eu aprendi a fazer o arroz carreteiro, participar e aprender, saber fazer é muito bacana. São comidas tradicionais, são receitas passadas de pai pra filho, e se um dia faltar o homem que faz carreteiro eu posso fazer, porque eu sei, eu aprendi! Isso é muito marcante”.
Eduarda conta que as festas em família não são as mesmas sem uma boa música sertaneja, e que quando falta o som, alguém sempre encontra um jeito de tocar. “Tem que ter sim a música, tem que ter roda de conversa, tem que ter dança porque um complementa o outro. Para que a tradição permaneça forte, depende de tudo isso junto. Se a gente está reunido e falta a música, ai já não é a mesma coisa. Alguém pega o violão, já muda”.

Foto: Flávio Feitosa
Legado familiar
As tradições familiares dão a sensação de pertencimento, do legado que está sendo deixado. “São os mesmos gostos, estão ali por uma mesma causa que é continuar com essa cultura. São gratos quando ensinam algo e a gente, os mais novos, correspondemos, porque não se torna algo perdido. Quando têm essas rodas a música está muito presente, os gostos são os mesmos, o que faz não ter nenhuma barreira. Realmente é o sertanejo, a cultura, o prazer de estarem reunidos, em família, levando isso de geração em geração. É comunitário”, diz Eduarda.
Para Rafaela não é diferente. “Desde sempre meus avós nos ensinam o que é mantido nas gerações, e o exemplo do que é mantido, de como as coisas devem ser feitas. Essa é a forma que eles passam para gente. Nós aprendemos e carregamos conosco esses aprendizados no dia a dia”.
Atualmente a música caipira não está mais no cenário da música, pois quase não há espaço na mídia, que visa lucrar. Mas a música sertaneja raiz ultrapassa obstáculos e sempre atrai novas pessoas. Mesmo com o espaço reduzido não deixa de trazer sentimentos e se mantém viva devido as tradições familiares e ao pertencimento a uma comunidade.
O que chama atenção dentro da cultura sertaneja são as tradições mantidas, que todos carregam, destaca Eduarda. “Pode passar quantos anos for, ninguém esquece. Onde você chega as pessoas param para ouvir. Podem nem gostar de sertanejo mas quando alguém chega e tira o violão e canta alguma moda, as pessoas param para ver e ouvir, e isso me chama atenção. Apesar de tudo evoluir no mundo, a cultura sertaneja ainda está presente”.
Tudo isso sempre foi feito com muita música sertaneja e quem convive com a saudade de um ente querido, do campo ou das memórias que ali fizeram, utiliza da música para voltar no tempo, e numa fração de minutos sentir seus laços renovados.
Isaias Gregório, 44, atualmente barbeiro na cidade de Campo Grande (MS), dono de uma trajetória como vaqueiro, conta como era trabalhar em uma fazenda laçando animais que necessitavam de medicamentos. Ele explica que aprendeu a laçar por necessidade do próprio trabalho, e que se apaixonou pela atividade de laçador. Mas precisou abandoná-la devido a uma leucemia, que o impede de se expor ao sol. “Eu me lembro da minha mãe trabalhando na roça, carregando balaio de milho, quebrando milho, cortando arroz junto com meu pai, eu, meus irmãos. Eu apartando as leiteiras, pegando os bezerros… Isso é marcante. Eu tenho saudade. Me lembro da minha mãe fazendo valeta no pasto. Eu me lembro muito disso”.
Isaias destaca a importância da música. “A música sertaneja é maravilhosa para um sertanejo. A música é tudo”. Nela alguns instrumentos são caracteristicos. A gaita de sopro, a sanfona, a viola e o berrante entre outros, são simbolos da cultura caipira, conhecida como ‘sertanejo raiz’. As músicas causam nas pessoas. As melodias são destinadas a trazer saudade, e as letras são cantadas por pessoas com histórias diversas que acabam promovendo a identificação por meio do gênero musical, e assim formando os elos e grupos.
A música raiz e o homem no campo
A música sertaneja faz parte de um cenário musical rico, cheio de simbologias que se refere aos costumes, à tradição e a identidade do povo do campo. São canções compostas e cantadas por pessoas que tiveram que ir para a cidade por necessidade, ou até mesmo pessoas que venderam suas terras ou foram expulsas.

Foto: Acervo de Isaías Gregório
Não há faixa etária para apreciar a música sertaneja raiz, nem que defina o amor por ela. “O sertanejo passa despercebido com um chapéu diferente e simples. É humilde. Ele traz debaixo da unha a terra vermelha que ele lavrou, traz na pele a marca do sol. Olha a palma da mão e tem calo, de lavrar e capinar. São essas as especificidades e particularidades de um povo sertanejo”, diz Isaías.
Uma das características marcantes da canções sertanejas são suas letras, carregadas de histórias das comunidades, como canta Sérgio Reis:
“Quase chorando embuído nesta mágoa
Rabisquei estas palavras e saiu esta canção
Canção que fala da saudade das pousadas
Que já fiz com a peonada junto ao fogo de um galpão”
ou Daniel:
“Poeira da estrada só resta saudade
Poeira na cidade é a poluição
Não se vê vaqueiros tocando boiada
Trocaram o cavalo pelo caminhão
E quando me bate saudade do campo
Pego a viola e canto a minha solidão”.
Voltada à população mais simples, as letras são cheias de dor, sofrimento e também retratam a beleza da vida no campo, da lida diária, da saudade de casa. São letras românticas, engraçadas que mostram as diferenças do homem do campo para o da cidade. São duelos, causos, paródias, histórias e acontecimentos. Tais canções mostram a cumplicidade e a amizade que nasce no lombo do cavalo, ao se estender por longos dias na comitiva. Falam da invernada e do barulho da trovoada, sobre perder um parceiro no acidente de uma boiada que estoura, enterrar um amigo que tocava o berrante, se despedir da família sem saber o que os espera. É uma picada de cobra, uma onça que cruza o caminho, é a incerteza de não voltar para casa.
Um exemplo disso é a travessia do gado nas comitivas, retratada pelo jornalista e compositor Dener Dias, 34. Ele é autor de ‘Poeira branca’, uma canção sobre a lida de um vaqueiro e de um peão de comitiva. Dias relata que nunca compôs até participar de uma comitiva, onde sentiu-se tão motivado pelo ambiente, que passou a compor. “Foi minha primeira música. Tamanha era a inspiração daquela vivência como peão de comitiva no pantanal, que nasceu ‘Poeira branca’, com versos como ‘Abra a porteira, nossa comitiva vai passar! Dez mil cascos levantam poeira branca’”.

Foto: Dener Dias
Uma estratégia usada pelos peões para passar os dias enquanto tocavam o gado era relembrar uma boa moda de viola. Mesmo sem o instrumento eles não deixavam de cantar. “Não tinha violão, a gente estava ao redor do gado. Ficava cuidando o gado o dia todo. Aí a cabeça começa a divagar, e quase sempre vai pra algum verso de música sertaneja. Ao passar dos dias as modas se repetiam. Eu pensava bastante em uma música, ‘Travessia do Araguaia’, de Tião Carreiro e Pardinho”, relembra Dener.
Para ele, a música, a comida e as tradições do povo sertanejo influenciam na formação dos elos comunitários. “O campo em si, a vontade de estar lá, música raiz, o que faz o rural ser o rural. Essa é a ligação do homem ao campo”. Todas essas vivências levam a conexão entre as pessoas. Tudo isso são caracterizações em comum de uma comunidade que usa a música sertaneja para manter esses hábitos e repassá-los.