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Reportagem 96

Vida e trabalho através de telas: e agora?

O número de trabalhadores em home-office dobrou após o início da pandemia. E patrões e empregados precisam se adaptar à nova rotina

Texto: Emily Lima | Raissa Quinhonez
Ilustração: Emily Lima


A prática do home-office não é nenhuma novidade entre algumas empresas no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) cerca de 3,8 milhões de brasileiros trabalhavam em home-office antes da pandemia. Com a necessidade do isolamento social para a prevenção da Covid-19, os dados mudaram. O número de pessoas que trabalham remotamente chega a 7,9 milhões de acordo com pesquisa divulgada em novembro de 2020. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), 27,1 % das pessoas que estão em trabalho remoto possui curso universitário ou pós-graduação. 

Essa súbita transformação fez com que patrões e empregados tivessem que se adaptar a uma nova rotina. Os escritórios se esvaziaram, e as casas viraram também local de trabalho. Ter que conciliar família, trabalho, estudos e lazer em um só lugar e, na maioria dos casos, junto de pessoas que vivenciam a mesma situação, tornou-se um desafio. Além de precisarem aprender a lidar com toda uma carga emocional provocada pelas angústias da nova doença e pelo isolamento, os trabalhadores também se viram na necessidade de adaptar o espaço físico de casa para um melhor desempenho laboral. A situação é global, e grandes empresas como Google, Twitter e Facebook aderiram a esse modelo de trabalho logo no início da pandemia. Segundo uma pesquisa realizada pela BBC sobre as empresas do Vale do Silício, o retorno ao trabalho presencial ocorreu um ano após o início da pandemia. A flexibilidade pode ser maior a partir de agora, mas os empresários perceberam que o trabalho remoto em tempo integral não é tão eficaz quanto presencialmente.

Saúde mental e ergonomia

Se escritórios e empresas têm seus espaços geralmente projetados para atender melhor as atividades dos funcionários, em casa nem sempre é possível ter essa estrutura adequada. “Ergonomia é a melhor adaptação do móvel para o seu trabalho. Não só do móvel, mas do imóvel também. Porque entram questões como iluminação, temperatura do ambiente, acesso ao banheiro e acesso à água. São os elementos do ambiente sendo mais bem usados para o local de trabalho”, explica a fisioterapeuta Graziele Schmidt.

De acordo com ela, corpo e mente se complementam quando o assunto é trabalho, e o conforto e adequação dos imóveis estão ligados também à saúde mental. “A saúde é um completo bem-estar físico, psicológico e emocional”, afirma.

E seria praticamente impossível esperar que as residências estivessem adaptadas ao trabalho, já que o número de trabalhadores em home-office dobrou da noite para o dia. “Nós estamos em uma realidade muito diferente, onde não fomos preparados. Isso modificou o nosso comportamento”, afirma a psicóloga Mônica Wanderley.

A dificuldade em lidar com essa mudança brusca provoca em muitas pessoas a presença de diversos sentimentos e reações. De acordo com estudo realizado pela Universidade Estadual de Maringá isso pode aparecer na forma de medo do avanço do vírus, medo de adoecer, irritabilidade ocasionada pela falta de respostas, angústia e tristeza por causa do isolamento social.

Os dias se confundem. Não têm hora para começar e nem para acabar. Quem aderiu ao home-office antes da pandemia não esperava que trabalhar em casa se tornaria um desafio. Isso porque, antes, era possível sair, encontrar os amigos e colegas de trabalho sem medo do vírus. “Quem estava acostumado já tinha as ferramentas que precisa, tem uma estrutura montada. Só que com essa questão da pandemia, estamos todos ‘desequilibrados’, Não está fácil para ninguém. As pessoas se viram fechadas dentro de casa. As que estão saindo para trabalhar estão com medo de pegar uma doença como a Covid. Isso nos traz muitas incertezas. Trabalhar e ter que lidar com isso não está sendo fácil”, afirma a psicóloga Mônica.

Mas mesmo com os problemas enfrentados no home-office em meio a pandemia há quem só veja vantagens. Lyra Líbero, jornalista e empresária que um mês antes do início da necessidade de isolamento social havia fechado o espaço físico de sua empresa e começado a trabalhar em casa, diz que não pretende voltar ao modo anterior. Ela afirma que sua qualidade de vida melhorou, e que passou a se alimentar e a dormir melhor depois que começou a trabalhar em casa. “Eu só comia em restaurante e fast food. Me tornei vegetariana no meio da pandemia, e provavelmente isso não aconteceria. Estando em casa eu consigo cozinhar minha própria comida, me planejar, eu consigo ter um domínio maior nessa parte de alimentação, então minha qualidade de vida por causa disso é melhor. Eu não tenho a questão do deslocamento, então eu consigo dormir um pouco mais”, explica.

Lyra investiu em melhorias no espaço físico para trabalhar em casa (Foto: Arquivo pessoal)

Mas o home-office tem seus próprios desafios. A procrastinação é uma armadilha muito comum enfrentada por quem trabalha em casa. Aquela ‘olhadinha’ nas redes sociais pode tomar horas do seu dia, fazendo com que a produtividade não seja suficiente para dar conta de todas as responsabilidades. Isso pode deixá-lo frustrado e desmotivado, afetando sua saúde mental.

Longe do ambiente de escritório e de seus gestores, a autocobrança com relação à produtividade pode também ser um problema. “A gente precisa ter uma régua dessa produtividade, estabelecer metas diárias e tentar manter a agenda, gestão do tempo. Pedir alguns feedbacks ao gestor. É importante ter esse feedback mesmo que seja informal”, reitera a psicóloga.

Definir parâmetros é importante para entender a necessidade de estabelecer limites e não se cobrar tanto neste período. “Nesta pandemia não tem como você cobrar muito. Eu não leio mais notícias, mas ainda assim eu sinto que as coisas não estão legais. Mas eu tento fazer o mínimo possível. O que dá eu faço, o que não dá eu não faço. Mas produtividade no home-office nem sempre é possível. As coisas te distraem muito fácil”, afirma Lyra.

O trabalho onde estiver

Sem a necessidade de um espaço físico fixo, algumas pessoas viram no home-office maior liberdade para trabalhar onde quiserem, não precisando necessariamente estar em casa. É o caso de Andrey Corrêa, funcionário público, que atua em teletrabalho desde o início da pandemia. Ele conta que no início ficava apenas em casa, mas que com o tempo descobriu que podia trabalhar na casa de familiares, ao ar livre ou até mesmo no campo, distante da cidade. “Isso te desconecta um pouco da pressão do local de trabalho, mas você precisa ter cuidado para não se desconectar completamente”, conta.

Andrey preza pela liberdade no home-office, sem a necessidade de trabalhar em um espaço fixo (Foto: Arquivo pessoal)

Além da fuga ao estresse, a modalidade parece também expandir diversos horizontes e oportunidades. Lyra, por exemplo, conta que pretende até sair do país, e que o home-office pode oferecer essa liberdade. “Eu acredito muito em liberdade geográfica. Eu não quero mais ficar no Brasil. Quero acabar a pandemia e morar no Uruguai dois anos, mas manter as empresas, os mesmos negócios”. Para ela, o Brasil está atrasado na questão. “Não dá para termos uma ferramenta como a internet, fazendo o que a gente faz achando que a pessoa tem que ir lá e bater ponto. Quando que a gente vai criar essa nova mentalidade? Já tem países que estão fazendo isso há muito tempo e o Brasil acha que você tem que ficar batendo o dedo”.

Pesquisa realizada por um grupo ligado ao curso de Administração da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) indica que há quatro modalidades de teletrabalho: a domicílio, remotizado (realizado em telecentros, geralmente próximos à residência do colaborador), móvel (quando não há localização fixa determinada, como técnicos de instalação de serviços de telecomunicação, por exemplo) e o transnacional ou transfronteiriço (realizado em países diferentes da sede da empresa).

Aprender a gerenciar o próprio tempo para melhor aproveitar a ‘liberdade’ que teletrabalho propicia também é uma questão à qual muitos precisaram se readaptar. Andrey conta que saber lidar com os horários foi essencial para conseguir ser produtivo. “Muitas vezes procrastinava e deixava o serviço para mais tarde, tendo que trabalhar fora do horário de serviço, que no fim se tornou só um conceito”. Para o servidor, ter essa liberdade pode ser benéfico como também um problema. “Em todo momento você parece estar em serviço. Não existe uma quebra. Não tem aquele momento do dia em que você chega em casa e pensa: ‘acabou o serviço por hoje’. Essa sensação de alívio se perde”, desabafa.

Para Lyra, no entanto, poder administrar o tempo de serviço dá ainda mais liberdade para se dedicar a assuntos pessoais. “Eu acredito em produtividade, entregar a demanda e acabou. É assim que eu faço com a minha equipe. Não tem isso de expediente”, afirma.

Uma alternativa viável?

As redes sociais e as novas tecnologias têm cada vez mais se transformado, e isso tende a mudar a maneira como encaramos os mercados de trabalho e financeiro. Recentemente o Whatsapp passou a integrar ferramentas que facilitam o cotidiano de quem as usa para trabalhar (além de, também, conversar), e até mesmo a permitir transações financeiras pelo aplicativo. O Facebook e o Instagram também têm buscado facilitar o trabalho, com o Estúdio de Criação, uma ferramenta criada para gerenciar, publicar, monitorar e agendar publicações. Google e Microsoft tiveram que repensar suas políticas de contas corporativas e investir em ferramentas e pesquisas para aprimorar os seus serviços.

Essas mudanças tecnológicas ganharam visibilidade com a necessidade de isolamento social devido à pandemia de Covid-19 e também tem feito muita gente repensar a necessidade de um espaço físico. É o caso de Gilberto Martins, empresário de 55 anos, que por causa da pandemia trocou o escritório físico no centro de Campo Grande pelo trabalho em casa. “Era uma tendência até mesmo antes da pandemia. Percebi que meus clientes resolviam as coisas, tudo por telefone e Whatsapp”, relata. O empresário conta que isso é algo irreversível para ele.

O teletrabalho vem despertando o interesse até do poder público. O Ministério da Educação, por meio da portaria nº 475, de 5 de setembro de 2019 – antes da epidemia do novo coronavírus, portanto – regulamentou a modalidade, a “título de experiência-piloto”, junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). No documento é possível identificar o interesse do governo para a implantação gradual do home-office.

Andrey trabalha fora do local de trabalho há um ano. “É interessante para o governo, que deseja a todo instante cortar gastos. Há algum tempo temos implantado sistemas digitais para economizar em papel e demais serviços. Com o teletrabalho as instituições públicas podem economizar em gastos como energia, materiais de limpeza e auxílio transporte”, afirma.

Contudo, o cenário, ainda que longe de ser utópico, não deixa de encontrar desafios. Os serviços geralmente dependem de uma estrutura básica, como computador, smartphone e acesso à internet. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), realizada em 2018 e divulgada pelo IBGE em 2020, mostra que uma em cada quatro pessoas não possui acesso à internet no Brasil, e que menos da metade da população possui computador de mesa ou portátil, essenciais ao regime de home-office.

Embora trabalhar em casa possa, potencialmente, trazer economia aos empregadores em alguns pontos, os pesquisadores da UFMS, afirmam que para que ele funcione é necessário alto apoio organizacional, treinamento e suporte para os trabalhadores, tanto nos âmbitos estruturais, como no organizacional e psicológico.

A pesquisa ainda mostrou que é preciso investir na capacitação de gestores para esse novo modelo de trabalho. É necessário, ainda, compreender que a distância entre empregador e empregado não é um fator relevante, já que tudo acontece no online. E que o perfil do trabalhador, sua capacidade técnica e disciplina para conduzir seus afazeres de modo eficaz longe da empresa/instituição se tornam habilidades relevantes na hora da contratação.